29/01/2020

Artigo do mês #1 – janeiro 2020 | Uma análise longitudinal e transversal do efeito da idade relativa no futebol jovem

Com o novo ano e a nova década chega, também, uma rúbrica que há muito havia ponderado: “o artigo do mês”. Por falta de disponibilidade não concretizei a intenção mais cedo, mas, a partir desta data, será uma realidade todos os meses aqui no Linha de Passe.

Em concreto, trata-se de uma breve síntese de um artigo científico selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

- 1 -
Autores: Robin C. Jackson & Gavin Comber
Título: Hill on a mountaintop: A longitudinal and cross-sectional analysis of the relative age effect in competitive youth football
Revista: Journal of Sports Sciences
País: Inglaterra
Referência:
Jackson, R. C., & Comber, G. (2020). Hill on a mountaintop: A longitudinal and cross-sectional analysis of the relative age effect in competitive youth football. Journal of Sports Sciences. doi: 10.1080/02640414.2019.1706830 (link)

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês #1 - janeiro 2020.

Apresentação do problema
O efeito da idade relativa (relative age effect, em inglês) é um fenómeno de assimetria na distribuição das idades cronológicas dos participantes de um dado escalão etário, no desempenho de uma atividade num contexto ou domínio específico. Caracteriza-se por uma representação elevada de indivíduos nascidos no início do período de seleção (geralmente, no primeiro trimestre), comparativamente a outros indivíduos nascidos no segundo semestre desse período, em particular, no último trimestre. Os jovens que nascem primeiro tendem a ser, por imperativo da natureza, mais altos e a possuir mais massa corporal do que outros que nascem mais tarde, embora sejam do mesmo grupo etário, criando uma pressão seletiva adicional nos mais novos no que à demonstração de atributos positivos diz respeito. Este tópico tem sido bastante investigado nas últimas décadas, em diversas áreas de intervenção, sendo o desporto infantojuvenil um dos principais alvos de pesquisa (figura 2).

Figura 2. O efeito da idade relativa é um fenómeno presente no desporto infantojuvenil. 
(foto da autoria de Manuel Pereira)

No futebol de formação, a dimensão do efeito do efeito da idade relativa tem sido amplamente estudada; porém, os investigadores não identificaram inequivocamente a sua origem, estando, atualmente, enquadrada no momento de seleção da criança/jovem para uma academia de futebol. Assim, o primeiro propósito desta investigação foi comparar a magnitude do efeito da idade relativa na entrada para uma academia de um clube da Premier League inglesa, com o tamanho desse efeito em crianças Sub-8 a competir numa liga regional que serve de base de recrutamento para academias profissionais de futebol.

A análise da distribuição das datas de nascimento em equipas profissionais sugere que o efeito da idade relativa atenue em faixas etárias mais avançadas. Estudos anteriores evidenciaram, no entanto, que o efeito da idade relativa persiste em equipas de futebol juniores, entre os Sub-15 e os Sub-18, sendo mais robusto em convocatórias para as seleções nacionais do que em equipas Sub-12 e Sub-14 ao nível dos clubes (Helsen et al., 2005). Portanto, falta alguma evidência científica que comprove a reversão do efeito da idade relativa no futebol de formação. O segundo propósito da investigação foi conduzir uma comparação longitudinal das taxas de retenção de indivíduos nascidos mais cedo e mais tarde no período de seleção (semestre 1 vs. semestre 2), numa academia profissional de futebol.

Ao nível do futebol mais básico – grassroots –, de índole regional/distrital, apenas um estudo comparou o efeito da idade relativa nos diferentes escalões etários (Helsen et al., 1998). Os resultados revelaram uma sobrerrepresentação de jogadores mais velhos (nascidos no primeiro trimestre do período de seleção) no grupo entre os 12 e os 16 anos de idade, mas não no grupo entre os 6 e os 10 anos de idade. No artigo em análise, os autores procuraram realizar uma comparação transversal mais abrangente do efeito da idade relativa no futebol regional, envolvendo quase 11000 jogadores de 12 escalões etários, dos Sub-7 aos Sub-18.

Métodos
Participantes: uma academia de categoria 1 da Premier League inglesa acedeu participar no estudo, facultando as datas de nascimento de 191 jogadores recrutados entre 2007 e 2012. Adicionalmente, a mesma academia forneceu uma lista com as datas de nascimento de 10857 crianças/jovens, do escalão Sub-7 ao Sub-18, a competir numa liga regional que serve de base de recrutamento para o clube. O anonimato e a proteção dos dados de todos os participantes foram assegurados no tratamento e na análise dos dados.

Procedimentos: através das datas de nascimento, os jogadores foram enquadrados em quartis (trimestres) ou metades anuais (semestres), em função da data de corte para inclusão na liga regional (no caso, 31 de agosto). Foram empregues diferentes testes estatísticos, que não interessa detalhar neste âmbito, para: (1) comparar as distribuições amostrais dos Sub-9 da academia e dos Sub-8 da liga regional, e de cada uma delas com a população geral de Inglaterra e do País de Gales, resultante dos censos efetuados nesses países; e, (2) para examinar o efeito da data de nascimento na progressão dos jogadores dentro da academia, entre os escalões Sub-9 e Sub-15.

Principais resultados
Comparando os Sub-8 da liga regional com a população geral verificou-se que, apesar de a diferença não ser significativa, o efeito apresentou uma dimensão pequena. O rácio de probabilidade Q1:Q4 (i.e., de se selecionar um indivíduo do primeiro quartil em relação a outro do quarto e último quartil) foi 1.4. No entanto, o mesmo rácio para jogadores Sub-9 da academia foi 8.6, sendo que as diferenças apuradas em relação à população geral e aos Sub-8 da liga regional obtiveram significância estatística. Na academia selecionada houve uma clara sobrerrepresentação de jogadores nascidos no quartil 1 (Q1) e uma sub-representação de jogadores nascidos no quartil 4 (Q4), ou seja, o efeito da idade relativa foi mais pronunciado no contexto da academia de um clube profissional (figura 3).

Figura 3. Distribuição das datas de nascimento dos jogadores Sub-9 da academia (preto) e dos Sub-8 da liga regional (cinzento).
(Jackson & Comber, 2020)

A assimetria nos quartis de nascimento – favorecendo os indivíduos nascidos nos quartis Q1 e Q2 –, foi consistentemente observada em todos os escalões etários da liga regional, excetuando nos Sub-18. A dimensão do efeito foi mais elevada nos escalões Sub-7 e Sub-15, alcançando valores considerados como médios.

Em relação às taxas de retenção na academia ao longo do tempo, não houve evidência de uma reversão do efeito da idade relativa. Deste modo, a probabilidade de retenção de indivíduos nascidos no segundo semestre foi menor comparativamente às taxas de retenção de indivíduos nascidos no primeiro semestre do período de seleção.

Implicações práticas
Os dados apresentados demonstram que o efeito da idade relativa é mais acentuado na seleção para academias de clubes profissionais, quando comparado com o que sucede a nível regional (grassroots). Os resultados demonstram que os scouts (olheiros) tendem a confundir o talento com atributos associados à idade cronológica. Por isso, é essencial que, nos momentos de observação de eventuais talentos ou jovens promessas, os treinadores/scouts devam estar conscientes da idade do jogador em relação aos seus pares. A utilização de identificadores (e.g., braçadeiras de cores distintas ou camisolas com os números dos quartis afetos à data de nascimento: de 1 a 4) é uma solução já avançada por alguns clubes/academias. Outra solução viável é promover eventos (torneios, jogos, treinos de captação, etc.) de acordo com o quartil de nascimento, sendo organizados, por exemplo, de três em três meses, começando por jogadores do Q1, depois do Q2 e assim sucessivamente. Esta medida permite mitigar, de alguma forma, as diferenças maturacionais existentes entre crianças/jovens nascidas no mesmo período/ano de seleção.

Conclusão
Os autores concluem o artigo manifestando incredibilidade pelo facto de, após mais de três décadas de pesquisa sistemática sobre o efeito da idade relativa no futebol (e noutros desportos), o efeito persistir e permanecer tão forte nos dias que hoje correm. Neste trabalho foi enfatizado o papel da pressão seletiva como provável moderador do tamanho do efeito da idade relativa no futebol infantojuvenil, ficando patente um efeito mais saliente na academia de categoria 1 de um clube da Premier League, relativamente a uma liga regional britânica. No cômputo geral, os jogadores nascidos no segundo semestre do período de seleção (Q3 e Q4) têm uma montanha muito mais íngreme para escalar no seu percurso rumo à concretização do sonho de se tornarem profissionais de futebol. Esse declive não se esgota no ato de seleção para uma academia de futebol, pois ainda se deparam com a dificuldade acrescida – a tal colina no topo da montanha que consta no título do artigo –, de se manterem na academia à medida que se vão aproximando do dito “sonho”.


P.S.:
1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;
2-  A leitura deste texto não dispensa a leitura integral do artigo em questão;
3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada no Journal of Sports Sciences.

Sem comentários: