30/05/2021

Artigo do mês #17 – maio 2021 | Análise dos “piores cenários possíveis” numa equipa de futebol de elite

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Novak, A. R., Impellizzeri, F. M., Trivedi, A., Coutts, A., & McCall, A.

País: Austrália

Data de publicação: 10-abril-2021

Título: Analysis of the worst-case scenarios in an elite football team: Towards a better understanding and application

Revista: Journal of Sports Sciences

Referência: Novak, A. R., Impellizzeri, F. M., Trivedi, A., Coutts, A., & McCall, A. (2021). Analysis of the worst-case scenarios in an elite football team: Towards a better understanding and application. Journal of Sports Sciences. https://doi.org/10.1080/02640414.2021.1902138

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 17 – maio de 2021.

 

Apresentação do problema

Ao avaliar as atividades realizadas por um jogador em contexto competitivo, no sentido de identificar determinantes físicas e fisiológicas da performance, é possível definir objetivos de treino na estruturação das sessões práticas (Impellizzeri et al., 2019). Porém, para entender as exigências fisiológicas impostas pela carga externa do treino, também é necessário dispor de medidas da carga interna. Em conjunto, ambas permitem monitorizar a ocorrência de respostas internas favoráveis (ou desfavoráveis). Mais recentemente, as medidas da carga externa de jogos competitivos têm sido utilizadas para melhorar a conceptualização de exercícios de treino específicos, como os jogos reduzidos/condicionados, visando replicar as atividades que são efetuadas em contexto de jogo (Delaney, Duthie et al., 2016; Furlan et al., 2015; Weaving et al., 2019). 

Apesar disso, ultimamente tem sido sugerido que as médias das atividades em jogo têm uma relevância limitada na preparação do jogador, pois a aplicação desses valores como referências no treino pode não determinar que os indivíduos sejam expostos aos períodos mais intensos que ocorrem, intermitentemente, no decurso de uma partida (Delaney et al., 2015). Essas atividades, doravante designadas como os “piores cenários possíveis” (worst-case scenarios), têm sido analisadas de diversas formas: períodos de esforços repetidos de alta intensidade, períodos mais longos com a bola em jogo, períodos curtos com durações fixas, ou utilizando uma técnica de análise da média do movimento ao longo de muitos períodos do jogo, recorrendo a diversas variáveis espaciotemporais (e.g., distância, velocidade média, corrida de alta intensidade, aceleração média, potência metabólica e colisões). 

Em todos os casos, o intento aparenta ser o mesmo: captar as atividades físicas mais intensas experienciadas durante um jogo competitivo, por forma a que um estímulo semelhante possa ser reproduzido pelos jogadores no treino, potenciando, consequentemente, respostas positivas (McCall et al., 2020). Os “piores cenários possíveis” podem ser influenciados por inúmeros fatores contextuais além daqueles que já foram estudados (i.e., posições de jogo ou entre partes do jogo), como o tempo de ocorrência dentro de uma parte do jogo, estatuto do jogador (titular vs. substituto), a quantidade de minutos que um jogador está em campo e a quantidade de trabalho efetuado pelo jogador no período precedente a um “pior cenário possível”. Estes fatores devem ser equacionados em conjunto, pois os autores acreditam que o conceito de “pior cenário possível” não só ainda não foi adequadamente definido, como não foi proposta qualquer estrutura teórica apropriada para testar a sua existência e utilidade (figura 2).

 

Figura 2. Os “piores cenários possíveis” e as atividades físicas mais exigentes experienciadas num jogo. Fará sentido? (fonte: statsport.com; imagem não publicada pelos autores).

 

O objetivo geral deste estudo foi investigar os “piores cenários possíveis” no futebol, definidos como janelas temporais em curso. Embora estudos anteriores tenham reportado diferenças entre posições dos jogadores e partes do jogo no râguebi (Delaney, Duttie et al, 2016; Weaving et al., 2019) e os profissionais utilizem o constructo para monitorizar variáveis de alta intensidade (corrida em alta velocidade e sprint), um primeiro propósito passou por quantificar a variabilidade dos “piores cenários possíveis” quando estas análises são implementadas. Para o efeito, foi levantada a hipótese que “os piores cenários possíveis” são altamente variáveis, influenciados por diversos fatores contextuais e de valor limitado para os técnicos na tarefa de conceptualizar estruturas de planeamento para o treino. Um segundo propósito passou por propor uma potencial estrutura teórica para melhor definir e investigar os “piores cenários possíveis”.

 

Métodos

Desenho do estudo e participantes: foi levado a cabo um estudo retrospetivo e transversal, utilizando dados de 26 jogadores profissionais de futebol (idade: 28 ± 4 anos; estatura: 182 ± 6 cm; massa corporal: 78.8 ± 6.2 kg). Estes jogadores competiram por uma equipa da Premier League, ao longo de 38 jornadas, na época 2018/2019. Os guarda-redes foram removidos da análise, bem como os jogadores que participaram em menos de 5 jogos, sendo incluídos 21 jogadores de 5 grupos posicionais na amostra: médios-centro (n = 7), defesas centrais (n = 5), médios ala/extremos (n = 2), defesas laterais (n = 4) e pontas de lança (n = 3). Todos os dados foram analisados de forma anónima. 

Recolha de dados, cálculos e procedimentos: as coordenadas posicionais dos jogadores foram obtidas em cada jogo, com uma frequência de 25 Hz, recorrendo ao sistema de rastreamento ótico TRACAB Gen4 (ChyronHego, New York, USA), que foi previamente validado (c.f. Linke et al., 2015). Para cada jogador, em cada jogo e para cada parte, o “pior cenário possível” (worst-case scenario: WCS) foi definido como o pico de distâncias total (WCSTD), em corrida de alta velocidade (≥ 5.5 m/s; WCSHSR) e em sprint (≥ 7.0 m/s; WCSSP), e calculado em janelas de 3 minutos. Foi realizada uma observação por cada jogador em cada parte dos jogos, resultando numa média de 33 ± 22 observações por jogador. Após identificado o “pior cenário possível”, os 3 minutos precedentes foram calculados e definidos como o pré-período. As variáveis contextuais analisadas foram o grupo posicional, estatuto do jogador (titular vs. substituto), parte do jogo (1.ª vs. 2.ª), atividade total não acoplada para cada parte (o “pior cenário possível” de cada parte foi subtraído da atividade total apurada nessa mesma parte do jogo), minutos desde o início de cada parte, minutos totais jogados em cada parte e atividade no pré-período. 

Análise estatística: todas as análises estatísticas foram realizadas no programa R. Os “piores cenários possíveis” foram analisados através de modelos de efeitos mistos (mixed effects models), um para cada variável dependente (WCSTD, WCSHSR e WCSSP), de acordo com a figura 3. As variáveis contínuas foram estandardizadas para facilitar as comparações entre variáveis com escalas diferentes. Todas as variáveis independentes foram incluídas nos três modelos. No caso da variável categórica “grupo posicional”, a categoria de referência foi “defesas centrais”, por ser o grupo com mais observações. Para cada variável independente foram calculados os coeficientes estimados e os intervalos de confiança a 95%. Os valores marginais e condicionais de R2 foram, também, calculados para avaliar a variância explicada pelos modelos, contendo ou não os efeitos aleatórios.

 

Figura 3. Desenho do modelo. Os efeitos fixos estão hipoteticamente associados ao “pior cenário possível” (Worst-Case Scenario: WCS). Os efeitos aleatórios indicam fontes de variância atribuídas às medidas repetidas recolhidas da amostra (Novak et al., 2021).

 

Principais resultados

 

·      “Pior cenário possível” para distância total (WCSTD)

O coeficiente de variação intraindividual para distância total foi de 6.2%. O efeito do grupo posicional foi forte, com os defesas centrais, laterais, pontas de lança e médios ala/extremos a apresentarem menores valores de WCSTD que os médios-centro. Valores mais elevados nesta métrica estiveram associados com ocorrências precoces na parte do jogo ou na partida, atividades não acopladas mais elevadas e para jogadores substitutos. A variância não explicada permaneceu elevada (R2 = 0.53; 53%).

 

·      “Pior cenário possível” para corrida de alta velocidade (WCSHSR)

O coeficiente de variação intraindividual para esta variável aumentou para 25.2%. O efeito do grupo posicional também atenuou, sendo que apenas os defesas centrais registaram menores valores de WCSHSR que os médios-centro. Valores mais elevados de atividades não acopladas na mesma parte do jogo estiveram associados a valores de WCSHSR mais elevados. Inversamente, uma menor quantidade de minutos jogados esteve relacionada com valores mais elevados de WCSHSR. A variância não explicada manteve-se igualmente elevada (R2 = 0.53; 53%).

 

·      “Pior cenário possível” em sprint (WCSSP)

O coeficiente de variação intraindividual para a atividade em sprint alcançou o valor de 46.1%. Não houve diferenças significativas entre os grupos posicionais. Os valores mais elevados de WCSSP estiveram associados a valores mais elevados de produto total não acoplado e com uma ocorrência tardia na parte do jogo analisada. A variância não explicada reduziu ligeiramente (R2 = 0.40; 40%). 

As evidências refletem que estas variáveis são instáveis e difíceis de utilizar na prática, conforme ilustra a figura 4.

 

Figura 4. Variabilidade no tempo de ocorrência/timing dos “piores cenários possíveis” num jogo de futebol de elite. Os “piores cenários possíveis”, medidos por diferentes variáveis, não são necessariamente concorrentes (apenas jogadores que começaram e completaram uma parte inteira do jogo foram incluídos no gráfico) (Novak et al., 2021).

 

Estrutura teórica para definir e investigar os “piores cenários possíveis”

A elevada variabilidade na manifestação dos “piores cenários possíveis”, que, inclusivamente, podem ocorrer em diferentes fases do jogo, sugere que as reais exigências destes episódios podem variar consoante as circunstâncias nos quais ocorrem. Portanto, a utilização de valores de referência para induzir adaptações fisiológicas relevantes e adequadas no treino é, no mínimo, questionável. Por outro lado, mesmo que os “piores cenários possíveis” constituíssem uma métrica estável/regular, somente iria refletir a carga externa de uma única variável locomotora, sendo necessárias diversas interpretações univariadas. O problema é que um “pior caso possível” (ou outra qualquer definição para pico de exigências locomotoras) é, provavelmente, um constructo muito mais complexo, requerendo, assim, análises multivariadas. 

Os autores propuseram que um “pior cenário possível” resulta da combinação de vários fatores de carga externa e variáveis contextuais, com a variabilidade intraindividual a poder ser observada através de medidas de resposta interna em condições multivariadas. A figura 5 exibe o construto multifatorial de “pior cenário possível”, explicando alguns motivos para a variabilidade associada. A resposta interna observável deve ser selecionada em função da especificidade da atividade e do contexto. Por exemplo, a frequência cardíaca e a perceção subjetiva de esforço podem representar apropriadamente as exigências de atividades coletivas no terreno.

 

Figura 5. Estrutura teórica para definir e investigar os “piores cenários possíveis” como um constructo composto, determinado por várias combinações de fatores contextuais e de carga externa, e observável mediante medidas da carga interna (Novak et al., 2021).

 

Aplicações práticas

Os treinadores ou outros técnicos devem-se abster de recorrer aos “piores cenários possíveis” ou exigências pico para investigar variáveis locomotoras univariadas. 

Treinar ou estimular os jogadores para corresponderem positivamente a “piores cenários possíveis”, com base em performances anteriores ou valores médios, pode não os preparar convenientemente para um “pior cenário possível” num jogo futuro. 

É fundamental entender que um verdadeiro “pior cenário possível” é um constructo complexo e composto que, na realidade, constitui uma resposta interna extrema induzida pela combinação de diversos fatores de performance e contextuais. 

A equipa técnica deve estar ciente que um “pior cenário possível” não ocorre simultaneamente para todas as métricas (e.g., distância total, distância em corrida em alta velocidade ou distância em sprint) ou jogadores, o que permite dotar as suas expectativas para aprimorar o desempenho físico e a respetiva conceptualização do treino de maior representatividade.

 

Conclusão

No cômputo geral, quando analisado como uma métrica univariada, “o pior cenário possível” apresenta uma fraca consistência, em particular, estando na base da análise variáveis locomotoras que são frequentemente utilizadas pelos treinadores em desportos de equipa profissionais. Os valores de referência para, por exemplo, delimitar atividades de alta intensidade no treino são questionáveis. Ponderar cada “pior cenário possível” como um construto composto, que resulta de várias combinações de atividades físicas e fatores contextuais, e que pode ser monitorizado por parâmetros apropriados de carga interna, parece ser mais sensato. Finalmente, o conceito de “pior cenário possível” não foi previamente bem definido e a sua aplicabilidade no treino para promover adaptações fisiológicas favoráveis requer mais investigação.

 

P.S.:

1-  As que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

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