18/10/2020

Artigo do mês #10 – outubro 2020 | O impacto do VAR na tomada de decisão de árbitros de futebol

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Spitz, J., Wagemans, J., Memmert, D., Williams, A. M., & Helsen, W. F.

País: Bélgica

Data de publicação: 14-agosto-2020

Título: Video assistant referees (VAR): The impact of technology on decision making in association football referees

Revista: Journal of Sports Sciences

Referência: Spitz, J., Wagemans, J., Memmert, D., Williams, A. M., & Helsen, W. F. (2020). Video assistant referees (VAR): The impact of technology on decision making in association football referees. Journal of Sports Sciences. https://doi.org/10.1080/02640414.2020.1809163

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 10 – outubro de 2020.

 

Apresentação do problema

Nas últimas décadas, os atletas e os treinadores têm demonstrado obsessão em ultrapassar os limites, estabelecendo novos records e tornando-se técnica e taticamente mais competentes, mais rápidos e mais fortes (Coutts, 2016). Por sua vez, os árbitros/juízes desempenham um papel importante na gestão das competições ao mais alto nível, sendo que a sua performance pode influenciar, em primeira instância, o sucesso de atletas e equipas e, subsequentemente, o enorme impacto social e económico que daí advém. As entidades que tutelam o desporto têm, por isso, feito um esforço para que os árbitros, tal comos os atletas, possuam as melhores condições para cumprir as suas tarefas. A permissão do uso de avanços tecnológicos nas competições desportivas (e.g., sistemas de rastreio da bola no ténis e no cricket, tecnologia da linha de golo no futebol, repetições imediatas no basquetebol e no futebol americano, etc.) encontra-se entre as medidas suprarreferidas. 

Estas inovações tecnológicas suportam a tomada de decisão dos árbitros, tornando-as mais precisas (Leveaux, 2010). No futebol, em particular, as leis de jogo referentes à época 2018/2019 incluíram a introdução do Video Assistant Referee (VAR). Esta modalidade requer que os árbitros tomem decisões instantâneas enquanto lidam com diversas fontes de informação, pelo que decisões incorretas podem acontecer devido a (1) falha na perceção do lance, (2) influência do contexto (e.g., barulho dos adeptos ou pressão dos jogadores) e (3) interferência de decisões anteriores. A tomada de decisão dos árbitros não é, deste modo, 100% eficaz e o VAR tem sido empregue com o intuito de corrigir erros claros e óbvios em situações passíveis de alterar o curso do jogo, como golos, penáltis, vermelhos diretos ou má identificação de um jogador infrator. 

O VAR é assistido por um operador de repetições que verifica todos os lances passíveis de alterar o desenrolar do jogo. Se o VAR considera que o árbitro ou um assistente errou claramente, corrige no imediato a decisão (i.e., foras-de-jogo; figura 2) ou, em jogadas de cariz subjetivo, solicita a revisão do lance pelo árbitro principal. O uso desta tecnologia pode melhorar a exatidão das decisões dos árbitros em situações que requeiram precisão temporal (momento certo) e espacial (local da bola ou do jogador). No entanto, permanece incerto até que ponto as repetições de vídeo podem ajudar os árbitros, em decisões que exigem a interpretação da regra e a sua aplicação durante o jogo (Helsen et al., 2019). Neste estudo, o primeiro objetivo foi investigar o impacto do VAR nas performances dos árbitros, ou seja, se as intervenções do VAR melhoraram ou não a precisão das decisões iniciais. O segundo objetivo foi examinar o número e a duração das intervenções do VAR por jogo, de forma a entender se estes avanços tecnológicos prejudicam ou não o típico “fluxo do jogo” no futebol.

 

Figura 2. A intervenção do VAR no futebol de alto rendimento.

(imagem não publicada pelos autores; fonte: marca.com)

 

Métodos

Recolha de dados: foram recolhidos dados de 2195 jogos de 13 associações/federações nacionais de futebol (Alemanha, Austrália, Bélgica, China, Coreia do Sul, França, Estados Unidos da América, Inglaterra, Itália, Países Baixos, Polónia, Portugal e República Checa). A utilização do VAR só foi permitida em jogos oficiais promovidos pelas entidades organizadoras, caso o protocolo fosse implementado em pleno respeito pelo manual do International Football Association Board (IFAB). Os protocolos operacionais do VAR são os mesmos para cada país/associação nacional (FIFA, 2019), sendo os procedimentos inerentes a cada intervenção (upload dos clips de vídeo, descrições detalhadas de cada verificação ou revisão e preenchimento de questionário com 24 itens sobre eficácia, duração e impacto) assegurados por 13 gestores de projeto. Foi solicitado aos membros dos comités nacionais de arbitragem (variando entre 5 a 10 elementos) que determinassem, de forma independente, a decisão de referência para cada situação, em função das Leis de Jogo (FIFA, 2017, 2018). A exatidão da decisão foi calculada apenas para as decisões em que se verificou consentimento entre os peritos de cada comité nacional; as decisões de jogadas consideradas dentro da chamada “zona cinzenta” foram excluídas da análise de eficácia. 

Variáveis dependentes e análise estatística: todas as verificações e revisões afetas às 4 categorias de intervenção foram analisadas: golos, penáltis, vermelhos diretos e má identificação de jogador infrator.

·      Eficácia da decisão: esta variável foi calculada separadamente para a decisão inicial (eficácia da decisão inicial) e para a decisão final após uma possível intervenção do VAR (eficácia da decisão final). Os resultados de eficácia foram indicados como o número total de decisões corretas em percentagem, ou seja, decisões que estiveram de acordo com a decisão de referência tomada pelo painel de peritos de cada comité nacional.

·      Duração das verificações e das revisões: a duração da verificação está associada ao tempo que a equipa do VAR demora a verificar um episódio para determinar se é ou não necessária revisão; de acordo com o protocolo do VAR, o processo de revisão começa quando o árbitro principal executa a sinalética retangular com as duas mãos, em forma de um ecrã de televisão, e termina quando a decisão final é indicada pelo árbitro.

·    Análise estatística: as probabilidades de decisões iniciais e finais corretas foram examinada utilizando um modelo de regressão logística. Como as decisões iniciais e finais não são estatisticamente independentes, foi utilizado um modelo de efeitos randomizados, com um termo aleatório para o árbitro, ajustado por uma série de outros procedimentos inseridos no Statistical Analyses Software (SAS) 9.4. Baseando-se neste modelo, foram estimadas as proporções de decisões iniciais e finais corretas. Finalmente, o número e a duração de verificações e revisões foram apresentados através de medidas de estatística descritiva (frequências, medianas e amplitudes interquartis).

 

Principais resultados

Observaram-se 9732 verificações nos 2195 jogos. No total, 638 situações foram classificadas como pertencentes à “zona cinzenta”, ou seja, decisões em que não havia uma decisão de referência inequívoca (i.e., mais do que uma decisão era aceitável). Houve 99 revisões de episódios na “zona cinzenta” e os árbitros alteraram a decisão inicial em 44 vezes (7% dos incidentes na “zona cinzenta”). 

A decisão inicial do árbitro foi correta em 8367 das 9094 situações em que houve uma decisão de referência clara, resultando numa eficácia de 92.1%. Após a intervenção do VAR, 8942 das 9094 decisões tomadas foram corretas, originando uma taxa de acerto de 98.3%. Os parâmetros estimados do modelo indicaram que houve um efeito significativo do tipo de decisão (p < 0.0001), sendo que as probabilidades preditivas de tomar uma decisão final correta, após uma possível intervenção do VAR, foram significativamente mais elevadas do que a decisão inicial. Em síntese, houve um decréscimo nas probabilidades de sucesso da decisão inicial (Odds Ratio = 0.19) em comparação com a decisão final. Adicionalmente, em 585 dos 718 episódios com decisão inicial incorreta (81.5%), a decisão foi revista e corrigida em 577 ocasiões. Em 111 dos 8376 incidentes com decisão inicial correta (1.3%), a decisão foi revista e revertida para uma decisão incorreta. 

Apurou-se uma média de 4.4 verificações por jogo, com a duração mediana de cada verificação a estabelecer-se nos 22 segundos. A duração mediana de todas as verificações durante o jogo foi de 110 segundos. Ao todo, 795 das verificações ocasionaram revisões (média de 0.36 por jogo), sendo 534 dessas revisões efetuadas em campo pelo árbitro principal, com uma duração mediana de 62 segundos, e 261 estritamente conferidas pelo VAR, com uma duração mediana de 15 segundos. 

A distribuição de verificações e revisões pelas diferentes categorias dos incidentes (em %) está apresentada na tabela 1.

 

Tabela 1. Número de verificações/revisões por categoria de incidente (Spitz et al., 2020). 


A maior proporção de verificações esteve associada a incidentes de amostragem do cartão vermelho direto (39.3%), seguida de eventos de grande penalidade (33.4%). Em termos de revisões, foram reavaliados mais lances subjacentes à marcação de penáltis (43.9%) e à validação de situações de golo (32.5%). Nos casos de revisão, o árbitro teve a oportunidade de mudar a decisão inicial, pelo que, devido à intervenção do VAR, houve a mais 76 penáltis (164 marcados; 88 cancelados) e 126 cartões vermelhos (132 concedidos; 6 cancelados), e a menos 114 golos (61 validados; 175 cancelados; figura 3).

 

Figura 3. Golo anulado pelo VAR ao Gil Vicente FC frente ao CD Tondela (17-out-2020), por fora-de-jogo.

(imagem não publicada pelos autores; fonte: vsports.pt)

 

Conclusão

Os autores demonstraram que as chances de tomar decisões corretas aumentaram significativamente com a utilização do VAR, comparativamente à decisão inicial tomada sem o recurso a esta tecnologia. Contudo, uma vez que subsiste o elemento humano no processo de perceção e avaliação dos lances, é praticamente impossível eliminar todos os erros de tomada de decisão claros e óbvios para atingir uma eficácia de 100%, mesmo com a utilização do VAR. Em relação ao segundo objetivo do estudo, os resultados revelaram que, em mais de 70% dos jogos, as verificações dos incidentes passíveis de afetar o curso do jogo não implicaram revisões. Como as verificações ocorrem em contexto de estúdio, têm um impacto mínimo no fluxo natural do jogo. Quando há revisões, aumenta a duração das paragens e tende a diminuir o tempo útil de jogo. 

A análise das alterações das decisões mostrou que houve mais penáltis e vermelhos diretos, e menos golos devido à intervenção do VAR. Portanto, é fundamental que se continue a aplicar esta tecnologia de vídeo de forma ponderada e equilibrada, pois tanto pode deteriorar a credibilidade de uma equipa de arbitragem, como mudar a dinâmica do jogo de futebol.

 

Aplicações práticas

O aumento da qualidade das decisões iniciais tem o condão de reduzir o número de intervenções do VAR e limitar o tempo de jogo perdido em paragens. Há trabalhos que indicam que o treino percetivo-cognitivo pode melhorar a tomada de decisão dos árbitros (Catteeuw et al., 2010; Kittel et al., 2019), pelo que se sugere a implementação e o investimento em programas de treino específicos para as diversas funções que os elementos da equipa de arbitragem têm de cumprir. 

As Leis do Jogo estão em evolução constante, mas a avaliação de determinados episódios do jogo permanecerá subjetiva e suscetível de causar discussão. Com a introdução do VAR, pode haver a tendência para formular critérios mais objetivos, como no caso recente da regra de “mão na bola” (FIFA, 2019). 

É essencial que as entidades internacionais que tutelam o futebol se empenhem no sentido de reduzir os tempos de pausa associados à intervenção do VAR, sobretudo no que diz respeito às revisões. O IFAB e a FIFA têm discutido a ideia de adotar um tempo efetivo de jogo de 60 minutos, parando o cronómetro cada vez que a bola não está em jogo. Outra opção, segundo o IFAB (2017), passa por haver um cálculo rigoroso do tempo adicional a conceder para compensar as perdas de tempo relativas à intervenção do VAR ou a outras interrupções.

 

P.S.:

1- As que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2- Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3- As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

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