28/03/2022

Artigo do mês #27 – março 2022 | A monitorização da carga de treino em jogadores de futebol de elite, numa época desportiva: Variações da perceção subjetiva de esforço e da creatina quinase entre microciclos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Mendes, B., Clemente, F. M., Calvete, F., Carriço, S., & Owen, A.

País: Portugal

Data de publicação: 10-fevereiro-2022

Título: Seasonal training load monitoring among elite level soccer players: Perceived exertion and creatine kinase variations between microcycles

Referência: Mendes, B., Clemente, F. M., Calvete, F., Carriço, S., & Owen, A. (2022). Seasonal training load monitoring among elite level soccer players: Perceived exertion and creatine kinase variations between microcycles. Journal of Human Kinetics, 81, 85–95. https://doi.org/10.2478/hukin-2022-0008

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 27 – março de 2022.

 

Apresentação do problema

O stress fisiológico pode acumular-se ao longo de uma época competitiva, predispondo os jogadores de futebol a situações de incapacidade para lidar com as exigências do treino e da competição, o que pode comprometer os seus desempenhos (Silva et al., 2014). A exposição continuada ao stress fisiológico pode gerar danos musculares e alterações hormonais e imunológicas difíceis de reverter (Ascensão et al., 2008; Hammouda et al., 2012; Silva et al., 2008). Deste modo, a monitorização do treino e a extensa monitorização de múltiplas amostras sanguíneas podem contribuir para controlar estados funcionais e não funcionais de overreaching (fadiga crónica) (Drust et al., 2007; Heisterberg et al., 2013). 

A perceção subjetiva de esforço é um método de controlo da carga popular, barato, efetivo e fácil de aplicar em contexto desportivo (Borg, 1982; Foster et al., 2001). O método de Foster tem sido amplamente utilizado para controlar a carga interna na sessão de treino, consistindo na multiplicação do nível reportado, numa escala de 1 a 10, pela duração da sessão de treino em minutos (Foster et al., 1996, 1998). Estes métodos subjetivos têm sido testados através de tecnologia GPS e com monitorização da frequência cardíaca e os resultados indicam que constituem um indicador global da resposta individual ao treino no futebol e podem ser considerados como fiáveis para controlar a carga interna em contexto prático (Casamichana et al., 2013). Por outro lado, parece que a perceção subjetiva de esforço não parece ser suficientemente fiável em sessões de treino muito exigentes, com colisões e esforços intermitentes de alta intensidade passíveis de originar dano muscular (Lambert & Borresen, 2010; Takarada, 2003). 

Um outro método de autoavaliação, que no caso mede a perceção de fadiga, o nível de stress, o aparecimento da dor muscular retardada e a qualidade do sono, é o índice de Hooper (Hooper & Mackinnon, 1995). É um método para avaliar o bem-estar do atleta e parece ser fiável para evitar situações de sobretreino, porém, raros foram os estudos que procuraram comparar o índice de Hooper com marcadores bioquímicos em jogadores profissionais de futebol de elite. Neste particular, controlar a creatina quinase sérica é um procedimento comum para aferir a extensão do dano muscular em futebolistas profissionais (Andersson et al., 2008; Fatouros et al., 2008; Lazarim et al., 2009), ainda que devam ser ponderados a sua alta variabilidade e a fraca relação com a recuperação muscular (Twist & Highton, 2013). 

Como vimos, o controlo da carga de treino é uma tarefa fundamental para otimizar a performance desportiva. Pode, também, ser útil para controlar a variação da carga nas sessões de treino que compõem o microciclo semanal (Coutinho et al., 2015; Impellizzeri et al., 2004). Apesar disso, são escassos os estudos que analisaram a variação semanal da carga de treino em atletas de elite e, em especial, nenhuma investigação analisou as associações entre a perceção subjetiva de esforço, o índice de Hooper (perceção de bem-estar) e a atividade da creatina quinase. As perceções das diferenças de carga no decurso da semana devem ser consideradas para identificar a sensibilidade dos jogadores às alterações da carga e ao modo como esta afeta a perceção de bem-estar e as respostas orgânicas ao dano muscular. Posto isto, o presente estudo teve o duplo propósito de determinar: 1) a variação da carga de treino diária entre microciclos; 2) as relações entre a perceção subjetiva de esforço, o índice de Hooper e os níveis de cretina quinase de futebolistas profissionais, ao longo dos microciclos semanais que compuseram a totalidade de uma época desportiva.

 

Métodos

Participantes: 35 jogadores profissionais de futebol, do género masculino; 3 guarda-redes, 6 defesas laterais, 4 defesas centrais, 9 médios centro, 8 médios-ala e 4 avançados (idade: 25.7 ± 5.0 anos; estatura: 182.3 ± 6.4 cm; massa corporal: 79.1 ± 7.0 kg). Todos os jogadores pertenciam ao mesmo clube de futebol, jogando na primeira liga portuguesa e na UEFA Champions League e foram monitorizados durante 41 microciclos semanais (figura 2).

 

Figura 2. Jogadores profissionais de futebol de elite num treino de um microciclo semanal (fonte: sapodesporto.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

Design do estudo e recolha de dados: o estudo foi tipicamente longitudinal, com dados recolhidos para cada sessão de treino ao longo de uma época desportiva completa. O índice de Hooper foi monitorizado 30 minutos antes de cada treino, enquanto a perceção subjetiva de esforço foi solicitada 30 minutos após a sessão. A duração das sessões foi registada para quantificar a carga de treino diária: perceção subjetiva de esforço x minutos da sessão de treino. Somente foram recolhidos dados dos jogadores que realizaram todo o volume da sessão de treino. A familiarização com as escalas de perceção subjetiva decorreu na pré-época, também com o intuito de identificar o perfil de resposta de cada elemento do plantel. Durante uma das primeiras semanas da época também foram recolhidas amostras sanguíneas de base para cada jogador, por forma a verificar padrões de recuperação individuais. Além disso, foram recolhidas amostras sanguíneas 48h antes e após cada jogo competitivo, mas apenas para os jogadores que disputaram mais de 60 minutos. 

Variáveis: as variáveis inclusas no estudo estão caracterizadas na tabela 1 quanto à classificação, medidas e procedimentos específicos de recolha. Em relação às respostas subjetivas, os jogadores registaram as suas respostas no seu tablet portátil, contendo uma aplicação configurada para o efeito; para avaliar os fatores do índice de Hooper e a perceção subjetiva de esforço, bastava tocar num valor da escala e salvar a resposta no respetivo perfil de utilizador.

 

Tabela 1. Caracterização das variáveis (independentes e dependentes) do estudo.


Análise estatística: foram corridas análises multivariadas da variância de duas vias (MANOVA) para averiguar diferenças entre os fatores “carga interna”, “índice de Hooper” (total), “minutos de treino” (minT) e “atividade da creatina quinase”. Quando houve interações entre fatores, foi aplicada a análise da variância de dupla via (ANOVA), seguida de ANOVA de uma via e testes post-hoc Tukey HSD para averiguar a variância dentro do fator. As dimensões de efeito (effect sizes; ES) apuradas foram interpretadas de acordo com os seguintes valores de corte: sem efeito (ES < 0.04), efeito mínimo (0.04 < ES < 0.25), efeito moderado (0.25 < ES < 0.64) e efeito forte (ES > 0.64). Os procedimentos estatísticos foram executados no software SPSS v. 23.0, com a significância definida para 5%.

 

Principais resultados

 

·      Variação das variáveis de carga de treino ao longo dos meses

A análise post-hoc revelou dois clusters no fator “meses” (primeiro cluster: agosto – dezembro; segundo cluster: janeiro – maio), com valores do índice de Hooper mais elevados no primeiro cluster (figura 1). Na variável “carga interna” foram identificados três clusters significativamente distintos (primeiro cluster: agosto; segundo cluster: setembro, outubro e fevereiro; terceiro cluster: novembro, dezembro, janeiro, março, abril e maio), sendo os valores mais elevados no primeiro cluster e mais baixos no terceiro. Finalmente, houve diferenças significativas na atividade da creatina quinase (CK) entre agosto e janeiro, e agosto e maio.

 

Figura 1. Variações do Índice de Hooper, da carga interna (internal load) e da atividade da creatina quinase (CK) ao longo dos diversos meses da época (Mendes et al., 2022).

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função do tipo de microciclo

Foram encontrados valores mais elevados no índice de Hooper nos microciclos com 1 jogo, comparativamente aos microciclos com 2 jogos, nos quais a duração dos treinos também foi significativamente mais reduzida. No que à carga de treino diz respeito, os treinos mais exigentes ocorreram nos microciclos sem jogos competitivos, seguindo-se os microciclos com 1 jogo. O tipo de microciclo não afetou a atividade da creatina quinase. A figura 2 exibe diferenças significativas na carga interna entre os dias do microciclo com 1 e 2 jogos, o que não aconteceu nos microciclos sem jogos.

 

Figura 2. Variações da carga interna nos dias de três tipos distintos de microciclo semanal (sem jogo, com 1 jogo e com 2 jogos) (Mendes et al., 2022). Legenda: na semana com 1 jogo – diferença significativa para aMD+1, bMD+2, cMD-4, dMD-3, eMD-2 ou fMD-1; na semana com 2 jogos – diferença significativa para aMD+1, bMD+2, cMD-2 ou dMD-1 (p < 0.05).

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função do dia do treino

O índice de Hooper teve valores significativamente mais elevados nos dias MD+1 e MD+2 e os valores mais baixos nos dias que antecederam os jogos (MD-2 e MD-1). Em relação aos minutos de treino, as sessões mais curtas tiveram lugar no primeiro e segundo dias logo após o jogo competitivo. As sessões mais longas ocorreram nos terceiro e quarto dias antes do jogo competitivo. Os menores valores de carga interna foram registados nos primeiro e sexto dias após o jogo competitivo, enquanto as sessões mais exigentes ocorreram nos terceiro e quarto dias após o jogo.

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função da posição de jogo

Em relação à posição de jogo (figura 3), foram obtidos dois clusters significativamente distintos para o índice de Hooper (primeiro cluster: laterais, médios-ala e centrais; segundo cluster: médios centro, guarda-redes e avançados), com valores mais elevados no primeiro. Os médios mostraram valores mais elevados de carga interna relativamente aos jogadores das outras posições, à exceção dos guarda-redes. Pelo contrário, os defesas centrais apresentaram os menos valores de carga interna, com diferenças significativas para os guarda-redes, médios centro e médios-ala. Houve, também, diferenças significativas entre defesas laterais e médios centro na atividade da creatina quinase.

 

Figura 3. Variações da carga interna entre as diversas posições de jogo (Mendes et al., 2022). Legenda: diferença significativa para aGK (guarda-redes), bWD (defesa lateral), cCD (defesa central), dMF (médio centro), eWMF (médio-ala) ou fFW (avançado).

 

Aplicações práticas

Os treinadores e preparadores físicos devem estar cientes de que a utilização de escalas percetivas (de esforço e bem-estar) constitui uma abordagem útil e apropriada para monitorizar as cargas de treino no futebol. Por se tratar de um método barato e eficiente, pode ser aplicado em qualquer nível competitivo (amador, semiprofissional e profissional). 

A atividade da creatina quinase também é sensível à variação da carga de treino, podendo ser uma variável interessante para monitorizar os efeitos mecânicos induzidos pelas sessões de treino e controlar estados não funcionais de fadiga crónica (overreaching). Contudo, é uma abordagem que não está ao alcance de clubes com menos recursos financeiros. 

A variação da carga interna reflete o trabalho dos jogadores nas sessões de treino, tendo por base os objetivos da equipa técnica para determinado período da época. Por exemplo, o trabalho tende a ser mais exigente na pré-época do que no período competitivo e o ajustamento da carga de treino deve ser ponderado para promover adaptações específicas e desejáveis no plantel. 

O tipo de microciclo em causa condiciona a expressão da perceção de bem-estar (índice de Hooper) e de esforço dos jogadores. Microciclos sem jogos tendem a ser fisicamente mais extenuantes e microciclos com 2 jogos, por pressuporem mais sessões visando a recuperação física e mental, tendem a ser mais aprazíveis. A dinâmica aquisitiva inerente a microciclos com 1 jogo leva a variações mais evidentes da carga interna nos jogadores. 

É imperioso desenvolver um programa de treino contínuo para a condição física dos jogadores, não só para recuperá-los mais rapidamente dos jogos competitivos, mas também para minimizar o risco de lesão e aumentar a disponibilidade para competir. Para o efeito, é absolutamente fundamental compreender as particularidades táticas, técnicas, físicas e mentais associadas ao desempenho das diversas posições de jogo, tendo ainda em consideração as características específicas de cada indivíduo.

 

Conclusão

Este estudo procurou determinar a variação da carga de treino diária em jogadores de futebol de elite, tal como a sua relação com as perceções subjetivas de esforço e bem-estar, e com os níveis de creatina quinase no decurso de uma época completa. As evidências demonstraram a existência de variações significativas no conjunto de variáveis derivadas do treino, em função dos meses, do tipo de microciclo, do dia do microciclo semanal e da posição de jogo. No cômputo geral, a carga interna tem uma relação de proporcionalidade direta com a perceção de bem-estar, sendo a pré-época e os dias a meio da semana normalmente mais exigentes. Estudos futuros podem equacionar a utilização destas técnicas de monitorização para estimar as cargas de treino individuais, eventualmente associando-as a situações nas quais o risco de lesão é real.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Human Kinetics.

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