30/08/2021

Inconsciência temporal


Férias. Do emprego. Em casa, trabalho não falta. Dizem que a alegria e o cansaço contagiam. Eu acrescento que a inconsciência também. Uma inconsciência involuntária, como a dos bebés ou a dos loucos. Pela idade, talvez seja mesmo loucura. Dou por mim a ter noção da passagem dos dias, porque a seguir à luz vem a escuridão e, depois, a luz outra vez. Não importa a ordem dos dias, acumulam-se em semanas, em meses, o sinónimo perfeito de fugacidade.

Hoje, tinha marcada uma consulta de medicina do trabalho pelas 12h20. Fui mais cedo, ciente de que era sábado. Não faço ideia porquê, ignorei todos os sinais óbvios que indicavam ser um dia de semana; na prática, o primeiro dia útil da semana. Cheguei mais cedo e despachei-me rápido, não sem antes distribuir “bom fim de semana” por cinco ou seis pessoas diferentes. Foi a enfermeira, foi o médico, foram algumas colegas de trabalho. No regresso a casa, os neurónios restabeleceram as respetivas ligações sinápticas: “p*r*a, hoje é segunda-feira!”. 

Os “bons fins de semana” estavam dados e a minha inconsciência (ou parvoíce) atestada por quem de direito. Será que voltarei a ter trabalho depois das férias?

27/08/2021

Artigo do mês #20 – agosto 2021 | Como limitar o número de toques na bola afeta a performance de jovens jogadores de futebol em jogos reduzidos, nos diferentes escalões etários?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Coutinho, D., Gonçalves, B., Santos, S., Travassos, B., Folgado, H., & Sampaio, J.

País: Portugal

Data de publicação: 2-agosto-2021

Título: Exploring how limiting the number of ball touches during small-sided games affects youth football players’ performance across different age groups

Revista: International Journal of Sports Science & Coaching

Referência: Coutinho, D., Gonçalves, B., Santos, S., Travassos, B., Folgado, H., & Sampaio, J. (2021). Exploring how limiting the number of ball touches during small-sided games affects youth football players’ performance across different age groups. International Journal of Sports Science & Coaching. https://doi.org/10.1177/17479541211037001

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 20 – agosto de 2021.

 

Apresentação do problema

Os jogos reduzidos são tarefas de treino realizadas em espaços pequenos, geralmente com regras adaptadas e com um número reduzido de jogadores em relação ao jogo formal. Estes meios permitem recriar cenários percetivo-motores similares aos encontrados em competição, o que permite que os jogadores desenvolvam a habilidade de acoplar as respetivas ações à informação disponível no envolvimento (Davids et al., 2013; Machado et al., 2019). De facto, uma das principais características dos jogos reduzidos reside na possibilidade de, através da manipulação de constrangimentos da tarefa, enfatizar a informação disponível que orienta o comportamento dos jogadores para objetivos específicos. 

Existe um vasto leque de investigação produzida no intuito de explorar como a manipulação de constrangimentos da tarefa influencia a performance dos jogadores. Neste âmbito, a manipulação do número de toques permitidos sobre a bola é um constrangimento que tem merecido uma atenção considerável das ciências do desporto. Por exemplo, do ponto de vista físico, jogadores internacionais percorreram maiores distâncias total, em alta intensidade e em sprint, quando o número de toques na bola foi limitado num jogo reduzido de posse de bola (4v4+4 neutros) (Dellal et al., 2011, 2012). Contudo, a utilização do mesmo constrangimento em jogadores semiprofissionais e amadores não produziu evidências consistentes, já que foram registadas maiores intensidades em jogos sem restrição do número de toques (Casamichana et al., 2014; Román-Quintana et al., 2013). 

Na dimensão técnica, jogar a um toque tende a diminuir a percentagem de passes bem-sucedidos e a aumentar o número de posses de bola e de bolas perdidas em jogadores de nível internacional e profissional (Dellal et al., 2011, 2012; Giménez et al., 2013). Atendendo ao aumento de exigências percetivas, é expectável que estes efeitos sejam exacerbados em jogadores com menor experiência, como em contexto de formação. Se, por um lado, jogadores em diferentes fases de desenvolvimento (e.g., Sub-13 a Sub-19) podem revelar diferentes adaptações a este constrangimento da tarefa, por outro lado, a maioria dos estudos existentes explorou os efeitos da manipulação do número de toques na performance física e técnica, descurando as implicações que pode acarretar no comportamento posicional dos jogadores. 

Uma vez que jogadores de níveis de experiência diferentes respondem de forma distinta à imposição do mesmo constrangimento, é importante aprofundar o conhecimento de como a manipulação do número de toques na bola afeta a performance de jovens jogadores pertencentes a diferentes escalões etários. A introdução de variáveis posicionais pode, também, fornecer novas perspetivas acerca da utilização deste constrangimento no decurso do processo de treino. Assim, este estudo teve como propósito explorar o modo como o número de contactos permitidos ("jogo livre", "2 toques" e "1 toque") influencia o comportamento tático, técnico e físico de jogadores pertencentes a diferentes escalões etários (de Sub-9 a Sub-19), em jogos reduzidos com o formato Gr+4v4+Gr.


Métodos

Participantes: 114 jovens praticantes de futebol do mesmo clube (ver detalhes na tabela 1). Os participantes (crianças/jovens) tinham dois a quatro treinos semanais, com um jogo ao fim de semana. Devido à especificidade da posição, os guarda-redes foram excluídos da análise.


Tabela 1. Detalhes da amostra (n = 114) por escalão etário (Coutinho et al., 2021).

Desenho e procedimentos experimentais: o desenho do estudo seguiu uma abordagem de medidas repetidas em função de três condições experimentais: (i) “jogo livre”, sem restrições ao nível do número de toques sobre a bola; (ii) “2 toques”, permitido um máximo de dois toques por cada intervenção individual; (iii) “1 toque”, apenas permitido um toque por cada posse de bola individual. O formato de jogo reduzido foi Gr+4v4+Gr, disputado num espaço de 40x30m (150 m2/jogador; figura 2), num relvado artificial, após 15 minutos de aquecimento padronizado.

 

Figura 2. Formato de jogo proposto na tarefa experimental: Gr+4v4+Gr, num espaço de 40x30m (imagem não publicada pelos autores).

 

A experiência decorreu durante duas semanas a meio do período competitivo da época, com um total de 6 sessões não consecutivas, sendo garantidas condições de práticas similares para todos os indivíduos (e.g., temperatura, fase do dia, etc.). Em cada sessão, os treinadores principais formaram duas equipas equilibradas de 4 elementos (+ guarda-redes). Houve variabilidade nas equipas ao longo da experiência para incentivar o envolvimento dos elementos dos planteis e aumentar a capacidade de generalização dos resultados; apesar disso, em cada sessão, as equipas permaneceram inalteradas nas três condições experimentais, cuja ordem foi aleatória. Em cada sessão, as condições experimentais tiveram a duração de 4 minutos, com um intervalo de 2 minutos de recuperação passiva entre elas. Os treinadores não podiam conceder feedbacks e encorajamento aos jovens participantes na experiência. As regras oficiais do futebol foram aplicadas, à exceção da lei do fora-de-jogo e a possibilidade de reatar o jogo após golo através do guarda-redes. 

Recolha dos dados: durante os jogos reduzidos, os dados posicionais dos jogadores (dimensão tática) foram obtidos mediante a utilização de um sistema de posição global (GPS), a 5 Hz (SP-PRO. GPSports, Canberra, ACT, Austrália). As coordenadas dos jogadores (latitude e longitude) foram exportadas e computadas através de rotinas específicas no software Matlab® (MathWorks, Inc., Massachussets, EUA). A utilização de GPS também permitiu analisar diversas variáveis na dimensão física. Na vertente técnica, os jogos foram gravados através de uma camara digital (Sony NV-GS230) e a análise notacional executada no software LongoMatch (Longomatch, v. 1.3.7., Fluendo). As variáveis utilizadas nesta análise multidimensional encontram-se detalhadas na tabela 2.

 

Tabela 2. Variáveis do estudo: dimensão e respetiva definição (adaptado de Coutinho et al., 2021).


Análise estatística: os resultados foram apresentados como médias ± desvios-padrão. A presença de outliers e a normalidade dos dados em cada variável foi analisada mediante testes de Shapiro-Wilk. Face à normalidade ou não dos dados, foram empregues dois tipos de teste: (1) paramétrico – análise de variância para amostras emparelhadas (ANOVA); (2) não paramétrico – teste ANOVA de Friedman. O nível de significância ficou definido em p ≤ 0.05 e os cálculos foram realizados no software SPPS v.24 (IBM SPSS, Armonk, NY: IBM Corp.). Posteriormente, as diferenças nas médias de grupo foram expressas em unidades não tratadas, com intervalos de confiança de 90%, utilizando, para cada escalão etário, uma folha específica de Excel proposta por Hopkins (2017). Os valores de corte das dimensões de efeito foram: <0.2 trivial, <0.6 pequena, <1.2 moderada, <2.0 grande e >2.0 muito grande (Kleiven et al., 2020).

 

Principais resultados

Os resultados são apresentados em função da dimensão de desempenho analisada: variáveis tático-posicionais, físicas e técnicas.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis tático-posicionais

As distâncias de cada jogador para os centroides da própria equipa e da equipa oponente, para o companheiro de equipa mais próximo e para o adversário mais próximo não foram afetadas pela manipulação deste constrangimento da tarefa, à exceção da distância de cada jogador para o oponente mais próximo no escalão Sub-15, com valores mais elevados na condição “2 toques” comparativamente ao “jogo livre”. Também não foram observadas diferenças para o rácio comprimento : largura. Em termos de sincronização longitudinal, houve pequenos decréscimos de coordenação nos Sub-9 e nos Sub-17 nas condições “1 toque” e “2 toques”, respetivamente. No escalão Sub-17 verificaram-se decréscimos moderados de sincronização no jogo a “1 toque”. Ao invés, nos Sub-13 houve um pequeno aumento de coordenação longitudinal a jogar a “1 toque” e, nos Sub-15, acréscimos moderados nos jogos com limitação do número de toques (1 e 2 toques). Os efeitos na sincronização lateral foram somente evidentes nos escalões etários mais velhos: na condição “2 toques”, houve um pequeno aumento nos Sub-17 e um pequeno decréscimo nos Sub-19; na condição “1 toque”, observaram-se pequenos aumentos nos Sub-15 e Sub-19. No índice de exploração espacial foram registadas diferentes tendências por escalão etário: Sub-9 e Sub-17 – pequenos decréscimos a jogar a “1 toque”; Sub-11 – pequeno acréscimo a jogar a “1 toque” e pequeno decréscimo a jogar a “2 toques”.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis físicas

Os resultados foram claros no que respeita à distância total percorrida: houve decréscimos pequenos a moderados em todos os escalões etários nas condições de jogo com limitação do número de toques (1 e 2 toques). No que respeita a zonas de intensidade, foram observados aumentos, de dimensão pequena a moderada, na distância percorrida a andar com limitação do número de toques para todos os escalões etários, ao contrário do que sucedeu para a distância percorrida em jogging. Para a distância percorrida em corrida, foram revelados pequenos decréscimos nos jogos a 1 e 2 toques no escalão Sub-11, enquanto nos Sub-13 houve um pequeno decréscimo na condição “1 toque”, em comparação com o “jogo livre”.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis técnicas

A jogar a “2 toques” foram observados pequenos acréscimos no número de passes com sucesso nos escalões Sub-9, Sub-15 e Sub-17; por sua vez, a jogar a “1 toque” houve aumentos, de dimensão pequena a moderada, nos Sub-9, Sub-15 e Sub-17. Contrariamente, na condição de jogo “1 toque”, constatou-se um pequeno decréscimo do número de passes bem-sucedidos nos Sub-13. À exceção dos escalões Sub-11 e Sub-15, houve um aumento praticamente generalizado do número de passes sem sucesso ao limitar o número de toques nos jogos reduzidos (efeitos pequenos a moderados). Esta condicionante não influenciou o número de remates à baliza e o número de golos concretizados nos diversos escalões etários.

 

Aplicações práticas

Os treinadores devem estar cientes da importância de um planeamento apropriado das tarefas de treino, de modo que a introdução de regras (e.g., limitação do número de toques) nos jogos reduzidos garanta ambientes de aprendizagem profícuos, nos quais as crianças/jovens são capazes de desenvolver um conjunto vasto e variável de habilidades. 

Do ponto de vista tático-posicional, foram identificados padrões de movimento distintos ao longo dos diversos escalões etários. Contudo, uma vez que os praticantes mais jovens (Sub-9 a Sub-13) ainda se encontram a desenvolver e a refinar o seu repertório motor, é provável que o foco na condição “1 toque” seja colocado na execução motora, comprometendo a perceção do envolvimento e a sincronização do movimento com os companheiros de equipa. 

Ao invés do que sucede com jogadores profissionais, jogadores menos experientes e/ou com menor nível de prática, como sucede no futebol infantojuvenil, tendem a apresentar uma redução da performance física em contextos de jogo com limitação do número de toques. Se o objetivo dos treinadores for aumentar a solicitação física (i.e., deslocamentos espaciotemporais), o “jogo livre” parecer ser uma solução mais conveniente, em particular nos escalões mais jovens. 

Jogar com limite de toques parece ser um constrangimento chave para aumentar a habilidade dos jogadores para atuar sob pressão adicional em termos de tempo e espaço. Apesar de promover a frequência e a qualidade da ação de passe, bem como a adaptabilidade comportamental, também pode limitar o tempo necessário para executar – tão importante em idades mais jovens – e inibir a emergência de outras ações específicas do jogo, designadamente o drible. 

Com base nas evidências supramencionadas, os jogadores mais jovens (Sub-9 a Sub-13) devem ser expostos menos vezes à limitação de toques, sendo a condição “2 toques” mais oportuna para a etapa de desenvolvimento em causa. Os elementos dos escalões mais velhos (Sub-15 a Sub-19) exibiram maior capacidade para ajustar o seu comportamento à imposição de limite de toques, sobretudo na condição “1 toque”, pelo que os treinadores podem utilizar esta regra para aumentar as exigências percetivas da tarefa e, concomitantemente, desafiar os jogadores a explorar respostas motoras adaptativas.

 

Conclusão

Os resultados deste estudo mostram que diferentes respostas tendem a ocorrer como consequência da manipulação do número de toques sobre a bola em jogos reduzidos. Os efeitos da manipulação também variam em função do escalão etário. Em concreto, modificar o número de toques permitidos afetou, essencialmente, as performances física e técnica dos jovens jogadores. As crianças/jovens percorreram menores distâncias totais, em virtude de menores distâncias percorridas em jogging e maiores distâncias percorridas a andar. Na dimensão técnica, limitar o número de toques proporcionou o aumento quer de passes bem-sucedidos, como de passes malsucedidos. As variáveis tático-posicionais foram menos sensíveis à manipulação do número de toques, embora os jogadores alterarem a coordenação com os companheiros de equipa e o espaço explorado face ao número de contactos permitido. 

Os efeitos sobre as variáveis tático-posicionais, físicas e técnicas foram mais evidentes na condição de jogo a “1 toque”. Por isso, é fundamental que os treinadores periodizem de forma ponderada a utilização deste constrangimento, especialmente nos escalões etários mais novos, no intuito de conformar contextos de aprendizagem/treino dotados de variabilidade e riqueza informacional.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.