27/09/2016

Para onde vão os guarda-chuvas (2015)

A obra «Para onde vão os guarda-chuvas» foi concebida por Afonso Cruz, não um mero escritor português, mas um ser das artes: cineasta, ilustrador e músico. Vive no campo e gosta de cerveja. Diria que fugiu da confusão que nos tolda o juízo e a criatividade. A arte implica tempo e espaço, daqueles que pouco se têm no frenesim da grande cidade.

Figura. Capa do livro «Para onde vão os guarda-chuvas», de Afonso Cruz.
(fonte: www.wook.pt)

Adiante, um livro sobre o oriente, sobre uma outra cultura ou culturas distantes da nossa. Desde os rituais muçulmanos à religião hindu, Afonso Cruz cria um enredo que quase leva os mais descrentes a Alá. É fantástico o modo como capta e nos transmite tanta singularidade quotidiana num romance só. Não contem comigo para ser spoiler. Comprem o livro, peçam-no emprestado, mas leiam-no. Depois, para além da trama que o autor criou, a obra está repleta de autênticas pérolas filosóficas ou, pelo menos, daquelas que me fazem parar, pensar, ler outra vez e pensar um pouco mais. A título de exemplo:

Mas, num desses dias, apesar da felicidade que andava a sentir, voltaram-lhe os pensamentos que costumava ter, pensamentos de arrastar pelo chão: Esta felicidade só pode trazer uma tragédia, tenho muito medo do destino, tenho a sensação de que o nosso riso atrai a desgraça. (p. 56)

A vida e a morte, a felicidade e a tragédia. No fundo, a dualidade no caminho do ser humano. É uma constante.

A criação foi feita através de uma pergunta e não de uma resposta. Se fosse uma resposta, uma certeza, estaríamos todos parados, ancorados na verdade, nos factos. Mas, se evoluímos, é porque andamos a erguer um ponto de interrogação como estandarte. O ponto de interrogação é a verdadeira bandeira do homem. É preciso esquecer os países, as fronteiras, as certezas. O futuro é uma pergunta. (p. 328)

Uma prosa poética de tão bela. Não poderia concordar mais: o futuro é uma pergunta, o mistério a fonte de inspiração para evoluirmos.

A melhor maneira de fazer uma pessoa cair é levá-la para um lugar alto, o universo sabe fazer isso muito bem, sabe levar-nos para cima das coisas para melhor nos empurrar. Não se empurra uma pessoa que está no chão, é preciso ampará-la primeiro, é preciso fazê-la subir umas escadas. É preciso que a pessoa sinta vertigens. É preciso que caia de muito alto. É assim que o universo ri. (p. 506)

Alguns dirão que é o «karma», o destino. Como refere o autor é um equilíbrio absurdamente/moralmente/esteticamente desequilibrado. O universo não faz somente cair, faz cair com estrondo. Antes, porém, ampara-nos, faz-nos subir. Um excerto que deveria ser uma enorme lição de humildade para todos nós.

Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas? (…). (p. 530)

Para onde vai a vida? Suponho que seja uma pergunta de um milhão de euros. Alguém sabe a resposta? Não sabemos por agora, talvez um dia, mas podemos sempre imaginar. E imaginar pela positiva dá outro brilho ao que por cá andamos a fazer.

De resto, do apêndice de Fragmentos Persas (Anónimo, século I depois de Hégira) do livro, destaco o número 363: Criámos os caracóis para fazer o mundo mais lento. (p. 666) Quem me ofereceu o livro sabe que o mundo se tornou mais lento, quiçá eterno, no dia em que os seus caracóis tomaram conta do (meu) universo.

Referência
Cruz, A. (2015). Para onde vão os guarda-chuvas (4ª ed.). Lisboa: Companhia das Letras.

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