30/06/2024

Artigo do mês #54 – junho 2024 | “Estacionar o autocarro” ou pressionar alto? Perspetivas táticas defensivas do Mundial de 2022, no Catar

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 54 -

Autores: Praça, G. M., Oliveira, P. H. A., Brandão, L. H. A., Abreu, C. O., Andrade, A. G. P., & Nobari, H.

País: Brasil

Data de publicação: 21-maio-2024

Título: Parking the bus or high pressing? Defensive tactical insights from the 2022 FIFA Men’s World Cup

Referência: Praça, G. M., Oliveira, P. H. A., Brandão, L. H. A., Abreu, C. O., Andrade, A. G. P., & Nobari, H. (2024). Parking the bus or high pressing? Defensive tactical insights from the 2022 FIFA Men’s World Cup. Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology, 1–8. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17543371241254600

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 54 – junho de 2024.

 

Apresentação do problema

A análise de jogo aumenta a probabilidade de sucesso no futebol (Carling et al., 2005; Forcher et al., 2023) e foca-se, essencialmente, na recolha, interpretação e elaboração de informações sobre ambas as equipas durante os jogos (Clemente et al., 2020; Sarmento et al., 2022). Embora a maioria dos indicadores-chave de desempenho esteja relacionada com ações ofensivas com a bola (Herold et al., 2021; Goes et al., 2021), as ações defensivas também são cruciais, uma vez que o futebol é um desporto de baixa pontuação. 

Nos meandros do treino desportivo, defender próximo da própria baliza é conhecido como “estacionar o autocarro” (figura 2), uma analogia para uma barreira física que impede a marcação de golos por parte da equipa adversária. Esta abordagem contrasta com a pressão alta, que almeja recuperar rapidamente a posse da bola no meio-campo ofensivo. Apesar da importância das estratégias defensivas para o sucesso, poucos estudos identificaram indicadores-chave de desempenho defensivo, incidindo principalmente em ações defensivas sobre a bola (e.g., desarmes e interceções).

 

Figura 2. Ilustração sobre a estratégia “estacionar o autocarro” (fonte: https://www.americansocceranalysis.com/) (imagem não publicada pelos autores).

 

Tradicionalmente, o desempenho defensivo no futebol é analisado através de eventos discretos associados ao impedir a progressão adversária e à recuperação da posse de bola. Por exemplo, tempos de reação à perda da bola distinguem as equipas de topo das restantes (Vogelbein et al., 2014). As frequências de ações de pressão próxima ao portador da bola e de recuperação da bola têm sido relacionadas com o êxito (Praça et al., 2023). No entanto, uma análise multidimensional que integra eventos discretos e dados posicionais é ideal para melhor compreender as estratégias defensivas no futebol de elite (Forcher et al., 2022). Neste âmbito, uma revisão recente destacou que recuperar a bola em zonas avançadas, mantendo um posicionamento equilibrado e uma abordagem “intensa”, está ligado ao sucesso defensivo (Freitas et al., 2023). Por outras palavras, analisar simultaneamente indicadores-chave defensivos com e sem bola permite explicar com mais credibilidade o desempenho nos jogos, mas a investigação mais recente pouco explorou esta possibilidade. 

Estudos prévios de análise de jogo utilizaram dados dos Campeonatos do Mundo da FIFA para analisar tendências ao mais alto nível (Clemente et al., 2014; Pulling et al., 2018). No que diz respeito às ações defensivas, verificou-se que as equipas que chegaram às meias-finais do Mundial de 2014 tiveram maior probabilidade de recuperar a bola em zonas defensivas, possivelmente indicando uma estratégia mais defensiva para manter o resultado (Panice et al., 2020). Esta evidência é consistente com um estudo recente que mostrou um posicionamento tático mais compacto na fase defensiva em comparação com a fase ofensiva (Praça et al., 2022). Com base nestes factos, espera-se que a capacidade de neutralizar oportunidades de golo, recuperar a bola rapidamente e posicionar-se mais recuado na fase defensiva conduza ao sucesso de uma equipa na competição. Contudo, esta hipótese ainda não foi testada. 

O Campeonato do Mundo da FIFA é amplamente considerado a competição internacional de futebol mais importante, constituindo-se, assim, como um evento ideal para analisar estatísticas relacionadas com o jogo. Pela primeira vez, a FIFA providenciou estatísticas através da plataforma “Inteligência de Futebol Avançada”, que inclui dados discretos tradicionais com bola e dados sem bola obtidos através de um sistema de rastreamento automático. Dada esta oportunidade e o racional apresentado anteriormente, este estudo teve como objetivo analisar os indicadores de desempenho defensivo que melhor explicaram a obtenção de vitórias nos jogos disputados no mais recente Mundial de 2022, organizado pelo Catar.

 

Métodos

Amostra: a amostra inicial deste estudo incluiu os 64 jogos do Campeonato do Mundo de 2022. Excluídos os empates (n = 15), a amostra final consistiu em 49 jogos, totalizando 98 observações (duas por jogo). Os dados foram fornecidos pela FIFA e estão disponíveis gratuitamente em https://www.fifatrainingcentre.com/en/fwc2022/post-match-summaries/post-match-summary-reports.php. 

Procedimentos: os relatórios dos jogos foram descarregados em PDF do site da FIFA e analisados individualmente, gerando um par de dados por jogo (um por equipa). As estatísticas foram transferidas manualmente para uma folha de cálculo Excel. A variável dependente – o resultado do jogo – foi adicionada numa coluna extra, considerando os 3 resultados possíveis (vitória, empate, derrota). Apenas o resultado no tempo regulamentar foi considerado para os jogos a eliminar. 

Variáveis: o estudo incluiu variáveis táticas com dados posicionais (tabela 1) e eventos de jogo (tabela 2), recolhidas através de um sistema de rastreamento ótico automatizado da FIFA, cuja fiabilidade foi previamente testada e validada. A variável dependente foi a diferença de golos, calculada subtraindo os golos da equipa adversária dos golos da equipa analisada. Por exemplo, se a equipa A ganhou por 4-2 à equipa B, o valor para a equipa A é 2 e para a equipa B é -2.

 

Tabela 1. Variáveis posicionais analisadas no estudo (adaptado de Praça et al., 2024).


Tabela 2. Ações defensivas analisadas no estudo (adaptado de Praça et al., 2024).


Análise estatística: inicialmente, os dados foram explorados para identificar outliers. As diferenças entre equipas vencedoras e perdedoras foram investigadas utilizando a MANOVA, para reduzir o erro tipo I (Noble, 2009). Algumas variáveis desviaram-se da normalidade, mas a MANOVA foi mantida por ser robusta (O’Donogue, 2012). O eta quadrado parcial classificou os efeitos como pequenos (0.02 < ƞp2 < 0.13), médios (0.13 < ƞp2 < 0.26) ou grandes (ƞp2 ≥ 0.26) (Pierce et al., 2004). Uma regressão linear múltipla foi corrida com a diferença de golos como variável dependente. Foram testados R2, distância de Cook, distância de Mahalanobis, multicolinearidade (VIF) e independência dos erros (Teste de Durbin-Watson) (Field, 2009). As análises foram realizadas com o software IBM SPSS Statistics, versão 19.

 

Principais resultados

 

·   Indicadores de performance defensivos que discriminaram equipas vencedoras e vencidas no Campeonato do Mundo de 2022

Observou-se diferenças significativas no número de perdas de bola – “turnovers” – forçados para as equipas adversárias (efeito pequeno), sendo o valor de “turnovers” forçados mais elevado para as equipas vencedoras. As equipas mais bem-sucedidas também executaram menos recuperações sem posse e menos transições defensivas (efeitos pequenos). Por outras palavras, as equipas vencedoras forçaram mais perdas de posse e passaram menos tempo em transição defensiva e recuperação sem posse. Não houve diferenças significativas nas outras variáveis investigadas.

 

·  Modelo de regressão para explicar a diferença de golos nos jogos do Campeonato do Mundo de 2022, com base em variáveis defensivas

As variáveis que entraram no modelo foram a ação em posse/ação defensiva, os “turnovers” forçados e a recuperação sem posse. Aumentar os valores de ação em posse/ação defensiva e os “turnovers” forçados tende a aumentar a diferença de golos (aumentando a probabilidade de vitória). Por sua vez, aumentar o tempo em recuperação sem posse tende a reduzir a diferença de golos (diminuindo a probabilidade de vitória). As restantes variáveis não apresentaram contribuições significativas para o modelo. Estes resultados sustentam a hipótese de que recuperar rapidamente a posse da bola está intimamente associado à obtenção de sucesso no futebol de elite.

 

Aplicações práticas

Em seguida sugerimos 3 aplicações práticas para serem consideradas pelos profissionais a trabalhar no terreno. Contudo, o modo como poderão ser operacionalizadas dependerá sempre de especificidades associadas às características dos jogadores, aos objetivos competitivos ou formativos do clube e/ou ao estilo de jogo que o treinador ou equipa técnica pretende implementar.

 

1. Considerar, de modo equilibrado, as duas fases do jogo (organização ofensiva e organização defensiva): o sucesso no futebol é influenciado por múltiplos fatores e uma visão “macro” dos acontecimentos nem sempre permite captar os detalhes através dos quais os jogos são decididos. Embora as variáveis ofensivas tenham demonstrado um valor preditivo maior para a diferença de golos, as estratégias defensivas são igualmente cruciais. Os treinadores devem procurar um equilíbrio entre a capacidade ofensiva e a resiliência defensiva, compreendendo que as estratégias defensivas eficazes podem variar bastante entre as equipas. 

2. Aumentar a eficácia dos comportamentos defensivos, no intuito de originar mais perdas de bola forçadas na equipa adversária: o estudo destaca a importância das perdas de bola forçadas na diferenciação entre as equipas mais vitoriosas e as que mais perdem. Os designados “turnovers” forçados não só se relacionam com a diferença de golos final, como também reduzem o número de ações defensivas necessárias, aumentando assim a probabilidade de vitória. Os treinadores devem desenvolver e aprimorar estratégias de pressão para forçar perdas de bola nos oponentes, em vez de simplesmente “estacionarem o autocarro”. Para o efeito, é crucial definir (1) princípios táticos que assegurem a coordenação dos comportamentos dos jogadores e (2) “gatilhos de pressão”, ou seja, circunstâncias que permitam desencadear ações coletivas de pressão eficazes e que não gerem fadiga em vão: pressionar quando, onde e como? Em última instância, o objetivo passa por dotar a equipa de capacidade para recuperar rapidamente a bola e transitar de forma célere para a fase de organização ofensiva. 

3. Reduzir o tempo em ações de recuperação sem posse (recuperação defensiva): passar muito tempo em ações de recuperação defensiva impacta negativamente a diferença de golos, aumentando a probabilidade de derrota. Para mitigar isto, as equipas devem focar-se em recuperar rapidamente a posse e iniciar a organização defensiva o mais cedo possível. Os treinadores devem trabalhar os jogadores nas mais diversas escalas de intervenção – individual, grupal e coletiva – para controlar melhor a posse, evitar perder a bola em zonas críticas do campo e adotar posicionamentos que garantam um bom equilíbrio (ainda em organização ofensiva) em permanência. Só assim se consegue minimizar o recurso a ações de alta intensidade associadas à reorganização defensiva.

 

Conclusão

As equipas de sucesso tendem a adotar um estilo de jogo defensivo focado em forçar perdas de bola e reduzir o tempo gasto em cenários imprevisíveis, como transições e recuperações defensivas. Aumentar o número de perdas de bola forçadas e a proporção entre ações em posse por ações defensivas pode aumentar a probabilidade de vitória, enquanto gastar mais tempo em ações de recuperação defensiva tende a reduzi-la. Ao invés de simplesmente “estacionar o autocarro”, os treinadores devem proporcionar comportamentos coletivos que limitem o movimento do adversário com a bola e permitam recuperar rapidamente a posse. Em vez de se procurar uma abordagem única para o planeamento estratégico, os profissionais do treino devem desenvolver estilos de jogo que se adequem às características dos jogadores, à cultura da equipa, ao nível dos adversários e a outros fatores, com o objetivo de melhorar a qualidade do jogo e aumentar a possibilidade de triunfar.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology.

Sem comentários: