O futebol moderno está cheio de
lugares-comuns. Uns requintados, outros obtusos e outros, ainda, absurdos. Da
posição à ação, passando pela interação dos intervenientes em campo, há quem
afirme que o léxico é insignificante desde que se obtenham resultados.
Discordo, na medida em que é possível comunicar com qualidade (e precisão) e
obter resultados, mas respeito.
O tema deste texto não aborda exclusivamente a comunicação, muito menos a comunicação dita verbal já que, em jogo, a comunicação não-verbal é tão ou mais importante que a comunicação por meio da palavra. Comunicar bem implica criar relações profícuas, com ou sem a bola, em múltiplas escalas de intervenção: diádica, triádica, setorial, intersetorial ou coletiva. São exatamente estas relações interpessoais que estão na génese do que é designado por dinâmica: o “conjunto de ações inerentes a um dado processo ou situação, que determinam o seu desenvolvimento e evolução” (infopedia.pt).
As dinâmicas podem ser contextualizadas espacialmente, pelo que a presente redação foca-se somente nas dinâmicas ofensivas que ocorrem nos corredores (longitudinais) do terreno de jogo. Embora as dinâmicas da fase de organização defensiva também pudessem ter sido alvo de análise, destacaremos algumas dinâmicas da equipa em posse de bola, por esta dispor temporariamente do elemento indispensável para marcar golo. Além disso, a coordenação interpessoal subjacente ao processo defensivo já foi previamente tratada no Linha de Passe (ver aqui).
Na lógica de organização
coletiva, quando uma equipa tem a bola, a distribuição racional dos jogadores
pelo espaço é um ponto de partida para a criação de dinâmicas e influencia o
modo como o jogo se desenrola a partir desta noção mais estrutural ou estática.
Numa perspetiva tradicional, o campo é segmentado em três corredores (esquerdo,
central e direito), porém, na atualidade, alguns treinadores de referência preferem
subdividi-lo em cinco corredores (esquerdo, meia-esquerda, central,
meia-direita e direito), a fim de melhor operacionalizar as ligações preconizadas
no seu modelo de jogo, através de linhas de passe diagonais que proporcionam a
constituição de triângulos ou losangos funcionais (figura 1). Para simplificar
a análise, considerarei a divisão do campo em três corredores.
Figura 1. Manchester City FC, de Pep Guardiola, disposto num
2-3-5 em posse de bola, com a ocupação dos cinco corredores de jogo claramente
definida (fonte: https://twitter.com/GuardiolaTweets).
As dinâmicas de corredor podem ser bastante diversificadas em termos de complexidade, relações numéricas, localização, situação de jogo e tipo de ações motoras executadas, visando, geralmente, alcançar um ou mais dos seguintes objetivos: (1) garantir o equilíbrio defensivo, (2) manter a posse de bola sem progressão no terreno, (3) progredir em direção à baliza adversária, (4) criar situações de finalização e (5) finalizar a sequência ofensiva. Por sua vez, as dinâmicas geradas podem ser positivas, pois permitem cumprir as intenções estratégico-táticas previstas ou negativas, se o produto da jogada é pernicioso para a equipa atacante. Por isso, por detrás de uma dinâmica coletiva, há sempre uma intenção estratégico-tática, um posicionamento na estrutura tática de base e interações do portador da bola com os companheiros de equipa e, concomitantemente, com os adversários.
Aproveitando alguns lances da
20.ª jornada da presente edição da I Liga Portuguesa (Bwin), irei expor
diferentes dinâmicas de corredor executadas pelos três primeiros classificados
da competição: FC Porto, Sporting CP e SL Benfica.
1) FC Porto 1 x 0 CS Marítimo (golo de Evanilson, 18’)
O FC Porto é uma equipa que, regra geral, apresenta uma
ocupação equilibrada dos três corredores. É incisiva na criação de espaços e na
progressão em direção à baliza, não fazendo parte do seu estilo “mastigar” o
processo ofensivo com posses de bola prolongadas e inócuas. Neste golo de Ivanilson,
houve inicialmente uma atração da equipa do Marítimo ao corredor lateral
direito para, através da mobilidade e da simulação – genial, diga-se a propósito – do Otávio, criar espaço para Evanilson receber e enquadrar no
corredor central. A combinação tática indireta foi concluída, com a bola a
regressar ao corredor direito para Otávio assistir para uma finalização de
classe de Evanilson. A dinâmica do corredor lateral implicou atração, mobilidade
e procura do espaço em profundidade (figura 2).
Figura 2. Atração, mobilidade e procura da profundidade, numa
combinação tática indireta do FC Porto contra o CS Marítimo (30-jan-2022).
2) B-SAD 1 x 3 Sporting CP (golo de Pablo Sarabia, 45’+2)
A equipa do Sporting CP alterna entre o ataque rápido, com a busca da profundidade no corredor
central, mediante passes longos de jogadores mais recuados e um ataque mais
posicional, recorrendo a desequilíbrios individuais ou combinações táticas nos
corredores laterais. Nesta situação de jogo, houve um passe vertical do setor
defensivo a encontrar Pedro Gonçalves entrelinhas, que permitiu ultrapassar os
setores avançado e intermédio da B-SAD. Enquadrado no corredor lateral, Pedro
Gonçalves endossa a bola para Nuno Santos que, em largura máxima, usufrui da
oportunidade de explorar o duelo 1v1 ou devolver a Pedro Gonçalves, que, por
duas vezes, procurou romper em profundidade. Após um drible rápido na direção
da linha de baliza, Nuno Santos cruzou rasteiro, tenso, entre a linha defensiva
e o guarda-redes, para Pablo Sarabia finalizar em golo ao segundo poste. Uma
dinâmica típica do Sporting de Rúben Amorim, pressupondo a receção de bola
entrelinhas, o enquadramento ofensivo e a criação de condições favoráveis no
corredor lateral para perturbar a organização defensiva adversária através de
1v1 (figura 3).
Figura 3. Enquadramento entrelinhas no corredor lateral e criação
de condições favoráveis para o 1v1 de Nuno Santos, no 3.º golo do Sporting CP
frente à B-SAD (2-fev-2022).
3) SL Benfica 0 x 1 Gil Vicente FC (jogada de Gonçalo Ramos, 23’)
Independentemente de jogar em 3-4-3, 4-4-2 ou 4-3-3, o SL
Benfica privilegia um posicionamento interior dos extremos ou médios-ala. Este
facto faz com que, na maioria das vezes, as despesas dos desequilíbrios
ofensivos exteriores sejam assumidas pelos laterais. Se na esquerda há Grimaldo
capaz de desequilibrar em combinações táticas, na direita os encarnados não têm,
de momento, quem seja capaz de ser um verdadeiro “quebra-cabeças” para as
defensivas adversárias. Na minha opinião, este lance constituiu uma exceção nas
dinâmicas ofensivas que o Benfica tem gerado recentemente. À semelhança da
dinâmica de corredor do Sporting, o passe vertical de Vertonghen no corredor
lateral “queimou” duas linhas defensivas adversárias e encontrou Everton
Cebolinha entrelinhas. Com dois toques na bola, Everton recebeu orientado para
dentro e assistiu Gonçalo Ramos em profundidade que, à saída do guarda-redes
contrário, ficou a centímetros de marcar um belíssimo golo. Uma dinâmica
simples no corredor lateral, de progressão rápida e vertical na procura do
espaço atrás da última linha defensiva, que quase resultou em golo (figura 4).
Figura 4. Passe vertical no corredor lateral, receção orientada entrelinhas
e passe em profundidade para a finalização de Gonçalo Ramos diante do Gil
Vicente FC (2-fev-2022).
4) SL Benfica 0 x 1 Gil Vicente FC (perda de bola e ataque rápido do Gil Vicente, 63’)
Há algum tempo que argumento que o SL Benfica é uma
equipa desequilibrada em processo ofensivo. Aliás, esta ideia foi aqui desenvolvida
há um ano. Adotar um posicionamento desequilibrado no espaço de jogo não promete
apenas o sucesso da intenção estratégico-tática ofensiva e das interações
subsequentes, como produz circunstâncias vantajosas para que a equipa oponente crie
perigo em contra-ataque ou ataque rápido. Este é, portanto, um exemplo de uma
dinâmica de corredor negativa, no qual a intenção de retirar rapidamente a bola
de uma zona de pressão ficou comprometida por um posicionamento errático dos
jogadores do Benfica, em particular no corredor central e que originaram uma perda
de bola extemporânea numa ligação (passe) que se previa simples. A dinâmica no
corredor lateral pedia uma linha de passe diagonal no corredor central para aproveitar
o (enorme) espaço disponível para dar sequência ao ataque (figura 5). Um erro capital...
Figura 5. Dinâmica de corredor negativa devido a uma má ocupação
do espaço de jogo pela equipa do SL Benfica e que quase resultava em golo do
Gil Vicente FC (2-fev-2022).
O futebol é um jogo de erros e acertos e o treino serve precisamente para aumentar a taxa de acertos e reduzir a taxa de desacertos nos diversos contextos situacionais que o jogo pode suscitar. Aquando do trabalho de dinâmicas de corredor, é recomendável que se preserve a noção de oposição e se proponha uma sequência de exercícios que (1) enfatize as intenções estratégico-táticas pretendidas, (2) fomente um posicionamento lógico dos jogadores, tirando proveito das suas características e (3) desencadeie interações positivas (i.e., microssociedades) em circunstâncias de complexidade e dificuldade crescentes.
Na prática, só assim poderemos respeitar a premissa que assevera
que uma equipa, em competição, pode ser muito mais do que a mera soma das suas
individualidades.
Sem comentários:
Enviar um comentário