27/11/2020

Considerações sobre o treino nos desportos coletivos, a partir do livro “A tomada de decisão no futsal” (Bruno Travassos)

Dentro das minhas possibilidades, procuro ser um leitor assíduo acerca do treino nos desportos coletivos. Apesar de a minha preferência recair no futebol, não me coíbo de saber mais sobre outras modalidades desportivas e sobre o processo de treino em geral. Leio diversos tipos de publicações, mas, regra geral, não encontro muitas peças em português que validem categoricamente as minhas ideias e convicções sobre a prática no terreno. O livro “A tomada de decisão no futsal” do professor e treinador de futsal Bruno Travassos, cuja primeira edição remonta a 2014, foi uma lufada de ar fresco (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “A tomada de decisão no futsal” de Bruno Travassos (3.ª edição, 2019, Prime Books).

 

Escrito com base na tese de doutoramento e na experiência prática do autor, esta obra oferece-nos uma perspetiva sólida e cientificamente suportada de como o processo de treino no futsal deve ser encarado, com especial enfoque para o desenvolvimento da tomada de decisão. Desengane-se quem pensa que o conteúdo não é transversal a outras modalidades desportivas. Bem pelo contrário.

 

“Learn the rules like a pro, so you can break them like an artist”

(Pablo Picasso in Travassos, 2019, p. 24)

 

Citando Pablo Picasso, o autor aproveita para destacar o quão importante é a aprendizagem de determinadas regras de ação ou fundamentos nos desportos coletivos para que, no futuro, se possa alcançar um desempenho superior. Este nível superior (ou de elite) implica que um jogador ou equipa seja capaz de se auto-organizar face a acontecimentos situacionais inesperados, de modo a ser efetivo na execução da solução encontrada, mesmo que esta transcenda a norma. Numa simples palavra, referimo-nos à criatividade: para podermos ser criativos, temos, em primeira instância, de dominar as regras de ação, os princípios. 

De facto, os comportamentos nos jogos desportivos ocorrem de forma variável (mas não aleatória!), não apenas em função dos contextos que os proporcionam, mas também das regras, princípios e estratégias proporcionados pelos treinadores (figura 2).


Figura 2. Fatores que regulam os comportamentos específicos dos jogadores e das equipas nos desportos coletivos (adaptado de Travassos, 2019).

 

De acordo com a figura 2, é possível discernir três fatores essenciais para o processo de treino e para o rendimento em competição:

 

1) Princípios gerais e específicos do jogo: regulam o equilíbrio/desequilíbrio espaciotemporal (vantagem espacial e/ou numérica) de uma equipa em relação ao posicionamento da equipa oponente;

2) Modelo de jogo: representa as opções preferenciais de organização estrutural e funcional de uma equipa em função das condições de jogo;

3)  Informações contextuais do jogo: informações espaciotemporais que caracterizam as relações entre jogadores da mesma equipa e entre jogadores de equipas adversárias.

 

Por um lado, estes fatores interrelacionam-se com o processo de preparação para um evento competitivo, na medida em que há uma influência recíproca entre o que é alinhavado e treinado, e as bases estruturais e funcionais da equipa, em conjunção com as condições de jogo que são, de alguma forma, expectáveis. Por outro lado, o resultado prático – ações tático-técnicas individuais e coletivas –, nunca surge desligado daquela que é a matriz de atuação e organização dos jogadores e da interação que estabelecem com o envolvimento. No decurso do jogo há uma série de ajustes estratégico-táticos que desponta desta interdependência. 

O processo de treino não deve, por isso, pressupor a padronização comportamental, mecanicista, mas antes promover competências individuais e coletivas para lidar com a variabilidade que o jogo providencia.

 

Em termos práticos, para otimizar o comportamento coletivo de uma equipa não basta reproduzir um padrão coletivo de forma exemplar em contexto fechado (i.e., sem oposição) e onde todos os jogadores conheçam as movimentações da equipa, na totalidade. Para que se verifique um bom transfer para o contexto de competição é fundamental que os jogadores percebam e construam diferentes formas de resolver problemas em contextos de grande exigência tendo por base princípios de ação para o jogo (…). Estes planos e estratégias deverão permitir a definição de princípios de funcionamento coletivo da equipa, dando liberdade para o surgimento de comportamentos individuais mais flexíveis e adaptativos.

(p. 30) 

É nesta linha de raciocínio que Travassos (2019) destaca a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, assente na dinâmica ecológica, na qual o exercício de treino deve: (i) estimular a afinação percetiva dos jogadores às informações de suporte às ações do modelo de jogo; e, (ii) fomentar a capacidade dos jogadores em calibrar o uso de informação às suas capacidades de ação. De maneira a corresponder a este duplo intento de afinação percetiva e calibração percetiva-motora, os exercícios propostos deverão “assumir as mais variadas formas desde que sejam representativos dos contextos de jogo, isto é, mantenham a informação de suporte às ações do modelo de jogo” (p. 58). 

Os princípios metodológicos representatividade da tarefa e acoplamento perceção-ação devem estar implícitos nesta intervenção, para que comportamentos adaptativos semelhantes aos solicitados em situação de jogo possam emergir.

 

Assim, podemos concluir que enquanto o princípio da representatividade permite a afinação percetiva do jogador, é a manutenção do acoplamento informação-ação que permite o processo de calibração ao jogador.

(p. 61) 

No domínio da prática, para que o desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão do jogador sucedam harmoniosa e efetivamente, os objetivos da tarefa devem estar adaptados às capacidades dos jogadores e da equipa. A evolução nos fatores de rendimento supracitados deve ser acompanhada por acréscimos na dificuldade e na complexidade dos exercícios. De acordo com Travassos (2019), estes parâmetros podem ser calculados através das seguintes fórmulas:

 

(rácio entre o número de defensores e o número de possibilidades de ação do portador da bola, i. e., opções de passe, de remate e de condução/manutenção da posse de bola)

 

(quantidade de informação que os jogadores necessitam de atender no exercício em relação à situação de jogo formal)

 

Tomemos como exemplo dois exercícios para o treino de Futebol 11: 

1) Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m; figura 3). Jogadores apenas podem atuar e finalizar no seu corredor, sendo que o neutro interior (joker) pode criar superioridade numérica em cada um dos corredores. Marcar golo nas balizas laterais ou controlar a bola nas zonas finais centrais vale um ponto.


Figura 3. Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m).

 


2) Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m; figura 4). Três equipas de 6 jogadores de campo em regime “bota-fora”. Duas equipas defrontam-se no espaço definido, tendo como suporte nas linhas laterais os elementos da equipa que se encontra de fora (neutros ou jokers exteriores). Equipa que sofre golo sai para atuar como “neutra”, permanecendo em campo a equipa vencedora. Jogadores neutros jogam a 1 toque por intervenção sobre a bola.


 

Figura 4. Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m).

 

 

Reparem que duas situações de jogo distintas determinam relações opostas nos graus de dificuldade e complexidade. Na preparação de estruturas de planeamento (exercício, sessão, microciclo, etc.), o treinador deve ter presente que são dois conceitos distintos, ainda que complementares no que à didática da modalidade diz respeito. Neste sentido, Travassos definiu três etapas de aprendizagem/desenvolvimento da ação tático-técnica e da tomada de decisão, de acordo com critérios inerentes a (i) rigidez vs. fluidez dos comportamentos, (ii) capacidade de utilização da informação do contexto, (iii) capacidade de antecipação e adaptação a variações no contexto, e (iv) funcionalidade dos comportamentos. As etapas são as seguintes: 


Etapa 1Exploração de possibilidades de ação, que corresponde ao nível de principiante na modalidade;

Etapa 2Descoberta e estabilização de soluções, para um nível de prática intermédio;

Etapa 3Variabilidade nas possibilidades de ação, para indivíduos de nível avançado.


Entre outros aspetos que caracterizam cada nível evolutivo, o autor propôs uma integração dos parâmetros dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas, definindo valores de referência tanto para a aprendizagem e aperfeiçoamento de ações individuais, como para a aquisição e consolidação de comportamentos coletivos (tabela 1). 

 

Tabela 1. Valores de referência para a dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas de desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão (adaptado de Travassos, 2019). 


Segundo esta classificação é possível perceber, de forma mais criteriosa, se uma determinada tarefa de treino está ou não ajustada às capacidades dos jogadores e equipas com os quais trabalhamos, isto se partirmos do pressuposto de que enquadramos o indivíduo ou o grupo na etapa correta. Colocar miúdos com 6 ou 7 anos de idade a disputar jogos reduzidos 1v1 com balizas, por exemplo, pode não ser a tarefa mais indicada para principiantes na modalidade, uma vez que a situação acarreta um nível de dificuldade de 50%. Porém, se adicionarmos um neutro para formar equipa com o portador da bola (1v1+NT), aumentamos o número de possibilidades de ação, medida mais condizente com o nome da primeira etapa, e, concomitantemente, reduzimos o grau de dificuldade do exercício para 33,3%. 

Equacionar estes fatores com os demais relacionados com os objetivos, a estrutura ou os recursos espaciais e temporais, é uma atividade fulcral para qualquer treinador, em qualquer modalidade e em diferentes níveis de desempenho. A quantidade de informação que podemos retirar deste livro de futsal e transpor para outros contextos desportivos é enorme. Além disso, a fusão do conhecimento científico com o conhecimento que resulta da prática no terreno faz com que a obra seja um autêntico “must-read”. Aconselho! 

 

Referência

Travassos, B. (2019). A tomada de decisão no futsal (3.ª Edição). Prime Books.

2 comentários:

António Cruz disse...

Se houver duas mini balizas, como no caso do primeiro exercício, as possibilidades de ação de finalização não passam a ser 2 em vez de 1 na fórmula?

Carlos Humberto Almeida disse...

António, a sua questão é muito pertinente e já me havia sido colocada pessoalmente por um amigo, também treinador.

Tendo em consideração a descrição acima da Figura 3 - "Jogadores apenas podem atuar e finalizar no seu corredor" -, cada elemento fica apenas com uma possibilidade de ação para finalizar. Há, no entanto, uma exceção: o neutro ou "joker", que apresenta três possibilidades de ação em termos de finalização, uma vez que pode finalizar nos três corredores de jogo. Como não quis complicar a interpretação do exercício, limitei-me a apresentar a regra e não a exceção.

Espero que faça sentido.

Cumprimentos,
--
CA