A obra «Para onde vão os
guarda-chuvas» foi concebida por Afonso Cruz, não um mero escritor português,
mas um ser das artes: cineasta, ilustrador e músico. Vive no campo e gosta de
cerveja. Diria que fugiu da confusão que nos tolda o juízo e a criatividade. A
arte implica tempo e espaço, daqueles que pouco se têm no frenesim da grande
cidade.
Figura. Capa do livro «Para onde vão os guarda-chuvas», de Afonso Cruz. (fonte: www.wook.pt) |
Adiante, um livro sobre
o oriente, sobre uma outra cultura ou culturas distantes da nossa. Desde os
rituais muçulmanos à religião hindu, Afonso Cruz cria um enredo que quase leva
os mais descrentes a Alá. É fantástico o modo como capta e nos transmite tanta
singularidade quotidiana num romance só. Não contem comigo para ser spoiler. Comprem o livro, peçam-no
emprestado, mas leiam-no. Depois, para além da trama que o autor criou, a obra
está repleta de autênticas pérolas filosóficas ou, pelo menos, daquelas que me
fazem parar, pensar, ler outra vez e pensar um pouco mais. A título de exemplo:
Mas, num desses
dias, apesar da felicidade que andava a sentir, voltaram-lhe os pensamentos que
costumava ter, pensamentos de arrastar pelo chão: Esta felicidade só pode
trazer uma tragédia, tenho muito medo do destino, tenho a sensação de que o
nosso riso atrai a desgraça. (p. 56)
A vida e a morte, a felicidade
e a tragédia. No fundo, a dualidade no caminho do ser humano. É uma constante.
A criação foi feita
através de uma pergunta e não de uma resposta. Se fosse uma resposta, uma
certeza, estaríamos todos parados, ancorados na verdade, nos factos. Mas, se
evoluímos, é porque andamos a erguer um ponto de interrogação como estandarte.
O ponto de interrogação é a verdadeira bandeira do homem. É preciso esquecer os países,
as fronteiras, as certezas. O futuro é uma pergunta. (p. 328)
Uma prosa poética de tão
bela. Não poderia concordar mais: o futuro é uma pergunta, o mistério a fonte
de inspiração para evoluirmos.
A melhor maneira de
fazer uma pessoa cair é levá-la para um lugar alto, o universo sabe fazer isso
muito bem, sabe levar-nos para cima das coisas para melhor nos empurrar. Não se
empurra uma pessoa que está no chão, é preciso ampará-la primeiro, é preciso
fazê-la subir umas escadas. É preciso que a pessoa sinta vertigens. É preciso
que caia de muito alto. É assim que o universo ri. (p. 506)
Alguns dirão que é o
«karma», o destino. Como refere o autor é um equilíbrio
absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado. O universo não faz somente
cair, faz cair com estrondo. Antes, porém, ampara-nos, faz-nos subir. Um
excerto que deveria ser uma enorme lição de humildade para todos nós.
Para onde vão os
guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par.
Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas
toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os
nossos guarda-chuvas? (…). (p. 530)
Para onde vai a vida?
Suponho que seja uma pergunta de um milhão de euros. Alguém sabe a resposta?
Não sabemos por agora, talvez um dia, mas podemos sempre imaginar. E imaginar
pela positiva dá outro brilho ao que por cá andamos a fazer.
De resto, do apêndice de
Fragmentos Persas (Anónimo, século I depois de Hégira) do livro, destaco o
número 363: Criámos os caracóis para
fazer o mundo mais lento. (p. 666) Quem me ofereceu o livro sabe que o mundo
se tornou mais lento, quiçá eterno, no dia em que os seus caracóis tomaram
conta do (meu) universo.
Referência
Cruz, A. (2015). Para onde vão os guarda-chuvas (4ª ed.).
Lisboa: Companhia das Letras.
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