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06/08/2022

Fora da caixa

Podia dizer alguma coisa, mas prefiro o silêncio (figura 1). Um nada que para muitos nada é; para alguns, é pouco; para poucos, é muito; para muito poucos, raros, é tudo.

 

Figura 1. “Silêncio”, pintura de Wadim Chugriev (fonte: artmajeur.com).


Silêncio! A ausência de som aguça os sentidos e estimula o pensamento, a reflexão. Não tenho dúvidas que se encontra subvalorizado. O ser humano comum prefere o ruído, a azáfama e a excitação. Desde quando o comando da vida deixou de ter a opção “mute”? 

Cinco ou dez minutos de silêncio pode ser suficiente. É pedir muito? O dia tem mil quatrocentos e quarenta minutos. É reconfortante como nos podemos encontrar quando estamos calados. Quiçá, até, adquirir um novo rumo. Consoante o estado das ideias, elas propagam, fluem ou circulam com outra destreza e versatilidade. Tenho para mim, embora possa estar enganado – obviamente –, que as grandes descobertas da humanidade ocorreram na quietude. 

Para e escuta. Os sons da serra, da floresta, da cidade, da aldeia, da praia, do rio, do lago; os sons da Natureza. Permite-te romper o casulo mordaz que é o quotidiano. Projeta-te para fora da caixa e sintoniza-te com o mundo que te rodeia. Criar sinergias através da paz, do silêncio, do nada que pode ser tudo? Parece descabido de tão simples que é. 

Busco o silêncio cegamente como nunca o fiz, na esperança de que me possa cultivar fora da caixa.

02/07/2021

Um comentário sobre a promoção do #(un)EqualGame no UEFA EURO 2020

A UEFA organiza a cada quatro anos o campeonato europeu de futebol. A 16.ª edição do torneio, que era para ter sido disputada no verão de 2020, encontra-se a decorrer um ano depois (2021) em virtude da pandemia mundial da COVID-19 que a todos nos tem afetado (figura 1). A entidade que tutela o futebol no continente europeu continua a apelar ao “respeito” neste evento, através da campanha #EqualGame (“jogo de igualdade”), uma medida de responsabilidade social que, segundo a UEFA (2017), “procura defender e promover a incrível e muitas vezes inspiradora diversidade existente no futebol europeu, com as estrelas, desde as raízes até à elite, a conferirem o seu apoio sempre crucial”.

 

Figura 1. Logotipo da competição UEFA EURO 2020 (fonte: pt.uefa.com).

 

Foi precisamente o “jogo de igualdade”, o tal #EqualGame (figura 2) que tem como propósito promover o “respeito” enquanto valor basilar da nossa sociedade, que me fez tecer algumas considerações sobre outras medidas, a meu ver incongruentes, que a UEFA tomou especificamente para o atual EURO 2020. Se é verdade que o futebol tem o condão de criar e transmitir referências positivas para a sociedade em geral, então o exemplo deveria provir do incomensurável mediatismo que a elite possui. Em bom português, o exemplo deveria vir de cima e não veio, porque o “jogo de igualdade” assente na eliminação de fatores de confusão passíveis de deturpar a qualidade (individual e coletiva) dos protagonistas não foi devidamente salvaguardado a priori. Tentarei, em seguida, fundamentar esta minha opinião em dois pontos distintos: 1) determinação dos potes para o sorteio dos grupos do certame; 2) organização da competição por diversas cidades-anfitriãs.

 

Figura 2. Logotipo da campanha #EqualGame da UEFA (fonte: efdn.org).

 

Determinação dos potes para o sorteio dos grupos do UEFA EURO 2020

Ao contrário do que sucedeu em campeonatos europeus de futebol anteriores, o ordenamento dos potes pré-sorteio da fase de grupos somente considerou o “ranking” global da qualificação europeia que, excluídos os resultados frente às equipas que terminaram em último lugar, foi definido segundo os seguintes critérios: a) posição final do grupo; b) pontos; c) diferença de golos; d) golos marcados; e) golos marcados fora; f) número de vitórias; g) número de vitórias fora; h) total mais baixo de pontos disciplinares (3 pontos por cartão vermelho, incluindo o segundo amarelo, 1 ponto por cartão amarelo por cada jogador num jogo); i) posição global no “ranking” da UEFA Nations League.

A título de exemplo, Portugal alcançou o 2.º lugar do grupo de qualificação, com 5 vitórias, 2 empates e uma derrota. Conjugando os diversos critérios, e como não era um dos países com cidade-anfitriã, pois cada grupo tinha de ter um ou dois países com cidades-anfitriãs, ficou colocado no pote 3. Toda a história recente em competições oficiais da UEFA (vencedor do UEFA EURO 2016 e da UEFA Nations League 2019) não teve nenhum peso na hora de distribuir as seleções pelos potes, o que acabou por originar uma fase de grupos ridiculamente díspar (e.g., Grupo C – Países Baixos #16 ranking FIFA; Áustria #23; Ucrânia #24; Macedónia do Norte #62; Grupo F – França #2 ranking FIFA; Portugal #5; Alemanha #12; Hungria #37). Portanto, os campeões do mundo de 2014 (Alemanha) e 2018 (França), e o campeão europeu de 2016 (Portugal) ficaram no mesmo grupo. 

Posto isto, deixo duas questões para reflexão:

 

1)  Será que, de facto, os novos critérios adotados na fase de qualificação para o EURO 2020 foram uma promoção do #EqualGame e do “fair-play”, ou algumas seleções foram prejudicadas (e outras beneficiadas) face aos regulamentos que vigoraram até este torneio em particular?

2)  Terá sido uma coincidência que todas as equipas do grupo F, o designado “grupo da morte”, tenham ficado pelo caminho nos oitavos-de-final da prova, ou as exigências competitivas experienciadas durante o curto período da fase de grupos, em conjugação com o elevado número de jogos efetuado por grande parte dos jogadores destas seleções ao longo da época, não tenha de alguma forma contribuído para um rendimento abaixo do esperado?

 

Organização da competição por diversas cidades-anfitriãs europeias

Antes do EURO 2020, todas as edições da competição foram disputadas em um ou dois países. Normalmente, o país organizador recebe todas as seleções apuradas; porém, em caso de organização conjunta, os jogos são realizados em dois países, conforme aconteceu em 2012 na Polónia e na Ucrânia. Para a prova que agora decorre, a UEFA tomou a pioneira decisão de dispersar os jogos por 11 cidades-anfitriãs de países diferentes: Amesterdão (Países Baixos), Baku (Azerbaijão), Bucareste (Roménia), Budapeste (Hungria), Copenhaga (Dinamarca), Glasgow (Escócia), Londres (Inglaterra), Munique (Alemanha), Roma (Itália), São Petersburgo (Rússia) e Sevilha (Espanha). 

De acordo com a UEFA, a dispersão do EURO 2020 pelo território europeu foi a melhor solução, de modo a facilitar mudanças caso algum problema sanitário surja numa das cidades-anfitriãs devido aos tempos pandémicos que vivemos. No intuito de acautelar imponderáveis sanitários, esta medida foi bem pensada pela UEFA, no entanto, não se devia ter ignorado um fenómeno bem documentado associado à localização do jogo: o “efeito da vantagem de jogar em casa” (home advantage effect). Este constructo traduz-se na obtenção de melhores resultados desportivos quando um atleta ou equipa compete no seu estádio ou arena, comparativamente a quando o faz no reduto do(s) oponente(s) e é originado por uma rede complexa de fatores: suporte do público, familiaridade com o estádio/arena, territorialidade, efeitos da viagem, parcialidade da equipa de arbitragem, etc. (Pollard, 2008). 

Em especial no futebol, 57–62% dos pontos conquistados nas principais ligas europeias de clubes acontecem na condição de visitado, i.e., em “casa” (Almeida & Volossovitch, 2017; Lago-Peñas et al., 2016; Leite & Pollard, 2018), enquanto nas fases de qualificação para o Campeonato do Mundo da FIFA a magnitude do efeito varia entre os 56 e os 69% (Pollard & Armatas, 2017). A propósito do EURO 2020, 24 jogos da fase de grupos ocorreram com equipas visitadas/visitantes e 12 foram realizados em circunstâncias neutras. A tabela 1 mostra a distribuição dos resultados finais dos 24 jogos realizados com uma equipa a jogar em “casa”.

 

Tabela 1. Frequências absolutas e relativas de vitórias, empates e derrotas em “casa” na fase de grupos do EURO 2020.


Independentemente da qualidade das equipas, aspeto absolutamente fulcral para o resultado desportivo, podemos verificar que, em cerca de 71% dos jogos, a equipa visitada não saiu derrotada no decurso da fase de grupos, uma evidência inequívoca que reforça a relevância do fator “casa” na obtenção de sucesso em competições de futebol de elite. Por si só, este já constitui um fator de desigualdade em relação a campeonatos europeus prévios, mas não nos fiquemos por aqui. Em cada cidade-anfitriã, o número de adeptos permitidos nos estádios diferiu em função da situação epidemiológica vigente em cada país. Se, por exemplo, em Glasgow houve um total de 9847 espetadores no estádio para assistir ao jogo entre Escócia e República Checa, em Budapeste, a Hungria disputou os jogos contra Portugal e Franca, com 55662 e 55998 espetadores, respetivamente. Embora nem todas as investigações científicas tenham produzido conclusões unânimes neste âmbito, alguns estudos demonstraram a existência de uma relação positiva entre o número de espetadores nos estádios e a magnitude da vantagem de jogar em casa (Goumas, 2013; Pollard & Armatas, 2017; Ponzo & Scoppa, 2018), o que aumenta um pouco mais a controvérsia em torno deste novo formato implementado pela UEFA. 

Depois, há ainda que considerar os efeitos das viagens. Em jogos da fase de qualificação para Campeonatos do Mundo da FIFA, Pollard e Armatas (2017) reportaram um decréscimo significativo de 0.05 pontos/jogo por cada fuso horário atravessado pela equipa visitante. Outras investigações mostraram um aumento da magnitude da vantagem de jogar em casa quando a equipa visitante viajou longas distâncias (e.g., ≥ 4000 km) (Goumas, 2014; Pollard et al., 2008). A verdade é que nem todas as seleções mantiveram as mesmas rotinas de um jogo para outro no EURO 2020 (tabela 2). Se a Inglaterra disputou os 4 jogos que fez até ao momento em Londres (Wembley), tal como a Alemanha, a Dinamarca, a Espanha, a Itália e os Países Baixos não saíram de Munique, Copenhaga, Sevilha, Roma e Amesterdão, respetivamente, durante a fase de grupos, a seleção da Suíça, a título de exemplo, teve de viajar mais de 12000 km entre Roma e Baku. Ainda que não determine explicitamente a classificação final no evento, este é outro fator que não se coaduna com a igualdade e o respeito, que tanto a UEFA tem vindo a incitar, pelos principais intervenientes no jogo.


Tabela 2. Número de jogos disputados por cada seleção em "casa", em terreno neutro e fora, incluindo a fase de grupos e os oitavos-de-final do EURO 2020.

Nota: A cinzento constam as seleções apuradas para os quartos-de-final do EURO 2020.


Considerações finais

“Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias”. É compreensível que a UEFA fizesse algo de diferente para lidar com a pandemia da COVID-19, se bem que as medidas ora discutidas avançaram muito antes da propagação do vírus na Europa. Por um lado, é admissível que a dispersão do evento por diferentes cidades-anfitriãs possibilite uma resposta mais eficaz a eventuais crises sanitárias; por outro lado, é espantoso que a UEFA não tenha equacionado o historial recente das seleções apuradas no ordenamento dos potes, nem a importância que o efeito ancestral da vantagem de jogar em casa pode ter no desfecho do torneio. 

Em edições anteriores, apenas os países organizadores puderam usufruir do fator “casa” e as distâncias percorridas por cada seleção, além de mais uniformes, foram substancialmente mais curtas. Por isso, a campanha de promoção do respeito #EqualGame surge conspurcada por uma série de decisões que primou por tornar o campo inclinado neste EURO 2020: o #(un)EqualGame. O respeito conquista-se e incentiva-se quando há uma convergência óbvia entre aquilo que se apregoa e o que se executa. Neste sentido, a UEFA pecou nas três dimensões do conceito de respeito: pela própria entidade, ao não ser coerente nas suas ações; pelo outro, ao fomentar um jogo desigual entre as diversas seleções; pelo contexto, ao ignorar o historial recente de cada equipa nacional, bem como o vasto leque de evidências científicas sobre o fator “casa”, na tomada de decisões. Na minha perspetiva, o que fica deste evento competitivo faz jus a um conhecido provérbio português: “de boas intenções está o inferno cheio”.

 

Referências

Almeida, C. H., & Volossovitch, A. (2017). Home advantage in Portuguese football: Effects of level of competition and mid-term trends. International Journal of Performance Analysis in Sport, 17(3):244–255. https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1331574

Goumas, C. (2013). Modelling home advantage in sports: A new approach. International Journal of Performance Analysis in Sport, 13(2), 428–439. https://doi.org/10.1080/24748668.2013.11868659

Goumas, C. (2014). Home advantage in Australian soccer. Journal of Science and Medicine in Sport, 17(1), 119–123. https://doi.org/10.1016/j.jsams.2013.02.014

Lago-Peñas, C., Gómez-Ruano, M., Megias-Navarro, D., & Pollard, R. (2016). Home advantage in football: Examining the effect of scoring first on match outcome in the five major European leagues. International Journal of Performance Analysis in Sport, 16(2), 411–421. https://doi.org/10.1080/24748668.2016.11868897

Leite, W., & Pollard, R. (2018). International comparison of differences in home advantage between level 1 and level 2 of domestic football leagues. German Journal of Exercise and Sport Research, 48(2), 271–277. https://doi.org/10.1007/s12662-018-0507-2

Pollard, R. (2008). Home advantage in football: A current review of an unsolved puzzle. The Open Sports Sciences Journal, 1, 12–14. https://doi.org/10.2174/1875399X00801010012

Pollard, R., & Armatas, V. (2017). Factors affecting home advantage in football World Cup qualification. International Journal of Performance Analysis in Sport, 17(1-2), 121–135. https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1304031

Pollard, R., Silva, C. D., & Medeiros, N. C. (2008). Home advantage in football in Brazil: Differences between teams and the effects of distance traveled. Brazilian Journal of Soccer and Science, 1(1), 3–10.

Ponzo, M., & Scoppa, V. (2018). Does the home advantage depend on crowd support? Evidence from same-stadium derbies. Journal of Sports Economics, 19(4), 562–582. https://doi.org/10.1177/1527002516665794

UEFA (2017). #Equalgame. https://pt.uefa.com/insideuefa/social-responsibility/respect/

  

P.S. – Há duas semanas, a UEFA comunicou a suspensão da regra do “golo fora” nas competições de clubes que organiza. Apesar de a deliberação não ter sido consensual no seio do comité técnico da entidade, passou. Numa era em que treinadores e outros profissionais do treino alertam para a necessidade de haver um maior respeito pela integridade física e psicoemocional dos jogadores, devido à exposição regular a calendários anuais altamente congestionados de jogos, a UEFA volta a ignorar os apelos dos agentes no terreno e suspende a regra do “golo fora”. Consequências? Estilos de jogo mais defensivos adotados pelas equipas visitantes, que não beneficiarão tanto em marcar um ou mais golos fora e, sobretudo, aumento da carga física e emocional fruto de mais tempo de jogo, através de prolongamentos e desempates por grandes penalidades. Tudo em prol do espetáculo e do #EqualGame.

22/02/2021

“Mind the fundamentals”: As vantagens do princípio cultural “amplitude/espaço”

A complexidade inerente ao jogo de futebol faz com que um “frame”, uma singela imagem, tenha o significado de um punhado de areia num vasto deserto. Há, no entanto, quem o contradiga, na medida em que uma imagem vale por mil palavras. Uma imagem pode, até certo ponto, captar alguns fatores que determinam uma dada realidade. 

Numa época marcada por circunstâncias sem precedentes, face à pandemia mundial da COVID-19, o Sport Lisboa e Benfica decidiu investir como nunca para recuperar a hegemonia interna no que ao futebol profissional diz respeito. Contudo, os resultados desportivos estão longe de ser fazer jus aos milhões despendidos. Enquanto uns criticam a permeabilidade defensiva da equipa, outros apontam o dedo à ineficácia do setor intermédio na etapa de criação de situações de finalização e outros, ainda, referem que os avançados não têm qualidade suficiente. Se os jogadores estão a ser ostracizados pela parca produtividade no jogo, nem a equipa técnica, nem a estrutura do clube, podem sair ilibadas. 

Perante o nulo registado ontem, em Faro, Jorge Jesus referiu que “falta um homem que meta a bola lá dentro”. Sim, se é verdade que poderiam ter vencido o jogo, parece ser uma análise, no mínimo, redutora, até porque o problema não é de agora (e ainda não foi corrigido). Tomemos em consideração a figura 1.

 

Figura 1. SL Benfica em processo ofensivo, com 8 jogadores concentrados num espaço de ≈ 36x40m, em inferioridade numérica, no decurso do minuto 80 (fonte: vsports.pt).

 

Segundo um dos princípios culturais do jogo – “amplitude/espaço” –, quando a equipa recupera a posse de bola deve aumentar o seu espaço efetivo de jogo (em largura e profundidade). Genericamente, quanto maior for a densidade de jogadores adversários, mais estreitos serão os caminhos para chegar à baliza e tentar a finalização, ou seja, mais difícil se torna criar oportunidades claras de golo. Não é precisamente isto que tem acontecido? 

Por outro lado, quando uma equipa cumpre com propriedade este princípio tático básico, tende a expandir as distâncias entre os jogadores adversários, condicionando as ações de marcação dos oponentes e os eventuais comportamentos defensivos de suporte – as coberturas defensivas. Com mais tempo e espaço para executar, qualquer equipa dota as ações (individuais e coletivas) dos seus elementos de maior qualidade e eficácia. Com o princípio espaço, também se garante a ocupação de zonas menos congestionadas de adversários, nas quais a pressão defensiva é menor e a progressão mais viável. Quer a equipa opte por atrair fora (corredor lateral) para penetrar por dentro (corredor central), ou vice-versa, as vantagens ofensivas suplantam as desvantagens defensivas que podem decorrer de maior exposição e projeção no ataque. E uma equipa que quer estar no topo tem de saber lidar com o risco, sem descurar as bases sobre as quais o sucesso assenta. 

Mister Jorge Jesus, como diria a malta norte-americana perita no basquetebol: “please, mind the fundamentals”.

25/01/2021

Equilíbrio competitivo nas 6 melhores ligas europeias na última década (2010–2020), com especial referência à Primeira Liga

Há dias, a Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS, sigla na língua inglesa) classificou a Primeira Liga (Liga NOS) como a sexta melhor do mundo em 2019, à frente de ligas como a Bundesliga (alemã) e a Ligue 1 (francesa). Sinceramente, não procurei saber os critérios que nortearam a atribuição de pontos pela IFFHS, mas não deixa de ser um pouco estranho, visto que, somente em 2019/2020, a Primeira Liga recuperou a sexta posição no ranking de ligas da UEFA, por troca com a Rússia. 

A antítese da competitividade no futebol profissional português foi aqui debatida há dois anos. Por essa altura, foi citado um estudo brasileiro (Da Silva et al., 2018) que concluiu que a Primeira Liga era a que mostrava menor equilíbrio competitivo de entre as 7 ligas analisadas (Alemanha, Brasil, França, Espanha, Inglaterra, Itália e Portugal). Os investigadores também verificaram que, na liga portuguesa, o desequilíbrio competitivo (ou a desigualdade entre os 4 primeiros classificados e as restantes equipas) tem vindo a aumentar significativamente ao longo do tempo. Embora este estudo tenha analisado um período de 13 épocas consecutivas (2003/2004–2015/2016), utilizou apenas uma métrica subjacente ao equilíbrio competitivo (C4 Index of Competitive Balance), que mede a desigualdade entre os 4 primeiros classificados da tabela final de cada época e as restantes equipas e não, exclusivamente, o (des)equilíbrio competitivo da totalidade das equipas que compõem a liga. 

No relatório da IFFHS, divulgado no passado dia 20 de janeiro de 2021, é mencionado que a Primeira Liga subiu 4 posições no ranking das melhores ligas em relação a 2018. Em face deste novo e surpreendente facto, urge averiguar o que aconteceu ao equilíbrio competitivo nas melhores ligas europeias na última década. Será que o equilíbrio competitivo da Liga NOS se aproximou das outras ligas europeias de referência ou, ao invés, os clubes de maior dimensão cavaram ainda mais o fosso para os ditos “clubes pequenos”? 

Para o efeito, foram calculados valores de duas variáveis comummente aplicadas neste âmbito (Michie & Oughton, 2004):

· Five-club Concentration Index of Competitive Balance (C5ICB) – Índice C5 de Equilíbrio Competitivo: mede o grau de desigualdade entre os 5 clubes de topo numa liga e os restantes, relativamente a um valor ideal que seria alcançado numa liga perfeitamente equilibrada, com um qualquer número de equipas. Valores mais elevados traduzem uma redução do equilíbrio competitivo e um aumento da dominância dos 5 primeiros classificados.

·  Herfindahl Index of Competitive Balance (HICB) – Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl: através da proporção de pontos conquistados por cada equipa, avalia as desigualdades entre todos os clubes que compõem uma liga, também ponderando o valor ideal que seria atingido numa liga perfeitamente equilibrada, com um qualquer número de equipas. Quanto maior for o valor do índice, menor é o equilíbrio competitivo. Numa liga perfeitamente equilibrada, o índice de Herfindahl assume um valor similar a 100.


Em relação à primeira métrica, a figura 1 exibe a variação do equilíbrio competitivo nas 6 melhores ligas europeias ao longo da última década. 

 

Figura 1. Variação do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo nas 6 melhores ligas europeias na última década.

 

Como podemos constatar, a Primeira Liga (a verde) é uma das que apresenta valores consecutivamente mais elevados no Índice C5 de Equilíbrio Competitivo, ao invés do que sucede, por exemplo, com a Ligue 1 (a lilás). Isto significa que a dominância dos 5 primeiros classificados, em relação às outras equipas que compõem a liga, é das mais elevadas nas ligas em análise, o que reflete uma maior desigualdade ou, por outras palavras, um menor equilíbrio competitivo. Para atestar esta evidência, a tabela 1 expõe os valores médios do Índice C5 apurados para a década 2010–2020.

 

Tabela 1. Médias e desvios-padrão do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo para as 6 melhores ligas europeias de futebol, na década 2010–2020.

É, também, curioso verificar que a Premier League e a LaLiga são as ligas que maior dispersão (desvios-padrão) apresentam em relação à média, o que sugere que a desigualdade entre os 5 primeiros classificados e as restantes equipas tende a ser mais inconstante de época para época. Por sua vez, além de ser a segunda liga mais equilibrada, a Bundesliga é a prova cujo Índice C5 de Equilíbrio Competitivo é mais regular ao longo do tempo. 

Se fizermos uma análise isolada do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo na Primeira Liga, ficamos em posição de perceber que houve uma tendência crescente ao longo da última década (figura 2), ou seja, a desigualdade entre as equipas do topo da tabela e as outras aumentou. 

 

Figura 2. Linha de tendência do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo na Primeira Liga (2010-2020).

 

Porém, ao considerarmos os valores médios por época do conjunto das outras ligas europeias de referência, foi observada uma tendência similar, mas com um declive bem mais pronunciado (figura 3). Portanto, ainda que a desigualdade entre as equipas de topo e as restantes esteja a aumentar na Primeira Liga, a competição portuguesa está a aproximar-se da média das melhores ligas europeias, o que pode explicar parte dos recentes dados publicados pela IFFHS.

 

 Figura 3. Linha de tendência do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo para a média de valores, por época, do conjunto composto por Bundesliga, LaLiga, Ligue 1, Premier League e Serie A (2010-2020).

 

A segunda variável – Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl –, que envolve a proporção de pontos conquistados por todas as equipas de uma liga, traça um cenário ligeiramente diferente para as 6 melhores ligas europeias e, em particular, para a Primeira Liga (figura 4).

  

Figura 4. Variação do Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl nas 6 melhores ligas europeias na última década.

 

À primeira vista sobressai uma linha verde (Primeira Liga) mais uniforme e destacada das restantes. Por outro lado, ao contrário do Índice C5 de Equilíbrio Competitivo, parece que a linha segue uma tendência decrescente. De facto, a tabela 2 revela que, segundo este índice, a Primeira Liga apresenta um menor equilíbrio competitivo (valores mais elevados) em relação às outras ligas europeias. A Ligue 1 continua a liderar no que ao equilíbrio competitivo diz respeito, e a Premier League e a LaLiga trocam de posição. Neste parâmetro, a Ligue 1 é a prova com equilíbrio competitivo mais uniforme, ao invés do que sucede com a LaLiga e a Serie A, que mostram valores de dispersão (desvios-padrão) mais altos relativamente à média.

 

Tabela 2. Médias e desvios-padrão do Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl para as 6 melhores ligas europeias de futebol, na década 20102020.


A análise isolada do Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl na Primeira Liga corrobora a perceção inicial: houve uma tendência decrescente ao longo da última década (figura 5), ou seja, a liga portuguesa tem-se tornado mais competitiva. Não obstante qualquer razão apontada não passe de pura especulação, estou a crer que a crescente profissionalização da estrutura de alguns clubes ditos “pequenos” possa estar a contribuir para que a liga portuguesa esteja a melhorar. Face ao disposto no Índice C5 de Equilíbrio Competitivo, talvez seja incorreto pensarmos que os “clubes grandes” estejam a perder supremacia na competição. 

 

Figura 5. Linha de tendência do Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl na Primeira Liga (2010-2020).

 

Por último, não podemos omitir a linha de tendência que resulta do combinado das outras 5 ligas europeias (figura 6).

 

Figura 6. Linha de tendência do Índice de Equilíbrio Competitivo de Herfindahl para a média de valores, por época, do conjunto composto por Bundesliga, LaLiga, Ligue 1, Premier League e Serie A (2010-2020).

 

Estes dados comprovam, até certa medida, o salto qualitativo da Primeira Liga para a IFFHS, em 2019: se na principal liga portuguesa de futebol o equilíbrio competitivo está a aumentar, a média provinda das 5 melhores ligas europeias expressa a tendência oposta. Em suma, de entre as 6 melhores ligas europeias para a UEFA, a portuguesa é a menos competitiva, contudo, na última década, tem vindo a aproximar-se do valor médio das ligas europeias de topo. Para bem do futebol português, é bom que assim continue! 

 

Referências Bibliográficas

Da Silva, C. D., Abad, C. C. C., Macedo, P. A. P., Fortes, G. O. I., & do Nascimento, W. W. G. (2018). Equilíbrio competitivo no futebol: Um estudo comparativo entre Brasil e as principais ligas europeias. Journal of Physical Education, 29, e2945. https://doi.org/0.4025/jphyseduc.v29i1.2945

Michie, J., & Oughton, C. (2004). Competitive balance in football: Trends and effects. Football Governance Research Centre.

31/12/2020

Dois mil e vinte

Desde que a memória me assiste, dois e mil e vinte (figura 1) foi, sem margem para dúvidas, o ano mais estranho que vivenciei. Não me parece que seja um sentimento estritamente pessoal, na medida em que diversas cabeças, por este mundo fora, têm prestado a mesma sentença. Pode ter havido conquistas, mas as perdas ultrapassam substancialmente o que, avulso, possamos ter conseguido ou adquirido. 

 

Figura 1. Um 2020 que ficará para a posterioridade pelos piores motivos (fonte: depositphotos.com).

 

Dois mil e vinte foi o ano pandémico, o ano da COVID-19, o ano das palavras “confinamento”, “isolamento”, “máscara” ou “desinfetante”. Singelas palavras que tiveram o condão de alterar por completo as nossas rotinas do quotidiano e, se me permitem o atrevimento, as relações humanas. As repercussões da (potencial) infeção pelo novo Coronavírus vão muito além das consequências fisiológicas e epidemiológicas. Longe de ser uma mera “gripe”, como muitos incautos nos quiseram fazer crer nos meios mais frequentados (porém, menos fidedignos) que utilizamos para nos conectar – as redes sociais –, a pandemia nunca se cingirá às largas dezenas de milhões de casos detetados no mundo e aos quase dois milhões de mortes que causou, ou ajudou a causar. 

Por um lado, será que a humanidade manterá a sua relação despótica com a natureza? Chegamos a um ponto da nossa evolução em que almejamos ditar as leis da natureza. Voluntária ou involuntariamente, de modo mais ou menos consciente, não é isso que importa agora esmiuçar, foi o ser humano que dispôs as condições para que este vírus proliferasse. Numa cambalhota quase “cármica”, a natureza logrou colocar-nos no devido lugar, acautelando-nos que as nossas ações, enquanto espécie, têm limites e produzem consequências. Talvez a pandemia deva ser interpretada como uma lição para o futuro. 

Por outro lado, se é verdade que vida que se perde jamais se recupera, ninguém deveria ser prescindível ou entrar em sistemas de prioridades, o que aconteceu por falta de capacidade de resposta de uma civilização que, em pleno séc. XXI, tomávamos como evoluída. As limitações dos sistemas sociais contemporâneos chegaram ao cúmulo de termos de escolher quem vive e quem morre numa era marcada pela (alta) tecnologia e pela abrangência das redes comunicação. Questionemos o que sentem, por exemplo, as pessoas que perderam familiares (pais, avós, irmãos, tios, etc.) por não haver ventiladores suficientes. Mais, nesta era também governada pelas vicissitudes das economias, quantas vidas estão ou ficarão comprometidas pela pandemia? E os efeitos colaterais do isolamento social? Foram ou são contabilizadas as pessoas que, não falecendo de COVID-19, partiram de outras maleitas potenciadas pela ausência de afeto e de carinho? Infelizmente, não. Na minha família, isso aconteceu duas vezes no período de uma semana, em julho. 

Não sou, de modo algum, contra as medidas que foram implementadas pelas autoridades competentes, nem tampouco invejo os representantes que têm de tomar decisões dificílimas nesta fase crítica, ou os profissionais de saúde que estão na linha da frente a fazer o que podem, e o que não podem, para dar a melhor resposta possível à população, salvando vidas. Tiro-lhes o chapéu! Sinceramente, não sei o que poderia ter sido feito de diferente para atenuar os efeitos adversos do dito isolamento social, reduzindo, em simultâneo, o risco de contágio. Há variáveis que, simplesmente, não conseguimos controlar. 

Ignoro o que futuro nos reserva, se anos mais felizes ou mais experiências do género, contudo, acredito que cada um de nós, individualmente, pode fazer algo pelo todo. Se o “algo” individual for positivo, então o todo (humanidade) viverá, seguramente, anos menos conturbados e mais felizes. Ao menos, que a esperança nos guie para que o planeta e os nossos descendentes possam coexistir em harmonia. Porque enquanto houver vida, perdura a esperança (figura 2). 

 

Figura 2. Vidas que redobram a esperança num próspero 2021.

 

Que dois mil e vinte e um nos faça virar a página para melhor. Sem exceções: votos de saúde!

11/12/2020

O "Linha de Passe" no Facebook Live da Sapienta Sports

Na passada quarta-feira, 9 de dezembro de 2020, o blogue Linha de Passe foi protagonista na edição mais recente do Facebook Live da Sapienta Sports. Para quem não teve oportunidade de seguir a conversa em direto com o David Sousa, pode fazê-lo aqui através da visualização do vídeo seguinte.




A partir do tema "Escrever Futebol", a conversa tocou diversos aspetos do treino e do jogo de futebol. Esperamos que a reflexão e as ideias que surgiram durante o diálogo possam ser de alguma forma úteis para todos os que nos acompanharam. 

Como fundador e representante do blogue, expresso o meu muito obrigado ao David e à Sapienta Sports pelo convite.

06/07/2020

Uma breve reflexão sobre o recrutamento de treinadores para o futebol de formação na era digital

Com a preparação da nova época (2020/2021), há inúmeros clubes que já formalizaram a apresentação de treinadores/equipas técnicas e outros encetaram diligências para contratá-los. Na minha caixa de correio têm caído alguns e-mails com ofertas de trabalho para suprir lacunas em determinados escalões etários de clubes de futebol, em Portugal. São ofertas genéricas enviadas em massa para uma bolsa de treinadores, sendo a seleção dos interessados executada a posteriori. Como último recurso, nada tenho contra, embora seja recomendado a contratação de alguém que conhecemos e reconhecemos competência no seu trabalho (figura 1).

Figura 1. Recrutamento de treinadores para o futebol de formação na era digital (época 2020/2021).


Então, há uns dias, recebi um e-mail com a seguinte mensagem:

 

Oferta de Vaga - Treinador Fut. 11 - Sub.17

 

Boa tarde

O clube X está á procura de treinador para o escalão de sub 17. O cargo é remunerado. A entrevista para o cargo carece de apresentação do CV e do modelo de jogo. 

Cumprimentos,

(…)

O coordenador

 

Reparem que mantive o anonimato da entidade desportiva e do responsável para não ferir suscetibilidades. É uma mensagem perfeitamente normal, que faz alusão à remuneração (ainda há quem trabalhe a custe zero), porém, com um senão: a apresentação do modelo de jogo. Tive de ler duas vezes para, de facto, confirmar que era realidade. 

Imagine-se que sou um potencial interessado, mas não conheço o clube, a sua missão e visão, o seu plano estratégico, os seus objetivos, as características dos jovens que irão constituir o plantel, o seu passado desportivo no clube ou fora dele, a própria competição em que irão estar inseridos, como é que iria apresentar um modelo de jogo minimamente válido? 

Não serviria a entrevista inicial para avaliar a perceção do treinador acerca dos aspetos atrás referidos, dando também a entender o projeto desportivo do cube e aquilo que se pretende, em particular, para o departamento de formação? Neste primeiro momento de contacto, não seria importante conhecer em traços gerais a pessoa, a sua disponibilidade, a sua motivação e, depois, solicitar esclarecimentos sobre o seu percurso enquanto treinador, tendo por base o Curriculum Vitae? E já agora, o que se iria discutir na apresentação de um modelo de jogo fictício: posicionamentos, movimentos, métodos de jogo, esquemas táticos? Será suposto andar com um “modelo de jogo” no bolso para o caso de eu pretender voltar ao ativo? 

É impressão minha ou as prioridades no futebol de formação continuam invertidas em pleno ano de 2020?

Votos de uma boa época para todos!

25/04/2020

Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago


Em palavras ao alcance de toda a gente, do que se tratava era de pôr de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre-amarela, quando os barcos contaminados ou só suspeitos de infeção tinham de permanecer ao largo durante quarenta dias, até ver. Estas mesmas palavras, Até ver, intencionais pelo tom, mas sibilinas por lhe faltarem outras, foram pronunciadas pelo ministro, que mais tarde precisou o seu pensamento, Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta semanas, ou quarenta meses ou quarenta anos, o que é preciso é que não saiam de lá.
(p. 47-48)

A obra Ensaio sobre a cegueira, do “nosso” nobel José Saramago (figura 1), é uma narrativa que vem a propósito dos tempos pandémicos que vivemos. Não é que a enfermidade seja a mesma, pois 99,9% das pessoas ficar cega sem explicação aparente é um cenário bem mais gravoso, se a desfaçatez de comparar ficção (“mal-branco”) e realidade (COVID-19) me é permitida.

Figura 1. Capa de “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (24.ª edição, Porto Editora, 2019).

Após as habituais dedicatórias, Saramago expôs no início do livro uma citação, tão curta como eloquente, do Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Estava dado o mote para um ensaio verdadeiramente brilhante sobre um fenómeno bastante improvável, ainda que possível. E se de repente a cegueira nos apanhasse a todos desprevenidos? Não escrevo sobre a cegueira que nos remete para a escuridão das trevas, mas para uma brancura permanente, o designado “mal-branco”. Como seria o mundo dos humanos? Caótico e, em certa conta, desprezível.

Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais (…).
(p. 129)

Porém, a personagem principal é imune e vivencia a catástrofe com uma visão inversa ao ditado “em terra de cegos, quem tem olho é rei”. Fosse ela outra e, seguramente, teria aproveitado a deixa. Optou pela conduta menos convencional, mais difícil e digna no auxílio ao seu semelhante.

(…) E as pessoas, como vão, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vão como fantasmas, ser fantasma deve ser isto, ter a certeza que a vida existe, porque quatro sentidos o dizem, e não a poder ver (…).
(p. 257)

Este excerto estabelece uma relação implícita entre grau de humanidade e perceção, não estritamente sensorial, do envolvimento. À medida que aumentamos a perceção do nosso ambiente, maior será a humanização do nosso comportamento. Isto porque a cegueira tem algo (ou tudo) de irracional. Mesmo aqueles que fazem uso da visão, por vezes, olham, mas não veem; outros veem, mas não reparam. E passeamo-nos como espectros.

E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos (…).
(p. 312)

Certamente um dos melhores livros, se não mesmo o melhor, que li nos últimos anos. Recomendo fortemente! Obrigado, mestre Saramago.

27/12/2019

"O teu umbigo é menor do que o meu"

Estamos a fechar a década de 2010. Uma década marcada pelo egocentrismo escarpado, crescendo numa proporcionalidade inversa ao esgotar do período temporal em questão. Julgo poder afirmar, com maior ou menor direito a generalização, que “o teu umbigo é menor do que o meu” (figura 1).

Figura 1. Umbigos (fonte: DeviantArt.com).

Olho primeiro para o teu, porque para o meu já olhei diversas vezes, ou talvez até nem me lembre de qual foi a última vez. Aliás, será que já perdi algum tempo a olhá-lo como deve de ser? Nem sei… mesmo assim, “o teu umbigo é menor do que o meu”.

Vivemos na era da superioridade moral, intelectual, racial e, porque não, ideológica. A diferença na perspetiva de quem ajuíza é sinónimo de inferioridade, de menosprezo. As teorias, os factos, as evidências ou as meras suposições alheias são, à partida, refutadas pelo grau (subjetivo) de aversão à diferença ou, se preferirem, pelo estatuto inato de superioridade, seja ela de que tipo for. Há uns de primeira e outros de terceira categoria/classe, como os lugares nos aviões. “O teu umbigo até pode ter o seu quê de interessante, mas é menor do que o meu”.

E isto é tão, mas tão notório que, para a próxima década, peço apenas que disseminem a cura para a cegueira, a pior doença do século XXI. Não é aquela que nos apaga a luz do mundo para sempre, essa também é horrenda e não se deseja a ninguém. É aquela que, ainda que tenhamos toda a perceção sensorial, nos tolda intrinsecamente a razão e, por inerência, as virtudes da natureza humana. Uma praga com um poder de contágio sem paralelo.

Que 2020 nos traga a lucidez para uma mudança comportamental pois, como escreveu o meu amigo Eduardo Jorge Duarte, em Uma Coruja nas Ruínas (2018), “a cegueira maior é não saber olhar para dentro”.

Afinal, parece que o meu umbigo é um pouco disforme.

Boas saídas e melhores entradas!