22/02/2021

“Mind the fundamentals”: As vantagens do princípio cultural “amplitude/espaço”

A complexidade inerente ao jogo de futebol faz com que um “frame”, uma singela imagem, tenha o significado de um punhado de areia num vasto deserto. Há, no entanto, quem o contradiga, na medida em que uma imagem vale por mil palavras. Uma imagem pode, até certo ponto, captar alguns fatores que determinam uma dada realidade. 

Numa época marcada por circunstâncias sem precedentes, face à pandemia mundial da COVID-19, o Sport Lisboa e Benfica decidiu investir como nunca para recuperar a hegemonia interna no que ao futebol profissional diz respeito. Contudo, os resultados desportivos estão longe de ser fazer jus aos milhões despendidos. Enquanto uns criticam a permeabilidade defensiva da equipa, outros apontam o dedo à ineficácia do setor intermédio na etapa de criação de situações de finalização e outros, ainda, referem que os avançados não têm qualidade suficiente. Se os jogadores estão a ser ostracizados pela parca produtividade no jogo, nem a equipa técnica, nem a estrutura do clube, podem sair ilibadas. 

Perante o nulo registado ontem, em Faro, Jorge Jesus referiu que “falta um homem que meta a bola lá dentro”. Sim, se é verdade que poderiam ter vencido o jogo, parece ser uma análise, no mínimo, redutora, até porque o problema não é de agora (e ainda não foi corrigido). Tomemos em consideração a figura 1.

 

Figura 1. SL Benfica em processo ofensivo, com 8 jogadores concentrados num espaço de ≈ 36x40m, em inferioridade numérica, no decurso do minuto 80 (fonte: vsports.pt).

 

Segundo um dos princípios culturais do jogo – “amplitude/espaço” –, quando a equipa recupera a posse de bola deve aumentar o seu espaço efetivo de jogo (em largura e profundidade). Genericamente, quanto maior for a densidade de jogadores adversários, mais estreitos serão os caminhos para chegar à baliza e tentar a finalização, ou seja, mais difícil se torna criar oportunidades claras de golo. Não é precisamente isto que tem acontecido? 

Por outro lado, quando uma equipa cumpre com propriedade este princípio tático básico, tende a expandir as distâncias entre os jogadores adversários, condicionando as ações de marcação dos oponentes e os eventuais comportamentos defensivos de suporte – as coberturas defensivas. Com mais tempo e espaço para executar, qualquer equipa dota as ações (individuais e coletivas) dos seus elementos de maior qualidade e eficácia. Com o princípio espaço, também se garante a ocupação de zonas menos congestionadas de adversários, nas quais a pressão defensiva é menor e a progressão mais viável. Quer a equipa opte por atrair fora (corredor lateral) para penetrar por dentro (corredor central), ou vice-versa, as vantagens ofensivas suplantam as desvantagens defensivas que podem decorrer de maior exposição e projeção no ataque. E uma equipa que quer estar no topo tem de saber lidar com o risco, sem descurar as bases sobre as quais o sucesso assenta. 

Mister Jorge Jesus, como diria a malta norte-americana perita no basquetebol: “please, mind the fundamentals”.

20/02/2021

Artigo do mês #14 – fevereiro 2021 | O esquema tático mais subvalorizado no futebol: Análise dos lançamentos laterais na Premier League 2018/2019

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Stone, J., Smith, A., & Barry, A.

País: Inglaterra

Data de publicação: 10-fevereiro-2021

Título: The undervalued set piece: Analysis of soccer throw-ins during the English Premier League 2018-2019

Revista: International Journal of Sports Science & Coaching

Referência: Stone, J., Smith, A., & Barry, A. (2021). The undervalued set piece: Analysis of soccer throw-ins during the English Premier League 2018-2019. International Journal of Sports Science & Coachinghttps://doi.org/10.1177/1747954121991447

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 14 – fevereiro de 2021.

 

Apresentação do problema

Uma vez que os esquemas táticos (i.e., situações de bola parada) estão associados a cerca de 30 a 40% dos golos marcados no futebol de elite, estudos recentes têm vindo a analisar pontapés de canto (Strafford et al., 2019), pontapés livres (Casal et al., 2014; Link et al., 2016) e penáltis (Almeida et al., 2016). As evidências sugerem que as bolas paradas são eventos críticos para o êxito da performance ofensiva e, por isso, constituem uma área chave de intervenção no treino de equipas profissionais. Contudo, um tipo de esquema tático que tem sido pouco investigado é o lançamento lateral e, portanto, não se sabe ao certo se os treinadores devem dedicar tempo a trabalhar estas situações fixas específicas. 

Segundo a lei 11 do jogo de futebol, um lançamento lateral é atribuído a uma equipa quando um dos adversários toca a bola e esta ultrapassa completamente a linha lateral, junto ao solo ou pelo ar. Um estudo recente de KcKinley (2018) mostrou que, na Major League Soccer (EUA), houve uma média de 44 lançamentos laterais por jogo, entre 2015 e 2019, correspondendo a quase 5% da totalidade dos passes efetuados. Este facto demonstra que estas bolas paradas ocorrem mais frequentemente num jogo que os pontapés de canto, os pontapés livres ou os pontapés de baliza. Neste sentido, a importância que podem ter na manutenção da posse de bola de uma equipa e no resultado dos jogos não deve ser menosprezada. 

Do ponto de vista científico, o lançamento lateral tem sido essencialmente avaliado ao nível da biomecânica e, designadamente, na identificação dos fatores inerentes à projeção da bola a longa distância (no caso, para dentro da área de penálti; figura 2). No entanto, a maioria dos lançamentos laterais ocorre em zonas defensivas, com o propósito de recomeçar o processo ofensivo. Consoante a zona do campo, assim se alteram os problemas contextuais que uma equipa tem de lidar para obter sucesso no esquema tático, seja para recomeçar o jogo sem perder extemporaneamente a posse de bola, seja para criar uma situação eminente de golo. Em termos práticos, em zonas do campo mais recuadas, fomentar que os jogadores lancem a bola “o mais longe possível ao longo da linha lateral” ou “para o meio-campo adversário” são estratégias comuns que não estão cientificamente fundamentadas. A produção de evidência a este respeito pode ajudar a que os treinadores optem por outro tipo de estratégia que conduza os jogadores a serem, técnica e taticamente, mais bem-sucedidos. Também não é por acaso que clubes de futebol de elite tenham começado a contratar treinadores especialistas em lançamentos laterais (Bascombe, 2018).

 

Figura 2. Exemplo de lançamento lateral longo para a área de penálti.

(imagem não publicada pelos autores; fonte: vsports.pt)

 

Deste modo, a investigação em torno dos lançamentos laterais no futebol ainda é escassa, pelo que é necessário um conhecimento mais aprofundado de como estes eventos específicos afetam a performance no jogo de futebol, decorrendo o proveito adicional de melhor se poder informar o treinador quanto à preparação do processo de treino. Este estudo teve como propósitos: (1) examinar se a execução do lançamento lateral está ligada à performance subsequente em jogo; (2) analisar os efeitos da direção e da distância do lançamento lateral na taxa de sucesso do primeiro contacto, na manutenção da posse de bola, no tempo médio em posse e na criação de situações de finalização, em jogos da Premier League inglesa, na época 2018/2019.


Método

Amostra: foram incluídos na amostra 16154 lançamentos laterais executados nos 380 jogos da Premier League inglesa, na época 2018/2019, envolvendo 20 equipas. Os dados referentes aos lançamentos foram retirados do website Statsbomb (https://statsbomb.com). Da amostra total de lançamentos (n = 16380), foram apenas excluídas 226 observações relativas à cedência deliberada da posse de bola à equipa adversária, após a assistência médica a um jogador lesionado. 

Procedimentos e variáveis: cada fase de jogo analisada começou com a execução do lançamento lateral e terminou quando a equipa que repôs a bola em jogo perdeu a posse de bola. Com base nos dados brutos retirados do site da Statsbomb, foram definidas 3 variáveis independentes e 4 variáveis dependentes. A figura 3 expressa as variáveis independentes e a forma como foram operacionalizadas: distância (curta, média e longa), direção (para trás, lateral e para a frente) e zona do campo (4 áreas). 

 

Figura 3. Operacionalização das variáveis independentes: distância, direção e zona do lançamento lateral (Stone et al., 2021). Nota: 1 jarda (yard) = 0,9144 metros.

 

As definições operacionais das categorias das variáveis dependentes encontram-se discriminadas na tabela 1.


Tabela 1. Definições operacionais das categorias das variáveis dependentes: primeiro contacto, tempo em posse, retenção da posse e lançamento resultando em finalização (adaptado de Stone et al., 2021).


Para todas as variáveis, o primeiro autor realizou um protocolo para aferir a fiabilidade da recolha dos dados. Selecionando 3 jogos aleatórios, reanalisou um total de 106 lançamentos laterais e obteve um valor de Kappa de 0.97, o que representa uma excelente fiabilidade intraobservador. 

Análise estatística: registados os dados e calculada a estatística descritiva numa folha de Excel, os dados foram exportados para o SPSS, v. 24.0. Numa primeira fase, foi analisada a relação entre a performance de cada equipa (classificação final: 1–20) com cada uma das variáveis dependentes, utilizando Coeficientes de Correlação de Spearman em separado. Em segundo lugar, para compreender se as estratégias de lançamento variavam em função da classificação final, foram calculados Coeficientes de Correlação de Spearman relativamente às variáveis independentes. Por fim, foram corridos diversos testes paramétricos de análise de variância para amostras repetidas (ANOVA) para examinar a influência das variáveis independentes nas variáveis dependentes. As dimensões de efeito foram apresentadas mediante o cálculo de Partial Eta Squared (ƞp2).

 

Principais resultados

Em termos globais, 83% dos lançamentos analisados resultou num primeiro contacto com êxito, 54% na retenção da posse de bola durante 7 ou mais segundos e 8.8% das posses de bola que derivaram de um lançamento lateral, com um primeiro toque bem-sucedido, foi concluído com uma ação de finalização. 

As equipas que terminaram em posições mais altas da tabela classificativa da Premier League 2018/2019 obtiveram mais sucesso nos lançamentos laterais. Em particular, foram reveladas taxas de sucesso mais elevadas no primeiro contacto, na retenção da bola e no tempo médio da posse subsequente, tal como foram executados mais remates decorrentes deste tipo de esquema tático. Curiosamente, as equipas mais bem classificadas realizaram mais lançamentos para trás, enquanto as menos bem classificadas fizeram mais lançamentos na direção da baliza adversária (i.e., para a frente).

 

·      Sucesso do primeiro contacto

A taxa de sucesso do primeiro contacto após o lançamento lateral decresceu com o aumento da distância do lançamento. Lançar para trás teve a taxa de sucesso mais alta (99.5%), aumentando 24.9% em relação aos lançamentos para a frente (74.6%). Conforme podemos constatar na figura 4, o maior insucesso no primeiro contacto foi observado após lançamentos longos, para a frente e a partir do meio-campo defensivo. 

 

Figura 4. Sucesso (relativo e absoluto) do primeiro contacto, em função da zona do campo, da distância (S – curta; M – média; L – longa) e da direção (B – para trás; L – lateral; F – para a frente) do lançamento lateral (Stone et al., 2021).

 

·      Retenção da posse de bola após lançamento lateral

A direção, a distância e a zona do campo influenciaram significativamente as variáveis associadas à manutenção da posse de bola (figura 5). Os lançamentos para trás não só tiveram uma taxa de retenção da posse mais alta (83%), como originaram posses de bola subsequentes, em média, mais longas (24s). Por sua vez, lançar para a frente implicou uma menor taxa de manutenção da posse (50.3%) e processos ofensivos com uma duração média mais reduzida (13s). Os lançamentos curtos também propiciaram taxas de retenção da bola mais elevadas (70.5%) e posses de bola mais longas (20s), ao invés do que sucedeu nos lançamentos longos (64.3%; 17.8s). Lançamentos laterais na zona defensiva do campo também originaram posses de bola subsequentes, em média, mais demoradas (19.4s vs. 18.4s). 

 

Figura 5. Sucesso (relativo e absoluto) da retenção da bola e tempo médio da posse de bola subsequente, em função da zona do campo, da distância (S – curta; M – média; L – longa) e da direção (B – para trás; L – lateral; F – para a frente) do lançamento lateral (Stone et al., 2021).

 

·      Lançamento lateral que origina finalização

Um total de 1053 lançamentos laterais, realizados nos meios-campos ofensivo e defensivo, e com um primeiro contacto bem-sucedido, resultou numa ação de finalização. A probabilidade de produzir uma ação de finalização foi mais elevada em lançamentos executados para o lado (12.2%) ou para trás (11.2%). Dos lançamentos para a frente, somente 6.6% permitiram visar a baliza adversária.

 

Aplicações práticas

Em média, foram executados 43 lançamentos laterais por jogo, uma frequência superior a pontapés de canto, pontapés livres ou pontapés de baliza. Dada a correlação existente entre o desenrolar do processo ofensivo após um lançamento lateral e a classificação obtida no final da época, os treinadores não devem negligenciar este tipo de esquema tático no processo de treino. 

Os lançamentos laterais são mais ponderados e trabalhados em zonas ofensivas (i.e., projeção da área de penálti), quase como se de pontapés de canto se tratassem. Porém, 78.5% dos lançamentos da presente amostra ocorreram nas demais áreas ofensivas e defensivas. Estas bolas paradas são um fator importante no recomeço do jogo e nas ações inerentes à etapa de construção de uma equipa. Devem, assim, ser proporcionados contextos de treino que enfatizem a importância dos lançamentos laterais na (re)construção do processo ofensivo. 

A crença comum que um lançamento lateral deve ser executado para a frente e longo (“ao longo da linha lateral” ou “para o meio-campo adversário”) não foi corroborada neste estudo. Pelo contrário, quando analisadas as taxas de sucesso do primeiro contacto e da retenção da posse de bola, lançar para trás ou para o lado constituiu uma estratégia mais eficaz que, inclusivamente, permitiu criar mais oportunidades de finalização. 

Numa perspetiva defensiva, a estratégia de jogo mais adotada é recuar o bloco, colocando um maior número de jogadores atrás da linha da bola, no sentido de melhor proteger a baliza. Estes dados sugerem, no entanto, que consentir que uma equipa lance para trás e recomece a etapa de construção pode não ser a solução mais efetiva para o desfecho do jogo. Uma abordagem alternativa é, precisamente, condicionar o lançamento para trás (ou para o lado) e fazer com que o adversário lance longo, aumentando a probabilidade de reconquistar mais rápido a posse de bola.

 

Conclusão

A investigação demonstrou que o sucesso nos lançamentos laterais está associado com a classificação obtida numa das principais ligas europeias (Premier League inglesa). Os resultados permitiram compreender que as estratégias implementadas nestes esquemas táticos influenciam o sucesso de ações seguintes relacionadas com o primeiro toque, a retenção da posse de bola e a criação de situações de finalização no futebol profissional. Lançar para trás ou para o lado foi mais profícuo do que lançar longo para a frente; de facto, as melhores equipas tendem a privilegiar o lançamento para trás. Recomenda-se que os treinadores revejam as estratégias de lançamento que propõem e equacionem outras soluções que potencialmente possam melhorar a performance global da equipa em competição. 

 

P.S.:

1-  As que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.