31/07/2020

O último cabalista de Lisboa (1996), de Richard Zimler

A obra selecionada para o encontro do mês de julho de 2020 do Clube de Leitura de Monchique foi “O último cabalista de Lisboa”, cuja primeira edição data de 1996. Desconhecendo por completo Richard Zimler, este foi o primeiro livro que li do autor. Trata-se de um romance histórico baseado em factos reais, em que Berequias Zarco, o narrador e protagonista, discursa quase em regime autobiográfico (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “O último cabalista de Lisboa”, do autor Richard Zimler.

 

A trama gira em torno do assassinato do líder e mestre espiritual Abraão Zarco e da incompatibilidade entre duas religiões distintas – a judaica, sendo que muitos judeus foram convertidos em cristãos-novos, e a cristã, cujos crentes eram os cristãos-velhos. O clima de crispação vigente determinou o massacre de judeus no Rossio na Páscoa de 1506, a designada matança da Páscoa de 1506. Para os cristãos-velhos, incitados por frades dominicanos, os judeus eram os culpados da seca, da fome e da peste negra, devido ao seu pacto, alegadamente secreto, com o diabo. Não deixa de ser um tema forte na atualidade, na medida em que os deuses de uns são o diabo para os outros e, por isso, se têm matado milhões de pessoas ao longo da história da humanidade, pela intolerância à diferença associada ao fanatismo religioso.

Além da busca incessante de Berequias Zarco, acompanhado pelo seu fiel amigo e primo Farid, pelo assassino do tio Abraão, há inúmeras passagens desta época de ouro dos descobrimentos portugueses que me impressionaram:

 

· Os tumultos ocorreram na ausência do rei que, devido à peste negra, se havia retirado para Abrantes (muito embora fosse uma prática comum na altura, não se coaduna com a máxima que postula que os bons exemplos devem vir de cima);

 

· Os escravos africanos que morriam, muitos deles a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos, eram atirados para montes de esterco nos arredores de Lisboa (a dignidade da vida humana rebaixada à condição de esterco);

 

· Berequias assistiu à execução de judeus no Rossio, contudo, quando estava a ser perseguido por cristãos-velhos, foi salvo por uma família muçulmana (a intolerância não depende estritamente das diferenças entre religiões, mas na maldade das pessoas que se servem da religião para atingir determinados fins);

 

· A cinco séculos de distância, confesso que a citação seguinte foi extremamente dolorosa de ler:

(…) Sentado numa pá, via-se um recém-nascido desconhecido a quem tinham arrancado a cabeça.

Face ao impensável, que assim tomara forma, nenhum de nós ousara falar.

Alguém pode imaginar o que significa ver uma criança decapitada sentada numa pá? É como se todas as línguas do mundo ficassem esquecidas, como se todos os livros escritos se tivessem reduzido a pó. E como se alguém pudesse ficar feliz com tal coisa; por pessoas como nós não terem direito a falar ou escrever ou deixar qualquer traço na História (p.103).

 

· Depois há uma observação muito interessante sobre o povo português e que julgo que perdurou ao longo de todo este tempo até aos dias de hoje:

Enquanto caminhamos, observamos a atitude respeitosa do povo da cidade, o mesmo povo que um dia ou dois antes era capaz de exigir a cabeça do rei. «Esta passividade está profundamente entranhada nas almas dos cristãos portugueses», penso. «Nunca nenhuma revolta há de aqui ter sucesso» (p. 272). A passividade é um traço característico do povo português ainda visível nos tempos correntes, mas houve algumas revoltas nos últimos 500 anos e, talvez por isso, ainda possamos dizer que somos portugueses e usufruir de direitos como a liberdade de expressão.

 

· A definição cabalística do mal é, na minha opinião, um eufemismo, mas que, de certo modo, nos indica que o ser humano quando nasce é bom: “o bem que se afastou do seu justo lugar” (p. 350).

 

· Para concluir, o aviso premonitório de Berequias Zarco – o Mardoqueu na iluminura do mestre Abraão Zarco –, o herói do povo judeu: “A matança mal começou. (…) Mais tarde ou mais cedo, neste século ou daqui a cinco séculos, hão de vir procurar-vos ou aos vossos descendentes” (p. 351). Teriam os seus ensinamentos cabalísticos permitido que vislumbrasse o que viria ser o holocausto?

 

Um livro muito bem escrito, com um enredo exemplarmente estruturado pelo autor, baseado nos três manuscritos originais de Berequias Zarco e que nos relata acontecimentos que não constam propriamente nos manuais da História de Portugal.

Sem comentários: