“Uma coruja nas ruínas” é
a segunda obra do meu amigo de infância – digo-o de boca cheia – Eduardo Jorge Duarte, publicada sob a
chancela da editora On y va (figura 1). Trata-se de uma coletânea de contos do autor, nem
todos inéditos, cujas diferentes personagens se interligam entre si pela
“memória” e pela “solidão”. Os onze contos estão sujeitos a interpretações
diversas, nem sempre análogas, que se modelam à subjetividade de cada leitor. É
exatamente na perspetiva atenta de leitor que tomei nota de algumas das palavras
eloquentes do Eduardo sob a forma de narrador ou personagem. Longe de pretender
desvendar o que quer que seja dos múltiplos enredos do livro, tento chamar a
atenção para uma série de reflexões que, se cuidadas ou devidamente respeitadas,
nos conduzem inapelavelmente a um mundo melhor. O Edu é pródigo nisso:
identifica as lacunas existenciais da nossa espécie e educa-nos com a mestria
das entrelinhas para sermos uma sociedade mais justa, mais solidária e feliz.
Figura 1. Capa de "Uma coruja nas ruínas" (2018), de Eduardo J. Duarte. |
Velho continente
Um conto que associo
sempre ao single “Run” dos Foo
Fighters: “wake up… run for your life with me”. A solidão dos mais velhos é
abordada de forma clara, remetendo-nos para “uma maratona de sentimentos”. Enquanto
para uma minoria a vida consome o tempo, para o grosso dos nossos idosos o
tempo consome a vida.
Aqui, ou aguardamos
tranquilos a nossa vez de morrer sem pensar em nada, ou reza-se para matar o
tempo, antes que o resto do tempo que nos sobra nos mate a nós. (p. 26)
A realidade dos lares é
mesmo assim. Os resistentes, no entanto, engendram planos para que a vida lhes
dê mais liberdade e/ou amor. É uma questão de escolhas assentes em
possibilidades de ação.
Acromegalia
A questão da
consanguinidade e dos problemas complexos que tal acarreta estão bem expressos
neste conto. A diferença é a sede da discriminação, do desrespeito e da
exclusão. O interessante é que a diferença funde-se na dimensão temporal da
trama.
Os horários são
armários de prateleiras abertas onde guardamos o tempo. (p. 26)
Por vezes, as rotinas a que
muitos aludem tão bem fazer ao organismo humano traem-nos os sentidos, as
emoções e culminam em tragédia, em tristeza ou o que lhe queiram chamar.
Senhor Nicolau
Os tempos eram
selvagens. De descontentamento generalizado, de fraturas expostas nos ossos da
ética e da moral. Tinha desaparecido por completo a capacidade de discernimento
entre o bem e o mal. (p. 51)
O vilão do enredo, um tal
“dono disto tudo”, “exibia-se pelas redes sociais como um pavão em pose num
jardim público”. (p. 52). O autor acredita que há nas crianças uma força
libertadora das garras da opressão, desde que o respetivo mentor seja alguém
que incuta os valores certos nas mentes (ainda) não corrompidas dos mais
jovens.
A cegueira maior é
não saber olhar para dentro. (p. 60)
Neandertal
O tempo livre é um
salto sem fundo para o ócio. (…) Ando à cavalgadura das tentações. (…) Eu
preciso de livros. (p. 69)
O aspeto do homem por
detrás de um vício remete-nos para uma existência primitiva do ser humano. Como
se um vício, ou outro que o substitui, de sequelas menos nefastas e mais
cultas, pudesse conceder uma resposta cabal ao cumprimento de funções básicas
de sobrevivência. No julgamento íntimo de cada um, o vício é sempre um bem de
caráter irrevogável.
Estricnina
Este conto explora de modo
retrospetivo e sublime a intimidade familiar do autor. Nele, o Eduardo
pretendeu “dar voz a um homem simples que apenas a teve no silêncio”, o seu
tio. Quiçá revoltado com um comportamento mais atrevido, típico da infância e
fortemente reprimido pelo seu irmão, deixa-nos um par de constatações que
poderiam perfeitamente figurar num dos diversos portais de citações de gente
ilustre:
Porque somos sempre
muito rápidos a julgar e a catalogar e tão demorados a trocar de pele com os
outros. (p. 76)
É engraçado, de
alguma forma o passado acaba sempre por vir ter connosco e fazer um acerto de
contas, seja por uma janela, por um carro que passa ou pela rajada de memórias
disparadas no instante em que premimos o gatilho a uma canção. (p. 87)
Um medo sem nome
Ainda jovens gabávamo-nos
de ouvir “música interventiva”. Sucintamente, tratava-se de canções através
das quais as bandas (geralmente de rock ou metal) denunciavam e criticavam
problemas graves de âmbito social. Este será, porventura, um texto de carga
interventiva sobre um dos grandes flagelos na sociedade moderna. A minha mãe
sempre me disse que, quando as coisas mudam na vida de um casal, raramente é
para melhor; o conto do Edu corrobora-o na íntegra, aludindo a “um segredo
guardado num cofre de vergonha”.
O amor comprado avulso
traz consigo uma certa maquia de tragédia:
A partir de então, o
tempo parado. O avançar da velhice apenas trouxe à pele as marcas usadas da dor
e do desgosto. (p. 91)
Osvaldo Se
O “se”. Hipotético. O jogo de identidade do
personagem principal intitulado “auto-ficção do eu”. Maradona e a mão de Deus
no Mundial de 1986 são parte integrante do conto. Pelo meio, esbocei um sorriso
completamente cúmplice:
Virei-me. Reparei nas
riscas azuis apertadas entre camadas brancas que desfilavam pela parede: a
bandeira da Argentina. Do outro lado, surgia desenhada pelo dedos do Sol a
figura escanzelada do Feliciano, um poeta desempregado que procura manter-se
vivo entre os despojos do esqueleto. (p. 95)
Não tenho o prazer de
(re)conhecer o cientista Osvaldo Se, mas tenho a honra de privar com o homem
que projeta a sua existência no poeta Feliciano. Estocadas como a seguinte, por
vezes de nos deixar boquiabertos, acontecem diversas vezes no mês, com exceção
dos dias 21, 22 e 23 que são ocupados a diluir o único subsídio que recebe em
vinho num dos estabelecimentos comerciais mais antigos da vila:
A sombra de Deus é
diferente. É a sombra de uma árvore, é a sombra desse mural à sua frente, está
lá quando a alma precisa de um lugar fresco para descansar. (p. 96)
Uma coruja nas ruínas
O conto que dá o título ao
livro tinha de ser especial, e é! Segundo confessou o editor do livro, o também
escritor monchiquense António Manuel Venda, na primeira sessão do recém-criado
Clube de Leitura de Monchique, este texto assume quase contornos de novela.
Como todos os seres
humanos começam a existir desde a infância, todas as melodias emergem do
silêncio. Não há Homem sem silêncio. Não há música sem uma criança a cantar nos
sentimentos. (p. 100)
Como devem calcular, não
irei dar grandes pistas sobre o enredo. Há um “eu” principal que vive a
história; há um “eu” que acompanha de perto a história e escreve sem, contudo,
estar por dentro do “eu” principal; e, por fim, há um “eu” (eu mesmo) que a
leio e interpreto – à minha maneira – o “xeque-mate” final.
Uma folha em branco
ninguém vê, é como os pensamentos, são invisíveis, mas se a gente os derrama
para o papel, então, sim, aí temos as fundações de uma escola. (p. 122)
O Lisboa gosta de xadrez,
sofre de stress pós traumático ou,
pelo menos, é o que dizem na vila, é a coruja nas ruínas. Como qualquer (boa)
personagem do Eduardo, real ou fictícia, dos seus pensamentos germinam lições
de vida como esta:
Um dia, afirmei que
os sonhos são jardins que florescem na cabeça, e comecei a rir, o que de certa
forma não deixa de ser por si mesmo uma definição de sonho, uma gargalhada
contra a morte. (p. 134)
Extraordinário!
Wall Street
A vida de Diamantino
Serpa, antigo bancário, é devolvida pelo milagre do conto. A reforma trouxe
consigo o sentido de liberdade.
Sem saber bem o que
fazer às gravatas usadas, mas sem querer esquecer completamente a asfixia do
tempo que as recordações dos dias nublados de bancário lhe traziam, pendurou as
inúmeras tiras de pano que durante anos enlaçara ao pescoço, junto à ruína
terraplanada de um antigo colégio, no outro lado da rua. (p. 139)
É engraçado como
identifico logo a localização da efabulação, é praticamente no quintal da minha
casa. Além disso, a forma como o autor parte de cenários reais (p. ex., o
estendal de gravatas) para criar a história que lemos deve ser enaltecida por
qualquer leitor, inclusive por aqueles que, como eu, são menos dados à crítica
literária. Mas enfim, sou suspeito para escrever sobre isso.
Diamantino adquirira o
gosto de contemplar a linha do horizonte na praia, “porque num horizonte cabe
tudo, o futuro, o infinito e a eternidade juntos e a Humanidade toda lá dentro,
em liberdade” (p. 140). Nenhuma vida deveria ficar inacabada e, por isso, a
mudança de rumo, de rotinas, de Diamantino consubstancia-se num intento nobre:
Que é nesse ponto
específico em que duas pessoas se cruzam, nesse abraço perfazendo um X, que se
encontra o amor, o mapa que diz o caminho para um tesouro capaz de erradicar o
flagelo que afeta aquele um por cento da população mundial detentora das
maiores fortunas: a pobreza de espírito. (p.
140)
O todo, o sentido, o
melhor do texto, terão de ler. Lamento!
O amor no vidrão
Quinze anos passaram.
E tu, dobrado sobre
as tuas memórias, levemente encostado ao vidrão, concluis, enquanto atas os
atacadores: estás parado exatamente no mesmo ponto em que estavas naquela
adolescência. (p. 144)
Com um jeito próprio de
descrição, o narrador faz uma retrospetiva de paixões passadas, como “vulcões”
diz, em que a seguir à erupção há uma implosão interior que origina uma “cratera
desoladora” de desespero. Desdramatiza, procura ser sensato: são meros cacos do
coração depositados no vidrão mais próximo de si.
Pedras queimadas
Foi com este texto que o
Eduardo venceu o concurso nacional Conte Connosco do banco Santander Totta, em
2011. A introdução é mítica:
Na fundura do
Barranco do Demo não há mal que dure sempre nem bem que não se acabe A crueza
de um e outro funde os anos em duas estações só. (p. 151)
O final, assombroso de tão
bem escrito, relembra-nos como nós – seres humanos – somos frágeis face à crença
no regresso de alguém querido e, simultaneamente, robustos a encarar a
declaração do prolongamento de um quotidiano repleto de solidão e saudade.
E, ao fim de uma
semana, o filho do Zé Galo voltava a casa depois de ter entregado a alma ao
Criador, de cima de um andaime, nos hediondos subúrbios de Paris. (p. 154)
A todos, sem exceções,
boas festas! Ao Eduardo Jorge Duarte, comparsa de infância, adolescência e
quiçá quantos mais estágios de vida, duas palavras: parabéns e obrigado!
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