30/07/2024

Artigo do mês #55 – julho 2024 | Impacto da direcionalidade da posse de bola no desempenho de jovens futebolistas em jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B.

País: Portugal

Data de publicação: 26-maio-2024

Título: Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games

Referência: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B. (2024). Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games. International Journal of Sports Science & Coaching, 1–11. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241257016

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 55 – julho de 2024.

 

Apresentação do problema

No futebol, as equipas tendem a adotar uma estrutura defensiva compacta quando não têm posse de bola, aplicando pressão coletiva para limitar as oportunidades de golo do adversário (Low et al., 2018). Em contraste, quando têm a posse, a intenção é criar espaço e avançar no campo para gerar oportunidades de golo. O contra-ataque e o ataque rápido têm sido utilizados por muitas equipas há décadas. Estes métodos ofensivos aproveitam o desequilíbrio defensivo da equipa adversária para criar uma progressão rápida no campo, envolvendo poucos jogadores e passes antes da finalização (González-Rodenas et al., 2020; Pollard & Reep, 2002). O sucesso recente de estilos baseados na posse de bola, como os do Barcelona e da seleção espanhola, mudou o paradigma ofensivo do jogo, levando a um aumento da investigação sobre estratégias de posse de bola (Collet, 2013; Lago & Martín, 2007; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Por exemplo, as equipas mais bem classificadas conseguem manter a posse por mais tempo na metade ofensiva do adversário, sendo a posse progressiva associada ao sucesso da equipa (Casal et al., 2017; Kempe et al., 2014). Portanto, é essencial investigar tarefas de treino que melhorem a capacidade de manter a posse de bola em competição. 

Do ponto de vista prático, os treinadores devem conceber tarefas de treino que desenvolvam o comportamento tático da equipa com base em princípios coletivos, enquanto fomentam a capacidade dos jogadores de ajustar o seu posicionamento em função de informações locais. Esta perspetiva é essencial para os treinadores, não só de jogadores de elite, mas também de jovens jogadores, de modo a assegurar um desenvolvimento adequado (Newell & Rovegno, 2021; Silva et al., 2020) e aumentar as suas hipóteses de alcançar uma carreira de sucesso. 

A utilização de jogos reduzidos tem sido proposta como uma abordagem eficaz para melhorar o desempenho e a afinação percetiva de jovens futebolistas (Davids et al., 2013). Recentemente, Coutinho et al. (2023) revelaram que uma tarefa de posse de bola (vs. tarefa de passe analítica e tarefa de posse de bola sem oposição) resultou num maior “transfer” para o jogo subsequente, especialmente na capacidade dos jogadores de identificar companheiros em posições mais avançadas. Além disso, os jogos reduzidos permitem que os treinadores desenvolvam simultaneamente múltiplos fatores de treino, com uma ênfase que pode variar dependendo das condições da tarefa (Coutinho et al., 2021, 2022). Como a tomada de decisão dos jogadores é frequentemente guiada por informações locais, diferentes regras podem exacerbar informações distintas e direcionar os jogadores para padrões de movimento adaptativos (Gonçalves et al., 2017; Nunes et al., 2020). Assim, é essencial que os treinadores compreendam a forma como diferentes regras influenciam o desempenho dos jovens jogadores durante tarefas destinadas a melhorar a sua capacidade de conservar a posse de bola. 

Por norma, os treinadores usam exercícios de posse de bola para melhorar o controlo da bola dos jogadores, em vez de se focarem apenas na marcação de golos. A literatura mostra que o tamanho do campo e o número de jogadores são cruciais (Nunes et al., 2020), mas a direcionalidade do jogo não deve ser negligenciada. Os jogos de posse de bola aumentam o estímulo físico e promovem mais ações técnicas (Halouani et al., 2014; Rebelo et al., 2011), mas a falta de direcionalidade pode limitar o desenvolvimento tático (figura 2). Sánchez et al. (2019) estudaram o impacto da direcionalidade em jogadores Sub-13, comparando diferentes formatos de jogo (sem direção, unidirecional, multidirecional com guarda-redes e unidirecional para cada equipa com guarda-redes – bidirecional). Os autores concluíram que a ausência de direção aumenta o estímulo fisiológico, mas é essencial entender como a direcionalidade afeta as ações técnicas e o posicionamento dos jogadores.

 

Figura 2. Representação esquemática de uma tarefa de posse de bola sem direccionalidade definida (imagem não publicada pelos autores).

 

Em suma, durante tarefas de posse de bola sem direção ou multidirecionais, perder a bola pode ter apenas o efeito de mudança da fase do jogo (i.e., de ataque para defesa), sem qualquer outro impacto. Este aspeto pode não ajudar os jogadores a entender o risco e a recompensa de cada passe de acordo com a localização no campo (e.g., decidir se devem manter a posse em zonas mais afastadas da baliza, nas quais, ao perder a bola, têm espaço e tempo para ajustar; ou tentar manter a posse em zonas defensivas para atrair a equipa adversária e depois avançar, o que pode aumentar as chances de progressão, mas também o risco de perder a bola). Como resultado, este estudo teve como objetivo investigar os efeitos da manipulação da direcionalidade da posse de bola (sem direção, multidirecional ou unidirecional) no desempenho físico, tático e técnico de jovens futebolistas durante a prática de jogos reduzidos.

 

Métodos

Participantes: 18 jovens futebolistas (idade: 13,6 ± 0,4 anos; estatura: 168,1 ± 9,6 cm; peso corporal: 52,3 ± 8,3 kg; experiência federada: 6,7 ± 1,8 anos) de uma seleção regional Sub-14, provenientes de 7 clubes distintos da região. Todos treinavam 3 vezes por semana nos seus clubes (90 min/sessão) e jogavam um jogo oficial 11v11 ao fim de semana. Seis jogadores adicionais participaram como neutros numa das condições experimentais, mas os seus dados foram excluídos da análise por não participarem em todas as condições de jogo. 

Desenho do estudo: em cada sessão experimental, o treinador principal formou duas equipas equilibradas de 4 jogadores atendendo às respetivas competências táticas, técnicas, físicas e percetivas (Casamichana & Castellano, 2010). Para explorar os efeitos da variação da direcionalidade nos jogos de posse de bola, os jogadores foram expostos a 3 condições (figura 3): (i) Sem direção (NO) – jogo de posse 4v4, com um ponto ao completar 10 passes (Berdejo-del-Fresno et al., 2015; Daryanoosh et al., 2013); (ii) Multidirecional (MULTI) – 2 jogadores neutros fora do campo na direção longitudinal, permitindo jogar com o mesmo neutro apenas após a bola ser passada para o outro neutro, com a mesma regra dos 10 passes; (iii) Unidirecional (ONE) – jogo 4v4 visando marcar em duas mini balizas em linhas longitudinalmente opostas, ganhando um ponto por 10 passes ou por golo.

  

Figura 3. Representação esquemática das 3 condições experimentais propostas por Coutinho et al. (2014).

 

Procedimentos: foram realizadas 4 sessões de teste em semanas não consecutivas durante o período competitivo (janeiro-março da época 2022/23), sem necessidade de familiarização prévia. Em cada dia de teste, as equipas (modificadas entre sessões) foram expostas às 3 condições (NO, MULTI, ONE) numa ordem aleatória. Cada sessão começou com um aquecimento padronizado de 15 minutos, seguido dos jogos de posse (4v4) durante 5 minutos, em campo de relva sintética (25x20m), intercalados por 3 minutos de pausa. Foram dispostas várias bolas ao redor do campo para reduzir o tempo com a bola fora, e não foi permitido feedback dos treinadores. Os jogos foram disputados com algumas regras adaptadas (e.g., recomeço de jogo com passe a partir nas linhas de fundo). 

Dados da performance física e tática: os dados de posicionamento e desempenho físico dos jogadores foram recolhidos com unidades GPS de 10 Hz (FieldWiz, Paudex, Suíça). As distâncias entre cada jogador e o colega mais próximo e o adversário mais próximo foram calculadas em valores absolutos (m), considerando-se ainda a respetiva variabilidade (CV – coeficiente de variação) e regularidade (ApEn – entropia aproximada) (Coutinho et al., 2022; Gonçalves et al., 2016). O índice de exploração espacial (SEI – spatial exploration index) foi medido para avaliar o espaço explorado por cada jogador (Gonçalves et al., 2017). A distância total percorrida e a distância percorrida em diferentes zonas de velocidade foram analisadas: caminhar (0.0–3.5 km/h), a trote (3.6–14.3 km/h), correr (14.4–19.8 km/h) e sprintar (>19.9 km/h) (Coutinho et al., 2021; Pettersen & Brenn, 2019). A velocidade média dos jogadores também foi considerada para entender o ritmo do jogo. 

Dados da tomada de decisão e execução do controlo da bola e passe: as situações de jogo foram gravadas com uma câmara de vídeo digital (Panasonic NV-GS230) posicionada a 2m de altura. O software Play (Metrica Sports, versão 2.20.2) foi usado para codificar as ações de controlo de bola e passe dos jogadores. A ferramenta GPET avaliou as habilidades de execução e tomada de decisão dos jogadores (García-López et al., 2013). As ações foram codificadas como 0 (decisão/execução inadequada) ou 1 (decisão/execução adequada). Critérios técnicos adicionais para controlo de bola incluíram: bola no espaço motor, orientação do corpo e adequação; para passe: livre de oposição, ritmo e tempo. As variáveis do GPET foram expressas como percentagem de decisões bem-sucedidas (Mitchell et al., 2013). Foram registadas 1334 ações (476 de controlo de bola e 858 de passe) e a análise foi feita por um analista com mais de 10 anos de experiência. 

Análise estatística: a estatística descritiva foi apresentada em médias e desvios padrão para distribuições normais, e medianas e intervalos interquartis para distribuições não normais. O teste de Shapiro-Wilk serviu para testar a normalidade e, conforme a distribuição dos dados, foram adotados testes paramétricos (ANOVA de medidas repetidas) e não paramétricos (ANOVA de Friedman). As diferenças entre condições experimentais (NO vs. MULTI; NO vs. ONE; MULTI vs. ONE) foram avaliadas com os testes post hoc de Bonferroni para dados normais e Durbin-Conover para dados não normais. A significância foi definida em p < 0,05, e todos cálculos executados no software Jamovi Project (versão 1.2, 2020). Para as comparações de pares, foram utilizadas as diferenças entre médias com intervalos de confiança de 95%, e o d de Cohen como tamanho do efeito, tendo por base os seguintes intervalos: 0,0–0,19 (trivial); 0,20–0,49 (pequeno); 0,6–1,19 (moderado); 1,2–1,9 (grande); ≥2,0 (muito grande) (Hopkins et al., 2009).

 

Principais resultados

 

·     Variação da performance física e tática em função das condições práticas

Para as variáveis posicionais, os valores do índice de exploração espacial foram significativamente e moderadamente superiores na condição NO (sem direção) em comparação com as condições MULTI (multidirecional) e ONE (uma direção por equipa). Na distância para o companheiro de equipa mais próximo, também houve diferenças significativas. A condição NO apresentou valores absolutos ligeira a moderadamente inferiores em comparação com as condições MULTI e ONE, enquanto a variabilidade dessa distância foi moderadamente inferior na condição NO em comparação com a ONE. A condição NO também revelou valores ligeira a moderadamente inferiores na distância para o adversário mais próximo em comparação com as condições MULTI e ONE. Além disso, a condição MULTI apresentou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição ONE, enquanto a condição NO revelou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição MULTI. 

Em termos de variáveis físicas, foram identificados efeitos estatisticamente significativos em todas as variáveis, exceto nas distâncias de corrida e de sprint. Na condição MULTI, os jogadores apresentaram uma velocidade média ligeira a moderadamente superior relativamente às condições NO e ONE. Por outro lado, a condição ONE apresentou valores moderadamente superiores na variabilidade da velocidade média, em comparação com a condição MULTI. Tanto a condição NO, como a condição MULTI, exibiram valores moderadamente superiores na distância total percorrida e na distância percorrida a trote em relação à condição ONE. A condição MULTI proporcionou valores moderadamente inferiores na distância percorrida a andar comparando com as condições NO e ONE.

 

·     Diferenças na tomada de decisão e na execução do controlo de bola e do passe entre as condições práticas

A tomada de decisão na ação de passe foi significativamente melhor na condição ONE em comparação com as condições NO e MULTI. Não havendo significância estatística, foram ainda detetadas algumas tendências com significado prático: (i) a condição ONE teve valores ligeira a moderadamente superiores no passe para posições livres e na adequação do controlo de bola, em comparação com as condições NO e MULTI; (ii) a condição NO apresentou valores ligeiramente superiores no passe para posições livres, em relação à condição MULTI; (iii) a condição MULTI mostrou valores ligeiramente superiores de adequação e receção da bola no espaço motor, comparativamente à condição NO.

 

Aplicações práticas

Neste estudo sobre a direcionalidade ofensiva e a sua influência em jogos de posse de bola, emergiram duas grandes aplicações práticas que poderão ser relevantes para os treinadores e profissionais do futebol: 

1. Não subestimar a importância da direcionalidade nas tarefas práticas em forma de jogo: é fundamental equacionar a direcionalidade ofensiva, que se refere à orientação específica das ações dos jogadores. Esta variável, tantas vezes negligenciada, pode afetar profundamente o desempenho técnico, tático, físico e psicossocial dos jogadores. 

2. Diferentes direcionalidades geram impactos distintos em diversas variáveis do foro físico e técnico-tático:

 

2.1. Condição sem direcionalidade (NO)

Destaca-se por enfatizar a exploração individual do espaço, resultando em maior variabilidade nas distâncias entre jogadores e os seus companheiros ou adversários mais próximos. Este tipo de tarefa incentiva os jogadores a movimentarem-se livremente para criar oportunidades de pontuar, sem a preocupação de perder a posse da bola. Os jogadores focam-se em seguir a bola em vez de proteger áreas específicas, o que pode ser útil em sessões que visem a exploração do espaço com cargas externas moderadas.

 

2.2. Condição com múltiplas direções (MULTI)

Prioriza o ritmo de jogo e aumenta a carga externa dos jogadores. Esta condição reduz a distância entre companheiros de equipa, mantendo-os mais próximos e aumentando a carga física em termos de velocidade média, distância total percorrida e distância percorrida a trote. Este tipo de tarefa pode ser utilizado para desenvolver a capacidade dos jogadores de mudar o ponto de ataque enquanto estimulam a resistência específica.

 

2.3. Condição com uma direção (ONE)

Promove, em primeira instância, o controlo da bola, a tomada de decisão nos passes e a execução técnica. Os jogadores demonstram maior proficiência em receber a bola, tomar decisões de passe e encontrar companheiros desmarcados. A inclusão de balizas no jogo facilita a organização das equipas. Ao atribuir direcionalidade, os jogadores assumem posições e missões táticas específicas, reduzindo a exploração espacial e a carga externa. Este tipo de exercício é particularmente útil para refinar as habilidades técnicas dos jogadores num contexto de maior organização tática, e a compreensão da ocupação espacial nas fases ofensiva e defensiva do jogo.

 

Conclusão

Este estudo forneceu informações práticas valiosas sobre os efeitos da direcionalidade em jogos de posse de bola. Jogar sem direção promoveu menor rigor posicional e maior variabilidade no uso do espaço. Jogar com múltiplas direções enfatizou a posse de bola, aumentando as ações de corrida, enquanto a inclusão de jogadores neutros encorajou a proximidade entre companheiros de equipa. A condição com uma direção possibilitou a definição de papéis posicionais, reduziu a carga externa e aumentou a frequência de ações técnicas básicas. Os resultados sugerem que, ao conceber tarefas de treino, os treinadores devem considerar cuidadosamente o tipo de direcionalidade conforme os objetivos específicos estipulados para a sessão de treino.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

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