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30/09/2023

Artigo do mês #45 – setembro 2023 | O papel-chave do contexto nos desportos coletivos: O valor das atividades jogadas na conceção da prática no futebol

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Petiot, G. H., Vitulano, M., & Davids, K.

País: Canadá

Data de publicação: 1-agosto-2023

Título: The key role of context in team sports training: The value of played-form activities in practice designs for soccer

Referência: Petiot, G. H., Vitulano, M., & Davids, K. (2023). The key role of context in team sports training: The value of played-form activities in practice designs for soccer. International Journal of Sports Science & Coaching, 1–13. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541231191077

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 45 – setembro de 2023.

 

Apresentação do problema

O treino por meio de atividades em forma de jogo (i.e., atividades jogadas) tem sido amplamente discutido no âmbito dos desportos coletivos, como o futebol, sendo também cada vez mais recomendado pelas entidades que tutelam a modalidade para todas as idades e níveis de prática (Woods et al., 2020; Ribeiro et al., 2021). As evidências sugerem que conceber estritamente exercícios com base em análises de desempenho não é suficiente para melhorar as performances individuais e coletivas (Herold et al., 2022). A prática composta por diversas variantes do jogo formal, conhecida como “prática em forma de jogo”, é essencial para aumentar a adaptabilidade e a transferibilidade das ações específicas, principalmente do treino para a competição (Araújo & Davids, 2011; Causer & Ford, 2014). 

Este tipo de atividades engloba os jogos reduzidos e condicionados, nos quais a oposição constitui um elemento nuclear da prática. As atividades jogadas contêm elementos, características e propriedades informacionais do jogo formal, mas podem ser configuradas para dar respostas mais concretas ao desenvolvimento do praticante, à preparação para o desempenho competitivo e à organização coletiva (i.e., da equipa) (Machado et al., 2019). Por isso, são situações práticas recomendadas pela literatura científica, tanto para o desenvolvimento como para o rendimento, mediante a promoção de oportunidades de ações (i.e., affordances) relevantes e motivantes para os praticantes (Petiot et al., 2021; Sannicandro & Raiola, 2021). 

Como é insinuado pela expressão “o contexto é tudo”, o contexto no qual os praticantes estão inseridos é uma variável determinante a equacionar. As atividades em forma de jogo simulam precisamente as propriedades do jogo competitivo em cenários arranjados para proporcionar as oportunidades de ação ou as sequências de jogo desejadas. Os jogadores são desafiados a envolver-se em comportamentos percetivos, tomadas de decisão, resolução de problemas e coadaptação posicional (Petiot et al., 2021), pelo que a prática em forma de jogo pode ser equacionada como uma abordagem poderosa para o desenvolvimento do jogador, se convenientemente adaptada às suas necessidades. Esta abordagem baseia-se numa estrutura teórica aplicada aos desportos coletivos, que se centra na interação entre o indivíduo e o envolvimento: a perspetiva da Dinâmica Ecológica (Araújo et al., 2006). O seu racional liga-se visceralmente aos fundamentos da Abordagem Baseada nos Constrangimentos, já que os seus conceitos e os seus princípios também promovem a manipulação de parâmetros contextuais e da tarefa (Ometto et al., 2018). Em última instância, esta estrutura teórica encoraja os treinadores e os outros profissionais do treino a trabalhar com os jogadores em jogos ou atividades contextualizadas, por forma que as habilidades específicas e o desenvolvimento da perícia possam sair enriquecidos (Button et al., 2020; Woods et al., 2020). 

As atividades em forma de jogo têm sido enquadradas na literatura associada à matriz ecológica como parte integrante de um continuum no desenvolvimento de jogadores e no treino para a obtenção de rendimento no futebol (Ribeiro et al., 2021). Os vários formatos podem ser diferenciados num espectro proposto de tarefas práticas, que vão desde atividades com enfoque técnico até às situações de jogo formal. Porém, a produção científica acerca de como integrar as diversas atividades jogadas num continuum de desenvolvimento é atualmente limitada. É necessário ter diretrizes claras sobre como as tarefas de jogo podem ser combinadas e organizadas no planeamento das sessões de treino de futebol, bem como podem ser ajustadas no terreno por meio de adaptações-chave. Neste sentido, o propósito desta revisão narrativa foi tripartido: (a) considerar os formatos típicos de atividades em forma de jogo, frequentemente organizadas como jogos contextualizados, que podem ser utilizados em sessões de treino de futebol; (b) analisar a sua finalidade e os principais parâmetros a partir da perspetiva da Dinâmica Ecológica; e (c) enfatizar como e por que podem ser úteis para os jogadores, treinadores e staff de apoio.

 

O contexto como um enquadramento

O contexto tem sido proposto como essencial para dotar os comportamentos humanos em geral (Juarrero, 2023), e os inerentes à obtenção de resultados desportivos (Jones et al., 2023), de coerência e significado. Esta noção é particularmente importante nos processos de aprendizagem, desenvolvimento e preparação para a performance nos desportos coletivos, uma vez que o contexto molda as cognições, as perceções e as ações dos jogadores face a uma multiplicidade de oportunidades de ações (Gibson, 1979) e constrangimentos (Pinder et al., 2011). Em jogo, os futebolistas precisam ser capazes de ler e atuar em diferentes contextos de desempenho e adaptar as suas ações para alcançar as suas intenções táticas (e.g., intercetar um passe entre oponentes, criar uma oportunidade de remate, driblar os adversários em espaços apertados ou evitar que um remate contrário entre na sua baliza). Na perspetiva ecológica, um contexto de prática bem estruturado é aquele que recria as informações disponíveis num contexto competitivo e que os praticantes podem efetivamente explorar. Esta abordagem à prática implica que os treinadores sejam designers de contextos de aprendizagem/treino (Button et al., 2020) e facilitadores de cenários dinâmicos de oportunidades de ação que os jogadores exploram na construção de uma forma de jogar. 

Portanto, o contexto funciona como um background vital para enquadrar as ações dos principais intervenientes no jogo. Neste âmbito, a Pedagogia Não Linear sustenta que, além do contexto, a representatividade da tarefa é outro aspeto basilar para a prática e para a aquisição de habilidades, especialmente no que respeita à conceção de jogos modificados (Chow et al., 2021). Os contextos são moldados para que certas ações possam ocorrer em sessões de treino, ou no decurso de programas de treino (i.e., microciclos), em função de temáticas designadas pelos treinadores (Davids et al., 2013; Davids, 2014). Por exemplo, o jogo pode ser contextualizado para guiar as intenções dos jogadores associadas a situações de “contra-ataque com entrada no terço ofensivo, após recuperações de bola perto da própria baliza”. A representatividade das atividades em forma de jogo pode ser alcançada quando a paisagem de oportunidades de ação enfatiza o tema escolhido, ou mais precisamente quando essas affordances determinam que as habilidades relevantes sejam executadas de forma repetida e, sobretudo, quando ocorre a transferência dessas ações-alvo para situações de jogo não condicionadas (i.e., jogos competitivos) (Chow et al., 2021; Renshaw et al., 2022). 

Enquadrar o contexto requer a articulação da natureza da prática em forma de jogo com a temática a ela atribuída para que a aprendizagem ou o rendimento se manifestem. Quando as atividades são projetadas para um tema específico, a configuração e as características da tarefa não só devem permanecer fiéis à natureza do jogo proposto, mas também devem proporcionar aos jogadores oportunidades para atingirem os objetivos definidos, ponderando as necessidades de cada indivíduo e da equipa (Nunes, 2021).

 

  • Configuração das atividades

Os contextos de jogo podem ser intencionalmente modificados ou manipulados para proporcionar as oportunidades que os jogadores necessitam para adaptar os seus comportamentos tático-técnicos. A estrutura e a organização das atividades de jogo podem ser modificadas sem remover os objetivos básicos do jogo: superar a oposição para marcar golo ou impedir que a oposição marque. A existência de oposição e de balizas/alvos/portas (Headrick et al., 2012) é inegociável para que a prática de jogo mantenha um elevado grau de representatividade. Há outros constrangimentos da tarefa que são igualmente importantes: a organização estrutural, a dimensão e a forma da área de jogo e o número de participantes envolvidos. Contudo, algumas atividades são planeadas em função da seleção de alguns destes parâmetros, como os jogos de posse, i.e., sem balizas/alvos para finalizar. A conceção de um contexto de prática depende da conjugação destes parâmetros-chave. Apesar de haver um número vasto de possibilidades, a importância da representatividade da tarefa não deve ser descurada. 

Em geral, há falta de documentos internacionais suscetíveis de orientar as equipas técnicas que optem por trabalhar com abordagens pedagógicas baseadas no jogo. Sem um consenso prático sobre o uso de atividades jogadas na prática, as metodologias de treino praticamente permanecem sob a responsabilidade de cada treinador ou de cada clube. 

As atividades em forma de jogo são porções enquadradas do jogo formal que estimulam as respostas motoras pretendidas, contrariamente às ações individuais que emergem em contextos de jogo não condicionados e que, por esse motivo, podem ser divergentes (Farias et al., 2018; Mesquita et al., 2012). Os treinadores podem guiar as intenções dos jogadores através da simulação das características de um jogo formal em situações de jogo reduzidas, com uma baliza de cada lado e com constrangimentos simples. As atividades que replicam o jogo podem ainda diferir da sua estrutura original, com modificações na forma da área de jogo e na localização das balizas ou dos alvos (e.g., áreas hexagonais ou “meeinhos” ou “rondos”, com alvos nas extremidades). Estas configurações têm o condão de direcionar as ações pretendidas para dentro e para fora, ou ao redor de uma zona propícia para finalizar/pontuar (ver figura 2).


Figura 2. Comparação de formatos espaciais com diferentes direções sugeridas para as ações pretendidas (adaptado de Petiot et al., 2023).

 

Por um lado, jogos em campos com formas distintas podem ampliar o espectro de ações e comportamentos específicos e apoiar a exploração de soluções práticas, precisamente porque não estão adstritas à estrutura espacial original. Por outro lado, os formatos cêntricos e circulares divergem tanto do formato original do jogo que podem afastar os jogadores da organização coletiva pretendida – designadamente, na preparação para a competição –, devido ao facto de não serem tão representativos. Deste modo, este tipo de estruturas espaciais deve ser utilizado de maneira coerente, como uma etapa no processo de descoberta de ações inovadoras (para jogadores em formação), e não como um meio de preparação antes de um compromisso competitivo iminente.

 

  • Tempo e espaço

Em contextos de treino, as circunstâncias desafiantes derivam essencialmente de restrições de tempo e espaço, tanto para tomar decisões e executar ações, como para resolver problemas situacionais com número díspar de jogadores. As dimensões do espaço de jogo e o número de participantes envolvidos são constrangimentos da tarefa que afetam o tempo e o espaço disponíveis (Ric et al., 2016), pelo que devem ser rigorosamente calculados para que as distâncias interpessoais proporcionadas convidem os jogadores a solucionar os problemas idealizados pela equipa técnica (Praça et al., 2021; Silva et al., 2016). 

O tempo e o espaço projetados para um formato de jogo fazem com que as oportunidades de ação disponíveis variem. Em situações de jogo mais reduzidas, os jogadores têm menos tempo e espaço para executar ações adquiridas (i.e., que fazem habitualmente), o que pode dificultar a autoeficácia, por exemplo, na manutenção da posse de bola. O desafio pode determinar uma redução no envolvimento direto com a bola, de modo a evitar ser desarmado ou a cometer erros que causem a perda da posse de bola. Por sua vez, espaços de maiores dimensões tendem a estimular mais movimentos sem bola (Almeida et al., 2013). As atividades devem, então, ser estruturadas para provocar intencionalidade nos comportamentos, reconhecendo que a eficácia no jogo requer tempo para a adaptação e para a sintonização a novos ritmos de movimento e a novas particularidades espaciais, antes propriamente de se atingir os resultados desejados.

 

  • Gerindo a complexidade e a dificuldade dos contextos de prática

A complexidade e a dificuldade dos contextos de prática são parâmetros significativos para os jogadores em termos de experiência, tomada de decisão e preparação para a competição. Na prática, estes conceitos devem ser ajustados de acordo com a experiência e o nível de habilidade dos jogadores (Petiot et al., 2021). A complexidade é representada pela qualidade e pela quantidade de informação disponível, resultante da configuração da tarefa. Situações mais complexas também podem levar os jogadores a pensar mais e decidir menos (Masters & Maxwell, 2004), inibindo a sua capacidade de autorregulação e o fluxo de desempenho (Morris et al., 2020). Em suma, a complexidade da tarefa está relacionada com o número de possibilidades de ação e de oponentes presentes na situação de jogo. 

A dificuldade da tarefa decorre da limitação do número de oportunidades de ação disponíveis. Em geral, uma maior dificuldade traz desafios que resultam em mais insucessos, nomeadamente em jogadores e equipas inexperientes. Enquanto jogadores experientes conseguem criar mais soluções mesmo quando há menos possibilidades, jogadores menos experientes precisam de mais tempo e espaço para criar oportunidades de ação. Ora, uma situação complexa não deve ser descrita como difícil, uma vez que os dois conceitos refletem características diferentes, como é evidenciado pela forma como são calculados (Travassos, 2014; para mais detalhes, ver texto aqui). Por exemplo, a inclusão de jogadores neutros (“jokers”) em jogos reduzidos pode contribuir para o desenvolvimento de jovens praticantes com níveis de habilidade mais baixos, pois aumenta a complexidade, devido à presença de mais jogadores (e informação) e, concomitantemente, diminui a dificuldade, tornando disponíveis mais oportunidades de ação.

 

Formatos e características-chave das atividades em forma de jogo

O fluxo do ato de jogar no contexto da temática variará sempre de acordo com a configuração escolhida para a atividade. Uma atividade de jogo bem concebida consegue relevar o contexto e a o ato de jogar no desenvolvimento dos indivíduos envolvidos. Há muitas apresentações possíveis de contextos de jogo e de paisagens de oportunidades de ação. Os formatos atuam como configurações e arranjos predefinidos, sequenciados de forma coerente, tendo em conta: (a) forma e tamanho da área de jogo (Clemente, 2016); (b) tipo e localização das balizas/alvos (Sarmento et al., 2018); (c) localização do campo na qual a situação de jogo é organizada. A combinação destes parâmetros gera contextos de desempenho distintos, nos quais a aprendizagem e o treino podem ocorrer eficazmente. Devido à sua escala crescente, os formatos expostos delineiam um continuum de 5 categorias de atividades, retratando configurações predefinidas. Segundo a perspetiva ecológica aplicada à construção da prática, os formatos são classificados em função das possibilidades de ação que proporcionam (Ribeiro et al., 2021; Woods et al., 2020) e pelo respetivo grau de representatividade da tarefa. 

Conforme exposto na tabela 1, as formas jogadas abertas implicam sequências curtas de jogo, que podem ser mais ou menos dinâmicas (i.e., defensores ativos ou passivos), pressupondo a resolução de problemas táticos básicos, com tomadas de decisão simples; os jogos reduzidos e condicionados são pequenos jogos com diferentes configurações, por vezes em espaços desproporcionais, e uma organização menos representativa comparativamente ao jogo formal; os jogos analíticos representam formas de jogo delimitadas para isolar uma subfase específica do jogo, localizadas em zonas específicas do campo; os jogos condicionados são jogos proporcionais, com configurações semelhantes ao jogo formal, embora possam conter constrangimentos adicionais não encontrados em competição (e.g., obrigatoriedade de executar um número mínimo de passes para entrar no terço ofensivo); o jogo completo corresponde ao jogo original praticado em contexto de treino, contendo as regras formais do futebol (e.g., lei do fora de jogo).

 

Tabela 1. Continuum dos formatos, do menos para o mais específico em relação ao jogo (adaptado de Petiot et al., 2023) (p.f., clique para ampliar). 


As formas jogadas estabelecem situações mais simples de jogo, oferecendo menos possibilidades de ação e uma banda mais estreita de busca e exploração de soluções táticas. Esta banda de exploração tática aumenta nos jogos reduzidos e condicionados, o que enfatiza o limitado potencial tático presente em situações de jogo 1v1. De facto, os jogos reduzidos e condicionados propõem um leque mais diversificado de oportunidades de ação porque são mais adaptáveis a formas, configurações e organizações divergentes. À medida que os formatos avançam no continuum, os jogos condicionados continuam a enquadrar oportunidades de ação específicas, em contraste com o realismo proporcionado pelo jogo completo, pois suscitam informações contextuais importantes referentes ao tema definido para a sessão ou para o microciclo. 

A representatividade das situações criadas nas atividades, a partir dos jogos analíticos em diante, direciona as intenções e a organização coletiva, restringindo, consequentemente, a gama de ações e responsabilidades passíveis de promover a adequação a um contexto circunscrito no campo. Havendo intenções mais direcionadas numa atividade significa que haverá menos oportunidades de ação divergentes a explorar pelos praticantes, uma vez que estas affordances são limitadas pelas intenções táticas a perseguir na tarefa. Assim, os formatos e as configurações possíveis resultam em diferentes implicações para a prática, mesmo que se rejam pela máxima de repetir (a resolução de um problema contextual) sem repetir (a mesma técnica) (Bernstein, 1967; Eskov et al., 2017). Em concordância com os referenciais dos cursos específicos para treinadores, os diferentes propósitos dos formatos constituem uma mensagem importante que os técnicos devem reter para contextualizar a prática e enfatizar as implicações de cada configuração. 

As atividades configuradas devem, portanto, ser planeadas de forma flexível ao longo de uma sessão de treino, com cada tarefa a contribuir gradualmente para a concretização dos objetivos específicos definidos para a sessão. Por exemplo, para praticar os princípios contenção e cobertura defensiva, podem ser usadas algumas ou todas as atividades que constam na figura 3. A sequência delineada corresponde a uma sessão tipicamente composta por quatro atividades, organizadas sequencialmente.

 

Figura 3. Exemplos de atividades em forma de jogo utilizadas para treinar ações e princípios defensivos em situações 4v4 (adaptado de Petiot et al., 2023).

 

Implicações práticas

Os treinadores devem explorar um vasto espectro de recursos para enriquecer o seu conhecimento sobre o uso, o impacto e as implicações das atividades em formato de jogo. As ideias apresentadas neste artigo foram cuidadosamente elaboradas com o objetivo de esclarecer as vantagens e os desafios associados à implementação de atividades jogadas, proporcionando evidências e referências para capacitar os treinadores a utilizá-las de maneira lógica e coerente. 

Para que os treinadores possam transformar um diagnóstico em atividades em forma de jogo, devem seguir o que é sugerido na figura 4. Recomenda-se que comecem a partir do jogo completo do respetivo escalão etário (e.g., 5v5, 7v7, 9v9 e 11v11), “desmembrando-o” em frações mais reduzidas.

 

Figura 4. Comparação dos processos de conceber e praticar atividades em forma de jogo (adaptado de Petiot et al., 2023).

 

A atividade em forma de jogo permite que os treinadores enquadrem as ações ou as sequências específicas esperadas em competição, estando adstritas a um tema que favorece o transfer para os contextos de desempenho. O contexto inerente à formulação do tema orienta a conceção dos diferentes formatos reduzidos de jogo. Os temas, os formatos e os parâmetros da atividade refletem as informações com as quais os treinadores podem trabalhar para criar exercícios a partir do zero. 

Qualquer configuração de atividade em forma de jogo tem uma influência clara e direta nas possibilidades que emergem em campo e fornece, até certo ponto, contextos significativos para os jogadores, na medida em que as ações se tornam transferíveis para contextos não condicionados de jogo. Portanto, os formatos incorporam graus de complexidade, dificuldade, especificidade e integridade, em função do arranjo dos diferentes parâmetros da tarefa. Conforme é possível verificar na tabela 2, a mensagem que convém reter é que os formatos devem manipulados e orientados para cumprir o seu propósito por meio das possibilidades de ação que providenciam aos praticantes.

 

Tabela 2. Propósitos dos diferentes formatos e as suas implicações em termos de processo de treino (adaptado de Petiot et al., 2023) (p. f., clique para ampliar). 


Ao nível da “prática do treinador”, destacamos que os próprios são responsáveis por experimentar e manipular as tarefas incorporadas no continuum proposto de atividades em forma de jogo. Estes processos envolvem a leitura do jogo, a manipulação dos parâmetros-chave e a intervenção em cada atividade concebida para um grupo específico de jogadores. A vantagem que decorre de se avançar com um quadro abrangente e flexível de formatos, como é este continuum, é poder navegar entre contextos, cada qual com características e oportunidades de ação diferenciadas.

 

Conclusão

Este artigo propõe um continuum de formatos de atividades de jogo, que variam em especificidade, complexidade e representatividade para atender às necessidades de jogadores com diferentes níveis de prática. Cada atividade em forma de jogo oferece oportunidades de ação para diferentes níveis de desempenho, com estruturas, parâmetros e regras variáveis e personalizáveis. Este instrumento constitui uma contribuição científica valiosa para o treino desportivo, com potencial para ser incluído em currículos nacionais e internacionais inerentes ao desenvolvimento de jovens jogadores e à preparação para a performance em competição.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

31/12/2021

Podcast “Ciência e Futebol” da Portugal Football School | Efeito da idade relativa

Anteontem, dia 29 de dezembro de 2021, foi lançado o 32.º episódio do podcast “Ciência e Futebol” da Portugal Football School, da Federação Portuguesa de Futebol (figura 1). Neste último episódio de 2021, tive a honra de ser o convidado e analisar, com o Alexandre Pereira, a problemática do “efeito da idade relativa” no futebol e no futsal, com particular referência à manifestação do fenómeno em Portugal.

 

Figura 1. Logotipo do Portugal Football School, um projeto da Federação Portuguesa de Futebol.

 

·       Ler a notícia no site da Federação Portuguesa de Futebol >> aqui

·       Ouvir diretamente o podcast na plataforma Spotify >> aqui

 

O convite surgiu na sequência do artigo recentemente publicado, em conjunto com a professora Anna Volossovitch, da Faculdade de Motricidade Humana, na revista Science and Medicine in Football: Relative age effect among U14 football players inPortugal: do geographical location, team quality and playing position matter? De resto, esta publicação já havia sido apresentada aqui no Linha de Passe. 

Como vai sendo apanágio por estas bandas, deixo-vos uma síntese dos conceitos, ideias e evidências que foram referidos no diálogo, sob a forma de perguntas e respostas.

 

O que é o “efeito da idade relativa”?

O “efeito da idade relativa” diz respeito a um conjunto de vantagens que um indivíduo possui numa determinada atividade humana, como consequência de ter nascido mais cedo num dado período de seleção, correspondendo, normalmente, ao ano civil (de 1 janeiro a 31 de dezembro). Nos jogos desportivos coletivos, o efeito traduz-se numa distribuição assimétrica de jogadores num grupo geracional, com uma sobrerrepresentação de elementos nascidos nos primeiros meses do ano e uma sub-representação de elementos nascidos nos últimos meses do ano.

 

Que vantagens podem ter os elementos relativamente mais velhos numa geração?

Maiores probabilidades de desenvolver, física e cognitivamente, mais cedo; mais experiência geral e específica, incluindo treino formal ou prática deliberada; criação de melhores expectativas nos treinadores; mais apoio/encorajamento social, entre outras.

 

Que relação existe entre “efeito da idade relativa” e a “maturação biológica”?

Apesar de serem muitas vezes confundidos, trata-se de dois construtos distintos. Embora possam estar relacionados, porque quem nasce cronologicamente mais cedo, tende também a maturar mais cedo, nem sempre isso acontece: há jogadores nascidos em janeiro que maturam mais tarde que jogadores nascidos em dezembro do mesmo ano.

 

Qual o panorama atual em termos de investigação em torno do “efeito da idade relativa”?

Há uma enorme quantidade de investigação sobre a prevalência do fenómeno em diversas amostras (modalidades desportivas, escalões etários e níveis competitivos), contudo, há uma escassez de estudos, de cariz multifatorial, com o propósito de relacionar o “efeito da idade relativa” com outros tópicos, nomeadamente a identificação e seleção de talentos no futebol/futsal (Sarmento et al., 2018). Nos últimos três anos, o panorama melhorou qualquer coisa, mas ainda há um longo caminho a percorrer para encontrar soluções mais assertivas para aplicar na prática.

 

Em Portugal, constatou-se que o “efeito da idade relativa” é mais pronunciado no futebol masculino, mas também foram evidenciadas algumas tendências no futebol feminino e no futsal (Figueiredo et al., 2021; Portugal Football Observatory,2021). É expectável que a magnitude do efeito aumente ou diminua a curto prazo?

Atualmente, estão claros dois pontos acerca da magnitude do “efeito da idade relativa”: (1) tende a ser mais forte em desportos mais populares e em níveis de prática/competição mais elevados; (2) é um tópico que tem sido alvo de investigação sistemática há mais de 30 anos e, apesar de todas as soluções adiantadas pelos investigadores, o efeito tem perdurado e, em alguns casos, até se tornou mais forte. O estudo do Portugal Football Observatory (2021) mostrou-nos que, nos últimos anos, tem havido um ligeiro decréscimo da probabilidade de selecionar jogadores do primeiro trimestre, relativamente ao último trimestre do ano, no futebol masculino (figura 2). Quanto ao futsal infantojuvenil e ao futebol feminino, sabemos que, por um lado, que a Federação Portuguesa de Futebol quer dar sequência ao aumento do número de praticantes registado nos últimos anos e, por outro lado, as evidências da influência do “efeito da idade relativa” e da “maturação biológica” já começaram a ser abordadas em cursos de treinadores/scouts. Se o objetivo é desenvolver o futsal e o futebol feminino no sentido de os aproximar da realidade do futebol masculino, então a tendência imediata é para que magnitude do efeito aumente.

 

Figura 2. Evolução do “efeito da idade relativa” no futebol infantojuvenil masculino, em Portugal, na última década (Portugal Football Observatory, 2021).

 

O facto de o efeito ser mais sentido nos escalões mais baixos (Sub-7 e Sub-9) no futsal e no futebol feminino, pode ser encarado como um sinal de alarme?

Sim. Tem sido verificado um “efeito de cascata” ao nível da idade relativa que, na generalidade, só começa a atenuar a partir dos escalões Sub-16 ou Sub-17. Se os dados demonstram a existência de um “efeito da idade relativa” nos escalões Sub-7 e Sub-9, é expectável que ocorra uma transferência desse efeito para os grupos etários seguintes, o que pode ser agravado com o aumento da popularidade e da competitividade no futsal e no futebol feminino.

 

No âmbito do Torneio Interassociações Sub-14 Lopes da Silva, que diferenças geográficas foram encontradas em Portugal?

O “efeito da idade relativa” foi examinado em 7 edições consecutivas deste torneio (2013–2019) e foi comprovado que as probabilidades de selecionar jogadores nascidos no primeiro trimestre (janeiro–março) foram significativamente superiores nas associações distritais das zonas Norte e Centro-Norte do país, comparativamente às associações regionais das Ilhas (Almeida & Volossovitch, 2021). Designadamente, a probabilidade de selecionar jogadores relativamente mais velhos aumentou 76.3% na zona Norte e 87.3% na zona Centro-Norte, em relação às Ilhas (figura 3). Nas zonas Centro-Sul e Sul também foram selecionados mais jogadores do primeiro trimestre, mas a comparação com as associações regionais das Ilhas não revelou diferenças estatisticamente significativas. Curiosamente, é nas ilhas em que a população residente é menor no nosso país, porém, não foi na zona de maior densidade populacional e com a maior porção de população residente em Portugal que o “efeito da idade relativa” obteve mais expressão (i.e., zona Norte). Os fatores demográficos são importantes, mas interagem com fatores socioculturais e económicos para determinar variações geográficas na magnitude do “efeito da idade relativa”.

 

Figura 3. Portugal dividido em 5 zonas geográficas, cada incorporando 4 ou 5 associações regionais/distritais de futebol (Almeida & Volossovitch, 2021).

 

Os treinadores da formação, ao convocar/recrutar os maiores, mais fortes e mais rápidos, potenciam o “efeito da idade relativa”?

É um facto. No Torneio Lopes da Silva, as equipas que alcançaram as melhores posições no certame foram compostas, significativamente, por mais jogadores nascidos no primeiro semestre do ano, em comparação com as seleções distritais que ficaram menos bem classificadas (Almeida & Volossovitch, 2021). Não é apenas uma questão de competitividade, é também cultural. Por norma, no futebol de formação, os treinadores começam a sua carreira nos escalões mais jovens, mas a maioria ambiciona chegar ao futebol sénior ou a um escalão etário mais velho. Um treinador de Sub-10, por exemplo, ganha menos, é menos mediático e, tal como os treinadores dos seniores, é avaliado pelos resultados desportivos e não pelo produto formativo. Por consequência, os processos de identificação e seleção de talentos surgem desvirtuados pelas expectativas intrínsecas dos treinadores, alastrando-se ao processo de treino e de competição, uma vez selecionados/recrutados os jovens jogadores. O que está em causa é a prontidão para competir no imediato e não o potencial a desenvolver a médio/longo prazo.

 

Perdem-se talentos em Portugal, eventualmente no Mundo, por causa deste “efeito da idade relativa”?

Infelizmente, sim, devido a práticas seletivas sem qualquer tipo de controlo de fatores como o “efeito da idade relativa” e a “maturação biológica”. Muitos jogadores relativamente mais jovens numa geração, ou que apresentam uma maturação mais tardia, não são recrutados tão frequentemente para academias de topo ou entidades formadoras, jogam menos nos seus clubes por questões físicas, reúnem menos expectativas dos treinadores e não têm tanto apoio social e suporte parental, por aí fora. Não lhes são dadas as condições e o tempo necessários para que o seu potencial se desenvolva e manifeste. Temos casos de jogadores da nossa seleção A que “escaparam” à malha de recrutamento dos principais clubes portugueses durante a sua formação e, hoje em dia, exibem desempenhos de excelência no futebol de elite: Bruno Fernandes e Diogo Jota, ambos nascidos no segundo semestre do ano.

 

O problema deste efeito reflete-se mais no não recrutamento ou no abandono?

Em ambos. O não recrutamento para academias de excelência ou seleções condiciona bastante o acesso ao futebol profissional, contudo, o “efeito da idade relativa” não desaparece em clubes não certificados, em centros básicos de formação de futebol ou escolas de futebol (Figueiredo et al., 2021; Portugal Football Observatory, 2021). Foi evidenciado que, nestes contextos, o abandono da modalidade é real, sobretudo entre os 12 e os 16 anos de idade, predominantemente em jovens nascidos no segundo semestre (figura 4).

 

Figura 4. Distribuição dos nascimentos por escalão etário nos abandonos do futebol masculino (Portugal Football Observatory, 2021).

 

A solução passa pelos clubes, na medida em que são eles quem recruta, ficando para as seleções a tarefa de escolher os melhores de cada momento?

Os clubes e as academias são os principais responsáveis pelo desenvolvimento do talento no futebol e no futsal. Reduzir o “efeito da idade relativa” passa, em primeira instância, pela consciencialização e pela vontade dos clubes, até porque, em muitos casos, este efeito instala-se em idades precoces (Sub-7, Sub-8 e Sub-9), em que a maturação física ainda nem sequer é um fator muito relevante. A disparidade entre o número de jogadores relativamente mais velhos e os seus pares mais novos tende a aumentar em níveis de desempenho mais elevados, como acontece nas seleções distritais e nacionais, em que o recrutamento já surge enviesado à partida. Dada a variedade de contextos associada aos clubes desportivos no nosso país, não creio que soluções definidas estritamente por parte dos clubes possam dar uma resposta cabal para o problema. Neste particular, a entidade que tutela o futebol em Portugal – a Federação Portuguesa de Futebol – tem um papel fundamental na concertação de esforços para atenuar o “efeito da idade relativa”, podendo, eventualmente, socorrer-se das associações distritais para responder, de forma adaptada, a situações mais específicas que ocorram localmente.

 

Que soluções podem ser adotadas para contrariar o “efeito da idade relativa”?

Webdale et al. (2020) efetuaram um estudo de revisão para aferir os pontos fortes e fracos das soluções que têm sido propostas pela comunidade científica. Estes autores constataram que nenhuma das soluções ou intervenções sugeridas resolvem na íntegra os efeitos nefastos deste fenómeno. A maioria das soluções apresentadas são teóricas e poucas foram testadas experimentalmente. Então, quais as estratégias que parecem ser mais promissoras?

4)  

1)  Agrupar os jogadores por estatuto maturacional, em vez de ser pela idade cronológica (bio-banding);

2)    Utilizar t-shirts ou coletes identificativos do trimestre de nascimento dos jogadores, em treinos de captação/observação, auxilia a tomada de decisão dos treinadores/scouts, atenuando o “efeito da idade relativa”;

3)   Aumentar a consciencialização dos diversos agentes desportivos, através da inclusão destas matérias em cursos ou em ações de formação certificadas para dirigentes, treinadores e scouts;

4)   Incrementar as oportunidades para os jogadores relativamente mais jovens numa coorte continuarem envolvidos no processo durante um período mais longo, mediante a criação das equipas ou campeonatos de futuro, como sucede na Bélgica ou nos Países Baixos.

 

A situação ideal para atenuar os efeitos da idade relativa não depende somente de uma estratégia. Implementar estratégias mistas ou híbridas pode ser muito útil neste âmbito, ainda que pouco tenham sido ponderadas e testadas no terreno, daí a durabilidade e a força deste “efeito da idade relativa”, particularmente no futebol masculino.


Para todos os leitores do Linha de Passe, expresso sinceros votos de saúde e paz para 2022. Tudo o resto virá no seu devido tempo.

 

Referências

Almeida, C. H., & Volossovitch, A. (2021). Relative age effect among U14 football players in Portugal: do geographical location, team quality and playing position matter? Science and Medicine in Football. https://doi.org/10.1080/24733938.2021.1977840

Figueiredo, P., Seabra, A., Brito, M., Galvão, M., & Brito, J. (2021). Are Soccer and Futsal Affected by the Relative Age Effect? The Portuguese Football Association Case. Frontiers in psychology, 12, 679476. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.679476

Portugal Football Observatory. (2021). A altura do ano em que se nasce condiciona a oportunidade de ser atleta de formação? (PFO 03 PT). Federação Portuguesa de Futebol. https://indd.adobe.com/view/73c7d01b-3558-4d41-bf88-b471686099e5

Sarmento, H., Anguera, M. T., Pereira, A., & Araújo, D. (2018). Talent identification and development in male football: A systematic review. Sports Medicine, 48(4), 907–931. https://doi.org/10.1007/s40279-017-0851-7

Webdale, K., Baker, J., Schorer, J., & Wattie, N. (2020). Solving sport’s ‘relative age’ problem: a systematic review of proposed solutions. International Review of Sport and Exercise Psychology, 13(1), 187–204. https://doi.org/10.1080/1750984X.2019.1675083

27/11/2020

Considerações sobre o treino nos desportos coletivos, a partir do livro “A tomada de decisão no futsal” (Bruno Travassos)

Dentro das minhas possibilidades, procuro ser um leitor assíduo acerca do treino nos desportos coletivos. Apesar de a minha preferência recair no futebol, não me coíbo de saber mais sobre outras modalidades desportivas e sobre o processo de treino em geral. Leio diversos tipos de publicações, mas, regra geral, não encontro muitas peças em português que validem categoricamente as minhas ideias e convicções sobre a prática no terreno. O livro “A tomada de decisão no futsal” do professor e treinador de futsal Bruno Travassos, cuja primeira edição remonta a 2014, foi uma lufada de ar fresco (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “A tomada de decisão no futsal” de Bruno Travassos (3.ª edição, 2019, Prime Books).

 

Escrito com base na tese de doutoramento e na experiência prática do autor, esta obra oferece-nos uma perspetiva sólida e cientificamente suportada de como o processo de treino no futsal deve ser encarado, com especial enfoque para o desenvolvimento da tomada de decisão. Desengane-se quem pensa que o conteúdo não é transversal a outras modalidades desportivas. Bem pelo contrário.

 

“Learn the rules like a pro, so you can break them like an artist”

(Pablo Picasso in Travassos, 2019, p. 24)

 

Citando Pablo Picasso, o autor aproveita para destacar o quão importante é a aprendizagem de determinadas regras de ação ou fundamentos nos desportos coletivos para que, no futuro, se possa alcançar um desempenho superior. Este nível superior (ou de elite) implica que um jogador ou equipa seja capaz de se auto-organizar face a acontecimentos situacionais inesperados, de modo a ser efetivo na execução da solução encontrada, mesmo que esta transcenda a norma. Numa simples palavra, referimo-nos à criatividade: para podermos ser criativos, temos, em primeira instância, de dominar as regras de ação, os princípios. 

De facto, os comportamentos nos jogos desportivos ocorrem de forma variável (mas não aleatória!), não apenas em função dos contextos que os proporcionam, mas também das regras, princípios e estratégias proporcionados pelos treinadores (figura 2).


Figura 2. Fatores que regulam os comportamentos específicos dos jogadores e das equipas nos desportos coletivos (adaptado de Travassos, 2019).

 

De acordo com a figura 2, é possível discernir três fatores essenciais para o processo de treino e para o rendimento em competição:

 

1) Princípios gerais e específicos do jogo: regulam o equilíbrio/desequilíbrio espaciotemporal (vantagem espacial e/ou numérica) de uma equipa em relação ao posicionamento da equipa oponente;

2) Modelo de jogo: representa as opções preferenciais de organização estrutural e funcional de uma equipa em função das condições de jogo;

3)  Informações contextuais do jogo: informações espaciotemporais que caracterizam as relações entre jogadores da mesma equipa e entre jogadores de equipas adversárias.

 

Por um lado, estes fatores interrelacionam-se com o processo de preparação para um evento competitivo, na medida em que há uma influência recíproca entre o que é alinhavado e treinado, e as bases estruturais e funcionais da equipa, em conjunção com as condições de jogo que são, de alguma forma, expectáveis. Por outro lado, o resultado prático – ações tático-técnicas individuais e coletivas –, nunca surge desligado daquela que é a matriz de atuação e organização dos jogadores e da interação que estabelecem com o envolvimento. No decurso do jogo há uma série de ajustes estratégico-táticos que desponta desta interdependência. 

O processo de treino não deve, por isso, pressupor a padronização comportamental, mecanicista, mas antes promover competências individuais e coletivas para lidar com a variabilidade que o jogo providencia.

 

Em termos práticos, para otimizar o comportamento coletivo de uma equipa não basta reproduzir um padrão coletivo de forma exemplar em contexto fechado (i.e., sem oposição) e onde todos os jogadores conheçam as movimentações da equipa, na totalidade. Para que se verifique um bom transfer para o contexto de competição é fundamental que os jogadores percebam e construam diferentes formas de resolver problemas em contextos de grande exigência tendo por base princípios de ação para o jogo (…). Estes planos e estratégias deverão permitir a definição de princípios de funcionamento coletivo da equipa, dando liberdade para o surgimento de comportamentos individuais mais flexíveis e adaptativos.

(p. 30) 

É nesta linha de raciocínio que Travassos (2019) destaca a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, assente na dinâmica ecológica, na qual o exercício de treino deve: (i) estimular a afinação percetiva dos jogadores às informações de suporte às ações do modelo de jogo; e, (ii) fomentar a capacidade dos jogadores em calibrar o uso de informação às suas capacidades de ação. De maneira a corresponder a este duplo intento de afinação percetiva e calibração percetiva-motora, os exercícios propostos deverão “assumir as mais variadas formas desde que sejam representativos dos contextos de jogo, isto é, mantenham a informação de suporte às ações do modelo de jogo” (p. 58). 

Os princípios metodológicos representatividade da tarefa e acoplamento perceção-ação devem estar implícitos nesta intervenção, para que comportamentos adaptativos semelhantes aos solicitados em situação de jogo possam emergir.

 

Assim, podemos concluir que enquanto o princípio da representatividade permite a afinação percetiva do jogador, é a manutenção do acoplamento informação-ação que permite o processo de calibração ao jogador.

(p. 61) 

No domínio da prática, para que o desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão do jogador sucedam harmoniosa e efetivamente, os objetivos da tarefa devem estar adaptados às capacidades dos jogadores e da equipa. A evolução nos fatores de rendimento supracitados deve ser acompanhada por acréscimos na dificuldade e na complexidade dos exercícios. De acordo com Travassos (2019), estes parâmetros podem ser calculados através das seguintes fórmulas:

 

(rácio entre o número de defensores e o número de possibilidades de ação do portador da bola, i. e., opções de passe, de remate e de condução/manutenção da posse de bola)

 

(quantidade de informação que os jogadores necessitam de atender no exercício em relação à situação de jogo formal)

 

Tomemos como exemplo dois exercícios para o treino de Futebol 11: 

1) Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m; figura 3). Jogadores apenas podem atuar e finalizar no seu corredor, sendo que o neutro interior (joker) pode criar superioridade numérica em cada um dos corredores. Marcar golo nas balizas laterais ou controlar a bola nas zonas finais centrais vale um ponto.


Figura 3. Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m).

 


2) Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m; figura 4). Três equipas de 6 jogadores de campo em regime “bota-fora”. Duas equipas defrontam-se no espaço definido, tendo como suporte nas linhas laterais os elementos da equipa que se encontra de fora (neutros ou jokers exteriores). Equipa que sofre golo sai para atuar como “neutra”, permanecendo em campo a equipa vencedora. Jogadores neutros jogam a 1 toque por intervenção sobre a bola.


 

Figura 4. Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m).

 

 

Reparem que duas situações de jogo distintas determinam relações opostas nos graus de dificuldade e complexidade. Na preparação de estruturas de planeamento (exercício, sessão, microciclo, etc.), o treinador deve ter presente que são dois conceitos distintos, ainda que complementares no que à didática da modalidade diz respeito. Neste sentido, Travassos definiu três etapas de aprendizagem/desenvolvimento da ação tático-técnica e da tomada de decisão, de acordo com critérios inerentes a (i) rigidez vs. fluidez dos comportamentos, (ii) capacidade de utilização da informação do contexto, (iii) capacidade de antecipação e adaptação a variações no contexto, e (iv) funcionalidade dos comportamentos. As etapas são as seguintes: 


Etapa 1Exploração de possibilidades de ação, que corresponde ao nível de principiante na modalidade;

Etapa 2Descoberta e estabilização de soluções, para um nível de prática intermédio;

Etapa 3Variabilidade nas possibilidades de ação, para indivíduos de nível avançado.


Entre outros aspetos que caracterizam cada nível evolutivo, o autor propôs uma integração dos parâmetros dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas, definindo valores de referência tanto para a aprendizagem e aperfeiçoamento de ações individuais, como para a aquisição e consolidação de comportamentos coletivos (tabela 1). 

 

Tabela 1. Valores de referência para a dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas de desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão (adaptado de Travassos, 2019). 


Segundo esta classificação é possível perceber, de forma mais criteriosa, se uma determinada tarefa de treino está ou não ajustada às capacidades dos jogadores e equipas com os quais trabalhamos, isto se partirmos do pressuposto de que enquadramos o indivíduo ou o grupo na etapa correta. Colocar miúdos com 6 ou 7 anos de idade a disputar jogos reduzidos 1v1 com balizas, por exemplo, pode não ser a tarefa mais indicada para principiantes na modalidade, uma vez que a situação acarreta um nível de dificuldade de 50%. Porém, se adicionarmos um neutro para formar equipa com o portador da bola (1v1+NT), aumentamos o número de possibilidades de ação, medida mais condizente com o nome da primeira etapa, e, concomitantemente, reduzimos o grau de dificuldade do exercício para 33,3%. 

Equacionar estes fatores com os demais relacionados com os objetivos, a estrutura ou os recursos espaciais e temporais, é uma atividade fulcral para qualquer treinador, em qualquer modalidade e em diferentes níveis de desempenho. A quantidade de informação que podemos retirar deste livro de futsal e transpor para outros contextos desportivos é enorme. Além disso, a fusão do conhecimento científico com o conhecimento que resulta da prática no terreno faz com que a obra seja um autêntico “must-read”. Aconselho! 

 

Referência

Travassos, B. (2019). A tomada de decisão no futsal (3.ª Edição). Prime Books.