06/05/2015

Será o tempo de reação à perda da posse de bola um indicador de sucesso no futebol de alto rendimento?

Um dos aspetos que os treinadores tentam operacionalizar no treino para melhorar a qualidade do desempenho defensivo é a «mudança de atitude face à perda da posse de bola». Por exigir um esforço coordenado dos jogadores em processo defensivo, perante referenciais que muitas vezes, devido ao caráter dinâmico do jogo, não são fáceis de identificar em tempo útil, o transfer para a situação competitiva nem sempre é evidente.

Como é conhecido na literatura científica do futebol, o tempo que uma equipa passa em posse de bola está positivamente correlacionado com o sucesso obtido em competição (Lago, 2009; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Daí, decorre que os treinadores procurem que as suas equipas reconquistem rapidamente a posse de bola após a sua perda. Contudo, numa perspetiva de otimização do momento de transição ataque-defesa, será que o tempo que medeia a perda da posse de bola e a sua subsequente reconquista (i.e., o tempo de reação defensiva, segundo Barreira, Garganta, Guimarães, Machado, & Anguera, 2013) pode ser considerado como um indicador de sucesso da performance defensiva no futebol de alto rendimento?

Foi precisamente esta questão que um estudo de Vogelbein, Nopp e Hökelmann, publicado recentemente no Journal of Sports Sciences (2014), propôs esclarecer. Para o efeito, os autores analisaram os tempos de reação defensiva em todos os jogos da Bundesliga 2010/2011, em função de duas variáveis independentes: (i) o grupo classificativo a que cada equipa pertenceu, apurado a partir da divisão da classificação final em três grupos (topo da tabela – do 1º ao 6º classificado; meio da tabela – do 7º ao 12º; fundo da tabela – do 13º ao 18º); (ii) o resultado corrente do jogo (match status) aquando do registo de cada ocorrência (i.e., equipa em vantagem no marcador, empatada ou em desvantagem). Os principais resultados constam na Tabela 1.

Tabela 1. Média dos tempos de reação defensiva (em segundos) observados para os grupos de equipas da Bundesliga 2010/2011, de acordo com o resultado corrente do jogo (n = número de jogos que uma equipa disputou com um determinado resultado corrente do jogo).
* Diferenças significativas entre equipas do topo e do meio da tabela (P < 0.005).
** Diferenças significativas entre equipas do topo e do fundo da tabela (P < 0.001).

De facto, independentemente do resultado corrente do jogo, as equipas do topo da tabela necessitaram de menos tempo que as equipas dos outros grupos (meio e fundo da tabela) para recuperar a posse de bola. Aliás, a inferência estatística comprovou mesmo a existência de diferenças significativas entre as equipas do topo da tabela e as restantes. Por sua vez, as diferenças registadas entre os grupos do meio e do fundo da tabela não obtiveram expressão estatística. Estes dados suportam claramente a noção de que as melhores equipas procuram dominar os jogos, não apenas através da manutenção da posse de bola, mas também pelo propósito de recuperar a posse o mais rapidamente possível. O resultado corrente do jogo foi um fator que também influenciou os tempos de reação defensiva. Quando em vantagem no marcador, as equipas demoraram mais tempo para recuperar a posse de bola, enquanto que, em situação de desvantagem, recuperaram a bola mais rápido.

Portanto, o tempo de reação defensiva deve ser considerado como um indicador de sucesso no futebol de alto rendimento e, por inerência, a sua operacionalização no treino não deve ser descurada. Com base nos resultados da investigação de Vogelbein et al. (2014), o valor de corte de 10 segundos parece ser uma boa referência para otimizar a mudança de atitude face à perda da posse de bola no processo de treino. Uma tarefa de treino que podemos extrair dos resultados supramencionados será, por exemplo, a apresentada na Figura 1.

Figura 1. Proposta de tarefa de treino Gr+5v5(+2)+Gr.

· Situação: Jogo reduzido/condicionado de Gr+5v5(+2)+Gr (2 jogadores neutros), num campo de 40x60m (comprimento x largura) e área de jogo individual de 171.4 m2;
· Condicionante: equipa que recupera a posse de bola em menos de 10 segundos passa a jogar em superioridade numérica (com os 2 neutros);
· Objetivo principal: potenciar a rápida mudança de atitude coletiva face à perda da posse de bola;
· Critério de êxito: recuperar a posse de bola em menos de 10 segundos;
· Variante de dificuldade (para a equipa em processo defensivo): aumentar o espaço de jogo/área de jogo individual;
· Variantes de facilidade: retirar um jogador neutro ou reduzir o espaço de jogo/área de jogo individual

Referências
Barreira, D., Garganta, J., Guimarães, P., Machado, J. C., & Anguera, M. T. (2013). Ball recovery patterns as a performance indicator in elite soccer. Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology. doi:10.1177/1754337113493083
Lago, C. (2009). The influence of match location, quality of opposition, and match status on possession strategies in professional association football. Journal of Sports Sciences, 27, 1463-1469.
Lago-Peñas, C., & Dellal, A. (2010). Ball possession strategies in elite soccer according to the evolution of the match-score: The influence of situational variables. Journal of Human Kinetics, 25, 93-100.
Vogelbein, M., Nopp, S., & Hökelmann, A. (2014). Defensive transition in soccer - are prompt possession regains a measure of success? A quantitative analysis of German Fußball-Bundesliga 2010/2011. Journal of Sports Sciences, 32(11), 1076-1083.

30/03/2015

A relevância dos árbitros no futebol de formação

Na sequência do jogo de ontem da equipa que treino, no escalão juvenis (Sub-17), cada vez me convenço mais que os árbitros são elementos preponderantes no futebol de formação. O modo como ajuízam os lances dos jogos e como reagem às frustrações, às alegrias e a outras emoções que o jogo despoleta, é determinante neste processo que não se restringe às práticas (boas ou más) que os treinadores proporcionam nas sessões de treino.

Crianças e jovens, por estarem em períodos de crescimento, maturação e desenvolvimento, não são obrigados a agir e/ou reagir sempre de forma correta ou educada. Aliás, muitos jogadores seniores amadores, e até mesmo profissionais (!), não o fazem. O futebol é emoção e a emoção, por si, frequentemente se sobrepõe à razão. Quem teve/tem a oportunidade de competir em jogos desportivos reconhece veracidade no que estou a referir. Por isso, a meu ver, o bom senso deve predominar em quem dirige os jogos.

Passemos, então, a um exemplo que retirei do jogo de ontem. Em causa está um jogador da minha equipa que, até aos 36 minutos de jogo, não havia demonstrado nenhum comportamento incorreto perante os adversários e os árbitros. O jogo estava bem disputado, praticamente sem faltas de parte a parte e onde imperava a boa conduta entre os jogadores.


Face a uma falta que lhe foi assinalada, o jogador teve um mero desabafo: «Oh, car…!». Ok, não é agradável de se ouvir, mas, repito, até então não houve qualquer situação problemática para a equipa de arbitragem. Ainda que demonstrasse indignação face à decisão (correta) tomada pelo árbitro, não houve nenhuma «boca» ou falta de respeito direcionada ao mesmo. Tratou-se apenas de uma discordância. O jogador (16 anos) não foi advertido, não foi admoestado com o cartão amarelo e recebeu ordem de expulsão imediata do jogo (i.e., cartão vermelho direto). Não se percebe…

Imagem: A solução mais fácil é... cartão vermelho!

Na minha opinião, e tendo em consideração que o futebol de formação serve para FORMAR, esta foi a pior decisão possível do árbitro. Para além disso, o jogador que já havia sido expulso na primeira fase (num jogo diante do seu anterior clube e em que não houve árbitro nomeado…), corre o risco de ficar os próximos 2/3 jogos sem poder jogar pela sua equipa.

Estas situações estranhas e totalmente evitáveis continuam a existir, fim-de-semana após fim-de-semana, no nosso futebol. Se pretendemos formar melhores praticantes e cidadãos, todos os agentes desportivos devem estar preparados e sintonizados para educar, com alguma pedagogia, as crianças e os jovens e não recorrer aos caminhos mais fáceis e absurdos e que, a médio/longo prazo, culminam com a saturação e o abandono da modalidade.

Sim, porque «sacar» um cartão é muito mais fácil do que, pacientemente, dialogar com o jogador e fazê-lo ver que a conduta foi incorreta. Caso tal aconteça e seja persistente, compreende-se que as medidas sejam mais drásticas, agora assim… é incompreensível, absurdo e maldoso.

11/03/2015

Ser treinador de futebol de formação

O usual é o sucesso do treinador ser avaliado pelos resultados que obtém nos jogos, independentemente do escalão etário. A ideia mais ou menos vigente em Portugal rege-se pela seguinte premissa: quem ganha mais jogos, é muito bom; quem perde regularmente, é mau.

Nós, treinadores, sentimos isso a toda a hora. Em uma década de experiência no futebol juvenil, tive épocas com resultados (desportivos) mais fracos e outras épocas com resultados francamente positivos. À luz do número de vitórias, empates e derrotas, será que a minha competência se modificou radicalmente ao longo destes anos? Óbvio que não, porém, para muitos – os mais distraídos – e que pouco ou nada acompanham o processo (dia após dia, mês após mês, ano após ano), ir do 8 ao 80 e do 80 para o 8 é um desígnio recorrente.

Porque o futebol é isto mesmo. Todos nós somos (ou nos julgamos) treinadores, sem o realmente sermos, sem profundamente conhecermos os procedimentos subjacentes ao treino, à competição e ao crescimento/maturação dos jovens aprendizes. Porque vencer jogos, por vezes, causa-nos indiferença e porque, noutras vezes, algumas derrotas trazem um sentimento de missão cumprida. O produto na formação não deve ultrapassar o processo e o processo, quando bem aplicado e gerido, traz-nos o produto em forma de sucesso no futuro. A paciência é um aspeto chave.

Imagem. O futebol de formação tem particularidades distintas do futebol de rendimento.

Ser treinador de formação é, na minha opinião, chegar ao final de uma época e ver miúdos que não entendiam o jogo e, em certos casos, que não sabiam executar ações técnicas básicas, fazer isto autonomamente num treino:


E tudo o resto é pura conversa circunstancial.

26/02/2015

A classe que tarda em ser valorizada em Portugal

Contínuo a insistir no caso «Bernardo Silva». Se, para muitos, 15 milhões de Euros é um montante acima do valor de mercado do jogador, para mim, é uma quantia abaixo do potencial que apresenta.

Não precisamos de recuar muito no tempo. Ontem, nos oitavos-de-final da UEFA Champions League 2014/2015 – Arsenal 1 x 3 Mónaco –, o Bernardo jogou sensivelmente 10 minutos (entrou aos 84’). Pisou o relvado do Emirates Stadium num período em que o Mónaco vencia por 2-0 e, por conseguinte, com a sua equipa quase sempre em organização defensiva e sob elevada pressão ofensiva dos visitados. As oportunidades para o Bernardo ter a bola em seu poder foram escassas. Até que, em cima do apito final, já após o Arsenal reduzir a desvantagem no marcador para um golo (1-2), o jovem português recebeu a bola no corredor direito e fez o que melhor sabe: executar com critério.


Cinco toques na bola foram suficientes para o médio temporizar, ler apropriadamente o envolvimento (espaço livre, posições/deslocamentos dos companheiros e adversários), driblar e executar uma assistência primorosa para Ferreira Carrasco. Nestes breves pormenores revela-se a classe de um jogador e que, nesta eliminatória em particular, pode mesmo vir a ser decisiva.

Imagem: Bernardo Silva e Özil no final do Arsenal 1 x 3 Mónaco.
(fonte: dailymail.co.uk)
Tenho sérias dúvidas que o plantel do SL Benfica possua muitos jogadores de classe, mas talvez o modesto Mónaco (e Leonardo Jardim) proporcione o espaço e o tempo (de jogo e de aprendizagem) que o Bernardo não encontrou no clube que o formou. Quando o Caixa Futebol Campus começar a gerar dividendos desportivos, em vez de financeiros, quiçá outros talentos como Bernardo Silva, André Gomes, João Cancelo, Ivan Cavaleiro ou Ricardo Horta possam surgir e singrar na sua própria casa: o Estádio da Luz.

07/02/2015

Modelo de jogo e criatividade tática: duas faces da mesma moeda?

No âmbito do treino do futebol, a expressão «modelo de jogo» tem sido amplamente difundida nos últimos anos, sobretudo em Portugal e nos países lusófonos. O advento e a notoriedade adquirida pela Periodização Tática – modelo de planeamento utilizado por José Mourinho, André Villas-Boas, Carlos Carvalhal, entre outros – assim o determinaram. O conceito de modelo de jogo remete-nos para uma série de princípios que concedem organização nos diferentes momentos (pessoalmente, prefiro o termo fases) do jogo (Delgado-Bordonau & Mendez-Villanueva, 2012). Entre muitas outras variáveis, o modelo de jogo está subjacente à filosofia do treinador/equipa técnica e pode, segundo diversos autores da especialidade, ser adotado ou criado. Esta modelação é, em primeira instância, obra do treinador e que, posteriormente, será interpretada e aplicada pelos seus jogadores.

Por sua vez, a criatividade tática é algo que está inerente ao desempenho dos jogadores em contexto de jogo. De acordo com o investigador alemão Daniel Memmert (2014), a criatividade tática é definida como a criação/execução de diversas soluções para problemas em grupos específicos de indivíduos ou em situações de jogo coletivas, que podem ser consideradas como surpreendentes, raras e/ou originais. Esta criatividade tática, também associada ao conceito de inteligência tática, é cada vez mais acreditada pelos treinadores de elite como uma característica fundamental do jogador no futebol contemporâneo.

Imagem: Pablo Aimar - um «jogador-exemplo» de criatividade tática.

O problema que tenho identificado através da observação sistemática, de inúmeras entrevistas e com o qual também me debato em todas as sessões de treino, resume-se a uma singela questão: até que ponto a definição e a operacionalização de um determinado modelo de jogo não constrange a criatividade tática dos jogadores?

A meu ver, são duas faces da mesma moeda e algo sobre o qual o treinador/equipa técnica deve(m) ponderar em permanência ao longo da época desportiva. Como conceder organização, sem condicionar a capacidade criativa dos nossos jogadores?

Assumamos o exemplo que consta na Figura 1.

Figura 1. Exemplo da hierarquização e da fragmentação dos princípios de jogo na fase de organização ofensiva.

O treinador pretende que a bola circule rápido das zonas de maior concentração de jogadores oponentes para outras zonas menos congestionadas. Para isso, prepara os jogadores para aumentar a área da equipa em largura (subprincípio 1: espaço) e que haja, pelo menos, três linhas de passe relativamente ao portador da bola (subprincípio 2: soluções múltiplas). Até aqui, parece-me tudo muito razoável. Quando começamos a fracionar os subprincípios em mais sub-subprincípios e sub-sub-sub-etc., deixo de concordar. É precisamente neste ponto que eu entendo que o excesso de regras/normas de ação (modelização comportamental) compromete a criatividade tática dos jogadores.

Temos um princípio bem definido («circular a bola para longe da zona de pressão adversária»), mais dois subprincípios adicionais e é com essa matéria que, no treino, o treinador/equipa técnica deve(m) propor tarefas para que os jogadores, individual e coletivamente, encontrem soluções (descoberta guiada) para cumprirem os princípios estipulados e que estão consubstanciados no modelo de jogo.

Deste modo, conseguiremos tirar o máximo proveito das duas faces da moeda (modelo de jogo e criatividade tática) num processo que requer, por um lado, o desenvolvimento dos jogadores e da equipa e, por outro lado, o obtenção de resultados em competição.


Referências
Delgado-Bordonau, J. L., & Mendez-Villanueva, A. (2012). Tactical periodization: Mourinho’s best-kept secret? Soccer NSCAA Journal, 3, 28-34.
Memmert, D. (2014). Tactical creativity in team sports. Research in Physical Education, Sport and Health, 13(1), 13-18.