24/06/2020

Artigo do mês #6 – junho 2020 | Tomada de decisão em treino no futebol juvenil: Evidências de diversos países europeus

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Roca, A., & Ford, P. R.

País: Inglaterra

Título: Decision-making practice during coaching sessions in elite youth football across European countries

Revista: Science and Medicine in Football

Referência: Roca, A., & Ford, P. R. (2020). Decision-making practice during coaching sessions in elite youth football across European countries. Science and Medicine in Football. doi: 10.1080/24733938.2020.1755051 (link)

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 6 – junho de 2020.

 

Apresentação do problema

Os investigadores na área da aprendizagem motora têm avaliado a importância da estrutura da prática na aquisição de habilidades durante o processo de treino. Este trabalho aborda uma questão crítica para treinadores e profissionais do futebol: o modo como as sessões de treino e as suas atividades devem de ser concetualizadas, no intuito de facilitar a aprendizagem e a aquisição de perícia no futebol. 

Um dos atributos que tem sido constantemente indicado para discriminar jogadores de alto nível de outros com níveis de desempenho mais baixos é a capacidade para antecipar e tomar decisões efetivas sob pressão durante o jogo. Neste sentido, o principal objetivo da atividade do treinador é promover a aquisição de competências que resultem em performances melhoradas no formato competitivo, através da prática de situações representativas que simulem as exigências desse mesmo formato (Pinder et al., 2011). A Abordagem Baseada nos Constrangimentos (Davids et al., 2008) é, neste âmbito, uma estrutura teórica relevante para concetualizar e criar ambientes de aprendizagem propícios para a aquisição de habilidades e para o transfer para a competição. Uma das estratégias mais efetivas dos treinadores passa por manipular os constrangimentos da tarefa, desenvolvendo atividades que fomentem a tomada de decisão ativa, também designadas de “atividades jogadas” (Ford et al., 2010), como os jogos reduzidos e/ou condicionados. 

O treino, em si, depende do contexto no qual estamos inseridos, pelo que é expectável que haja diferenças nas abordagens dos treinadores à prática entre países ou regiões pelo mundo fora, em parte como consequência de discrepâncias existentes na formação dos treinadores. Por exemplo, Ford et al. (2010) analisou a prática de 25 treinadores do futebol juvenil em Inglaterra e verificou que 65% das sessões de treino foram destinadas a atividades sem tomada de decisão ativa (exercícios analíticos e tarefas de condição física), ao contrário dos restantes 35%. Partington e Cushion (2013) investigaram as atividades propostas e os comportamentos de treinadores de futebol juvenil, a trabalhar numa academia de um clube da FA Premier League e comprovaram que estes agentes prescreveram mais atividades sem tomada de decisão ativa, em comparação com as atividades jogadas (53% e 47%, respetivamente). Estudos mais recentes, porém, evidenciaram que as atividades propostas em equipas de futebol juvenil em Inglaterra (Ford & Whelan, 2016) e na Austrália (O’Connor et al., 2018) envolveram uma maior quantidade de atividades em forma de jogo relativamente a situações analíticas sem tomada de decisão ativa. Estas alterações podem estar relacionadas com atualizações dos cursos de treinadores e revisões das linhas orientadoras para a aquisição de habilidades específicas do jogo nos países referidos (Ford & Whelan, 2016). 

Portanto, é necessária mais investigação que permita uma comparação direta das abordagens dos treinadores à prática, considerando uma amostra extensível a outros países para além do Reino Unido e da Austrália (figura 2). O propósito do estudo foi investigar os tipos de atividades práticas propostos por treinadores de futebol juvenil em diversos países europeus. A ideia passou por fornecer uma perspetiva global das abordagens dos treinadores à prática em algumas das nações de topo do futebol europeu. 

Figura 2. Atividades práticas propostas por treinadores de futebol juvenil: haverá diferenças entre países?(imagem não publicada pelos autores; fonte: ertheo.com)

 

Método

Amostra: 53 treinadores de futebol do género masculino, a trabalhar com jovens dos Sub-12 aos Sub-16, em 16 academias de clubes profissionais de futebol em 4 países europeus: Inglaterra – 10 treinadores com certificação UEFA B e 5 UEFA A; Alemanha – 8 UEFA B, 4UEFA e 2 UEFA Pro; A; Portugal – 6 UEFA B e 5 UEFA A; Espanha – 6 UEFA B, 5 UEFA A e 2 UEFA Pro. 

Procedimentos: foram examinadas 83 sessões de treino efetuadas nas academias de cada clube, num total de 20 sessões para os 4 clubes ingleses, 21 sessões para os 4 clubes alemães, 22 sessões para os 4 clubes portugueses e 20 sessões para os 4 clubes espanhóis. Um sistema de anotação manual foi utilizado in situ para recolher os dados de cada sessão (i.e., variáveis contextuais, início e final das atividades implementadas pelos treinadores e períodos de transição). O sistema de categorização das atividades encontra-se especificado na tabela 1.


Tabela 1. Categorias e definições das atividades relacionadas com a prática de futebol utilizadas na análise (adaptado de Roca & Ford, 2020).

Fiabilidade intra e inter-observador: 9 sessões aleatórias foram codificadas in situ, em duas ocasiões distintas separadas por uma semana de intervalo para o principal observador (intra-observador) e recorrendo a outro treinador de futebol (UEFA B) no decurso de uma semana (inter-observador). A percentagem de acordos foi 98.5% para o teste intra-observador e 96.3% para o teste inter-observador. 

Análise de dados: como as sessões variaram em duração, foram calculadas as percentagens de tempo passado nas atividades principais (e respetivas categorias) e nos períodos de transição. A comparação dos resultados foi executada pelo cálculo da estatística descritiva (média ± desvio-padrão) e pela aplicação de ANOVAs unifatoriais, com o método de correção de Bonferroni (post hoc) para comparações de pares. O nível de significância adotado foi de 5% (p < 0.05).

 

Principais resultados

Conforme podemos observar na figura 3, a percentagem de tempo passado em atividades com tomada de decisão ativa foi 62 ± 9% (média ± desvio-padrão), enquanto que para as atividades sem tomada de decisão ativa foi 20 ± 8%, com a percentagem remanescente (17 ± 3%) destinada a transições.

 

Figura 3. Percentagem média (desvio-padrão) da duração das sessões passada em atividades com tomada de decisão ativa (verde), sem tomada de decisão ativa (vermelho) e em transições (cinzento), em função do país analisado. (diferenças significativas: *p <.01 e **p <.001)

 

Atividades com tomada de decisão ativa

As percentagens de tempo das sessões passado em situações de jogo reduzido/condicionado foram entre 5 e 13% superiores nas equipas jovens portuguesas e espanholas, em relação ao observado para as equipas inglesas e alemãs (tabela 2). Nas outras categorias as percentagens foram similares, variando entre 7 e 11% para as habilidades (ativas), entre 5 e 8% para os jogos unidirecionais, entre 8 e 13% para os jogos de posse de bola e entre 1 e 5% para os jogos de fase.


Tabela 2. Percentagem média (± desvio-padrão) de tempo passado nas subactividades com e sem tomada de decisão ativa, em função do país. 


Atividades sem tomada de decisão ativa

A tabela anterior demonstra que a percentagem de tempo despendido em atividades de fitness para as equipas jovens alemãs foi entre 10 e 14% superior ao registado para as equipas inglesas, portuguesas e espanholas. Por sua vez, as equipas inglesas tiveram uma percentagem de tempo destinado ao treino técnico superior, entre 11 e 16%, comparativamente às equipas alemãs, portuguesas e espanholas. Por último, as percentagens de tempo associado a habilidades (não ativas) foram reduzidas, variando entre os 2 e os 5% para as equipas das 16 academias dos 4 países.

 

Conclusão

Este foi o primeiro estudo que procurou comparar a microestrutura das atividades propostas por treinadores de academias de clubes profissionais em países distintos. Houve diferenças significativas entre os países na quantidade de atividades propostas com e sem tomada de decisão ativa. Os jovens jogadores portugueses e espanhóis passaram mais tempo em atividades com tomada de decisão ativa, em especial em jogos reduzidos/condicionados, relativamente aos jovens ingleses e alemães. Este tipo de atividades proporciona mais oportunidades para desenvolver habilidades percetivas, cognitivas e motoras em contextos que, também, fomentam o transfer para a competição. Ao invés, os jovens ingleses e alemães passaram mais tempo em atividades sem tomada de decisão ativa, nomeadamente, em treino técnico nas academias britânicas e em exercícios de fitness nas germânicas. A sobreutilização desta tipologia de atividades está comprovada como sendo menos efetiva para a aprendizagem do jogo e para o transfer positivo de competências ligadas à tomada de decisão do contexto de prática para o competitivo.

 

Implicações práticas

Recomenda-se que os treinadores proponham mais situações representativas do jogo de futebol (e.g., jogos com regras adaptadas) durante as sessões de treino, fomentando o aumento do tempo útil de prática com atividade decisional. Como o tempo passado em transições foi cerca de 20% da duração total das sessões em todos os países analisados, os treinadores também se devem preocupar em ser mais efetivos e céleres nestes momentos, por forma a aumentar o tempo útil passado em tarefas práticas. Em linha com outras evidências científicas nas áreas da aprendizagem motora e do desenvolvimento da perícia no desporto, a exposição dos jovens jogadores a uma maior quantidade de atividades com tomada de decisão ativa favorece a transferência de competências específicas para o jogo competitivo.

 


P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

10/06/2020

A tomada de decisão no futebol, segundo o professor Duarte Araújo

No passado dia 20 de maio de 2020 tive a oportunidade de rever (virtualmente) o professor Duarte Araújo, convidado para uma conversa online na página do Facebook da Sapienta Sports. De entre as inúmeras formações e conversas à distância que segui, foi, sem margem para dúvida, uma das mais proveitosas dos tempos de confinamento. A temática da conversa esteve associada à principal área de investigação do professor – a tomada de decisão –, com especial incidência na modalidade futebol.

Conforme foi cabalmente esclarecido, a expressão “tomada de decisão” remete-nos para um conceito estático, decorrente do paradigma cognitivista ou mecanicista, que concebe o movimento humano em três etapas sucessivas: 1) captação dos estímulos informacionais pelos sentidos, 2) processamento da informação e decisão da resposta e 3) execução da resposta pelos órgãos efetores (no caso, os músculos). Porém, a teoria do processamento informacional tem sido descartada na área do desporto em prol de uma perspetiva mais ecológica, que equaciona o contexto como um parceiro contínuo e indispensável na seleção das ações que realizamos ou não. Os acoplamentos perceção-ação ajudam a entender o cariz imediato do comportamento humano em contextos de elevada variabilidade e imprevisibilidade, nos quais emergem inúmeras oportunidades de ação, as designadas affordances. Cada affordance é, por isso, circunstancial e reúne condições espaciotemporais muito particulares, que resultam das forças (equipas) em confronto.

Neste sentido, se o objetivo do treino é afinar ou calibrar a perceção de oportunidades de ação acoplada à execução de ações motoras apropriadas, tendo em consideração as capacidades individuais do jogador, não será algo paradoxal continuarmos a falar em “tomada de decisão”? De acordo com o professor Duarte, temos falta de vocabulário na Língua Portuguesa. Os britânicos usam o termo agency, uma espécie de inteligência, ou influência, que dirige a busca por determinadas affordances. A expressão “tomada de decisão”, ainda que mecanicista e estática, não deixa de fazer algum nexo, pois se há affordances sobre as quais o jogador atua, há outras que declina. Estas affordances são meras solicitações, circunstanciais como já referimos, que o indivíduo pode aceder ou não. O propósito do treino é desenvolver a modulação de affordances e dos ciclos contínuos de perceção-ação.

Depois temos de considerar a intenção, um aspeto fulcral em tudo aquilo que fazemos. A intencionalidade no futebol, ou em qualquer outro jogo desportivo, direciona os acoplamentos perceção-ação num determinado sentido. A intenção, per se, não determina o comportamento, porque deve ser convergente com o objetivo da tarefa. Por exemplo, ultrapassar um adversário numa situação um contra um (1v1) não é um fim em si mesmo; o portador da bola dribla o defensor para se aproximar da baliza, criar uma situação de finalização e, eventualmente, marcar golo. Neste contexto é fundamental reportarmo-nos à Abordagem Baseada nos Constrangimentos, inicialmente proposta por Karl Newell (1986), entretanto já aprimorada por outros autores, incluindo o professor Duarte Araújo (Figura 1).

Figura 1. O papel do acoplamento informação-movimento como base para o desempenho competente e para a aquisição de perícia no desporto (Chow, Shuttleworth, Davids, & Araújo, 2019).

As ações específicas do jogo resultam da interação permanente entre três tipos de constrangimentos: do indivíduo (características do jogador), da tarefa (i.e., exercício analítico, forma jogada ou jogo) e do ambiente (envolvimento). Desta interação gera-se um continuum de fontes de informação e comportamentos associados que despoletam os ciclos de affordances. À medida que o jogador se torna mais proficiente, desenvolve um acoplamento mais forte e estreito entre a informação existente num dado contexto e as ações que é capaz de executar. Quando treinadores questionam tão frequentemente a relevância destas estruturas teóricas para a prática, não posso deixar de me insurgir. Construtos teóricos de qualidade estarão sempre na base de uma prática lógica, válida e direcionada para o êxito. Permitam-me uma pergunta estapafúrdia: em contexto de ensino do futebol, será razoável colocar crianças Sub-7 a praticar 11v11? A maioria dirá logo que não. É evidente, uma vez que as fontes de informação determinadas pela complexidade da tarefa não estão adequadas às características dos praticantes no envolvimento em causa. O caos ocasionado pela tarefa não será devidamente resolvido pelos miúdos, ou seja, não serão bem-sucedidos. Conciliar estruturas teóricas de qualidade com estratégias e metodologias efetivas na prática aproxima-nos da concretização dos objetivos estabelecidos, sejam eles de caráter vincadamente pedagógico ou estritamente competitivo.

Achei especialmente feliz o exemplo que o professor concedeu a propósito do ex-treinador de basquetebol (e também professor) Jorge Araújo, que afirmava que não podia preparar a sua equipa para as competições europeias de igual forma ao que fazia para as competições nacionais. Tinha de promover o aumento do ritmo de jogo, proporcionando maiores restrições espaciotemporais e, com esse intento em mente, colocava a equipa a treinar situações de jogo 5v7 ou 5v8. Por inerência, entramos no conceito de “representatividade da tarefa”, que não tem apenas que ver com as características genéricas do exercício ou com o imitar o jogo em termos de componentes estruturais (tempo, espaço, número, regras, etc.). Na prática, o que importa é que os treinadores sejam capazes de refinar as funções dos jogadores, mantendo fontes de informações que estes podem usar em competição e com o seu próprio modo de ação.

Finalmente, as relações interpessoais subjacentes à configuração de uma equipa devem alicerçar-se em três pilares fundamentais que, além de coexistirem, sustentam todo o processo de performance no futebol, em particular, e nos jogos desportivos coletivos, em geral: estrutura, função e dinâmica (figura 2).

Figura 2. Componentes fundamentais para o desempenho da equipa.

Em suma, foram 60 minutos com muito "sumo" gratuito, contudo, como tudo nesta vida, cada um bebe o que quiser.


Referências

Chow, J. Y., Shuttleworth, R., Davids, K., & Araújo, D. (2019). Ecological dynamics and transfer from practice to performance in sports. In N. J. Hodges & A. M. Williams (Eds.), Skill acquisition in sport: Research, theory and practice (3rd Edition). Abingdon, Oxon: Routledge, Taylor & Francis Group.

Newell K. M. (1986). Constraints on the development of coordination. In M. G. Wade & H. T. A. Whiting (Eds.), Motor development in children: Aspects of coordination and control (pp. 341–360). Dordrecht: Martinus Nijhoff.