16/05/2021

RBFF – Revista Brasileira de Futsal e Futebol (Vol. 12/2020) | A criticalidade no futebol: Efeitos da localização do jogo na UEFA Champions League

No passado dia 12 de maio foi publicado o n.º 49 do volume 12 da Revista Brasileira de Futsal e Futebol, incluindo um artigo totalmente produzido no ISMAT – Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes (figura 1). A título pessoal, e apesar de não ser o principal autor, trata-se de uma publicação especial por dois motivos: em primeiro lugar, porque resulta de um trabalho levado a cabo por um aluno – Tiago Carmo – que orientei na Unidade Curricular (UC) Projeto, do 3.º Ano da Licenciatura em Educação Física e Desporto, no ano letivo 2018/2019; depois, porque é o primeiro artigo científico em que participo escrito na minha língua materna: o português.

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo (fonte: rbff.com.br).

 

O tema abordado é a criticalidade no jogo de futebol e foi equacionado através do cruzamento de duas linhas de investigação exploradas pela comunidade científica nos últimos anos: os efeitos de variáveis contextuais/situacionais na performance de jogadores e equipas de futebol e a análise temporal do golo na modalidade. Sabemos que a criticalidade no jogo de futebol, ou a identificação dos momentos críticos, é um assunto extremamente complexo, pelo que este foi um primeiro passo para adquirirmos alguma noção sobre o timing da ocorrência de eventos críticos (golos) que mudam por completo o estatuto competitivo das equipas em confronto (figura 2).

 

Figura 2. O golo inaugural é um evento crítico no futebol e de grande relevância para o desfecho de uma quantidade assinalável de jogos (fonte: arsenalpics.com).

 

Além deste trabalho, já foram produzidas mais três investigações que, no entanto, ainda não saíram da gaveta por manifesta falta de tempo. Temos, também, três alunos a finalizar outros três estudos no presente ano letivo. Portanto, conseguimos reunir uma quantidade de dados e evidências interessantes, pelo que é crível que num futuro próximo possam ser submetidos mais ficheiros neste âmbito. Por enquanto, fiquemo-nos com o resumo do artigo publicado pelo Tiago Carmo, por mim e pelo regente da UC Projeto, o professor Ricardo Gonçalves:

 

Resumo

Introdução: O estudo dos efeitos de variáveis situacionais/contextuais na performance de equipas de futebol é um tópico em voga na literatura científica, contudo, a sua presumível associação com a análise temporal dos golos marcados tem sido um tema pouco explorado. A relação destas duas linhas de investigação pode elucidar-nos acerca dos momentos críticos do jogo. Objetivos: (1) examinar os efeitos das variáveis localização do jogo e resultado corrente do jogo nos períodos temporais do jogo (6 períodos de 15-min) em que os golos ocorreram; (2) a partir da distinção de “golo crítico” e “golo não crítico”, perceber se os momentos críticos são influenciados pela localização do jogo. Métodos: foram recolhidos dados de 859 golos marcados nas fases de grupos da UEFA Champions League, nas épocas 2016/2017, 2017/2018 e 2018/2019, sendo a inferência estatística cumprida através de Regressão Logística Multinomial. Resultados: na generalidade, foram concretizados mais golos no 6.º período do jogo (76-90 minutos), contrastando com o que sucedeu no 1.º período (1-15 minutos), porém, a variável localização do jogo não parece associar-se à probabilidade de concretização de golo nos períodos de jogo definidos. Apesar disso, jogar na condição de visitado (“casa”) aumentou a probabilidade de marcar golos não críticos no 5.º período (61-75 minutos) e no 6.º período, tendo o 1.º período como referência. Independentemente da localização do jogo, os treinadores devem adotar estratégias ofensivas desde o 1.º período, de forma marcar o golo inaugural (evento crítico) e, assim, aumentar substancialmente a probabilidade de obtenção da vitória.

 

Palavras-chave: golo, momentos críticos, variáveis situacionais, resultado corrente do jogo, desportos de equipa.


O artigo pode ser descarregado gratuitamente no link facultado na referência seguinte. Finalmente, não posso deixar de congratular o Tiago Carmo, não apenas por ver o seu trabalho publicado, mas sobretudo pela conclusão do curso de Licenciatura.


Referência

Carmo, T., Almeida, C. H., & Gonçalves, R. (2021). A criticalidade no futebol: Efeitos da localização do jogo na UEFA Champions League. RBFF – Revista Brasileira de Futsal e Futebol, 12(49), 376–385. (link)

07/05/2021

Um “frame” do clássico: SL Benfica 1 x 1 FC Porto (6-maio-2021)

Analisar “frames” é muito fácil e confortável. Estamos sentadinhos em frente a um computador, com todo o tempo do mundo para o fazer e, não raras vezes, negligenciando aquilo que é a dinâmica do jogo no momento. Por isso, são análises perigosas e que podem gerar interpretações erróneas dos comportamentos específicos individuais e coletivos. 

Neste espaço, reconhecendo as limitações deste procedimento, o objetivo não passa por denegrir a imagem de nenhum jogador ou treinador, mas demonstrar que, na generalidade, quando há golos é porque o mérito de quem ataca resulta da exploração de oportunidades de ação proporcionadas por lacunas de quem está a defender. O erro faz parte do jogo. 

Se olharmos para a figura 1, e considerarmos aquelas que são as bases coletivas do jogo - no caso, os princípios culturais defensivos -, descortinamos erros gritantes (e sucessivos) da equipa do SL Benfica nos instantes que precedem o golo do empate do FC Porto.

 

Figura 1. Análise do posicionamento defensivo da equipa do SL Benfica nos instantes prévios ao golo do FC Porto (fonte: vsports.pt).

 

Posto isto, permitam-me redigir três observações: (1) sim, a equipa do SL Benfica melhorou nos últimos jogos, talvez não o suficiente para merecer outra posição além do 3.º lugar na Liga NOS; (2) no terço ofensivo, a leitura de jogo e a capacidade de ação de alguns jogadores não têm correspondido às exigências que são colocadas por adversários mais capazes; (3) conforme ilustrado na imagem, os comportamentos coletivos em momentos chave do processo defensivo não são suficientemente regulares para garantir maior segurança na proteção da baliza. 

Tudo acontece por alguma razão e a pandemia jamais poderá justificar a época que o SL Benfica está a fazer. Pensar o contrário é tentar "tapar o sol com uma peneira" e incorrer no risco de sofrer mais desaires no futuro.

06/05/2021

28-abril-2021: O dia dos gémeos

O tempo já não anda, nem corre, voa! Há oito dias que me leva num rodopio até à letargia. A Patrícia diz, com o seu jeito assertivo, que estou em modo “barata tonta” e é verdade: na minha cabeça figura um milhão de peças para encaixar no puzzle que é a nossa existência. 

No dia 28 de abril de 2021, na passada quarta-feira, nasceram os nossos gémeos, Alexandre e Guilherme, às 11h38 e 11h39, respetivamente (figura 1). A velocidade do parto foi inversamente proporcional ao tempo necessário para processar as mudanças familiares. Não tem mal, o mais importante é que os pequenos e a mãe continuem bem de saúde. Tudo o resto se compõe, como este débil conjunto de palavras que jamais fará jus à relevância do acontecimento. Em suma, um dos dias mais felizes da minha vida, no qual se criaram duas linhas de passe que teremos, como equipa, de manter “abertas” para a vida.

 

Figura 1. Os nossos recém-nascidos Guilherme e Alexandre.

Entretanto, houve o dia da mãe (2 de maio de 2021). Os meus três filhos, ainda à cata da noção dos dias, seguiram o meu (mau) exemplo de não o assinalar a preceito. E porque a desenvoltura da escrita não me permite redigir algo condizente com o que realmente sinto, sirvo-me das palavras de um dos melhores escritores portugueses contemporâneos para homenagear as três mulheres, todas elas mães, da minha vida – Patrícia, Ana Paula e Ana Catarina –, deixando um primeiro conselho que valha a pena para o Alexandre e para o Guilherme.

 

Sabes quem se lembra desses anos e os guarda no peito como um coração mais importante do que o próprio coração? É a tua mãe. (…) Era a tua mãe que gravava dentro da alma tudo o que testemunhava, e ela vai continuar a guardar essas memórias até morrer. As mães são as fiéis depositárias da nossa infância, dos primeiros anos. As tuas memórias mais importantes, mais formadoras, não são tuas, são dela. E quando a tua mãe morrer, levará consigo a tua infância, perderás os primeiros anos da tua vida. Por isso, trata-a bem.

(Afonso Cruz, in Flores, p. 80)

26/04/2021

Artigo do mês #16 – abril 2021 | Rumo a uma estrutura contemporânea de “aprendizagem em desenvolvimento” do jogador para técnicos de desporto

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Sullivan, M. O., Woods, C. T., Vaughan, J., & Davids, K.

País: Inglaterra

Data de publicação: 22-março-2021

Título: Towards a contemporary player learning in development framework for sports practitioners

Revista: International Journal of Sports Science & Coaching

Referência: Sullivan, M. O., Woods, C. T., Vaughan, J., & Davids, K. (2021). Towards a contemporary player learning in development framework for sports practitioners. International Journal of Sports Science & Coaching. https://doi.org/10.1177/17479541211002335

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 16 – abril de 2021.

 

Apresentação do problema

O desenvolvimento do talento tem sido descrito como uma acomodação mútua e progressiva que ocorre para aumentar a funcionalidade de um atleta em ambientes desportivos e não desportivos holísticos e dinâmicos (Henriksen, 2010). Como parte dessa “acomodação mútua e progressiva”, os técnicos de desporto são frequentemente desafiados a preparar atletas para as exigências competitivas imediatas e, simultaneamente, a desenvolver competências específicas que permitam melhorar o rendimento desportivo a médio/longo prazo. 

No sentido de orientar teoricamente estes agentes para o desafio, estruturas pedagógicas como a Abordagem Baseada nos Constrangimentos (ABC) têm vindo a ganhar notoriedade. Atualmente, é reconhecido que a aprendizagem é um processo não linear e, por isso, é de todo plausível que, no percurso de desenvolvimento de um jogador, esta não linearidade seja equacionada. A ABC, assente em pressupostos da teoria da dinâmica ecológica, permite captar a não linearidade da aprendizagem, do desenvolvimento e da performance no desporto. Esta matriz concebe que o comportamento especializado emerge através da interação de diferentes constrangimentos (tarefa – ambiente – indivíduo). Contudo, apesar de possuir raízes teóricas bem estabelecidas, a sua implementação em contextos práticos constitui outro repto. 

De facto, a aceitação da ABC tem sido prejudicada por algumas interpretações erróneas das suas premissas e ideias-chave. Por exemplo, os constrangimentos podem ser mal interpretados como influências negativas que limitam o desenvolvimento de habilidades, pela imposição exagerada ou insuficiente de constrangimentos em tarefas práticas no processo de desenvolvimento e preparação da performance. Para evitar os efeitos preconcebidos de tarefas práticas excessivamente condicionadas, muitos treinadores optam por uma abordagem centrada do jogo laissez-faire (sem intervenção), na qual a ABC é (mal) interpretada sob a divisa “deixe o jogo ser o professor” (Renshaw et al., 2016). Não é assim que o modelo pedagógico baseado nos constrangimentos conceptualiza os desafios que o aprendiz deve superar no percurso de aprendizagem no desporto (Chow et al., 2020; Renshaw et al, 2016). 

Deste modo, para melhor auxiliar os técnicos de desporto a lidar com estes desafios, este artigo propõe uma estrutura acessível para o utilizador que demonstra os benefícios decorrentes da aplicação da ABC. Para conceptualizar a natureza não linear e individual da aprendizagem, e o respetivo progresso do jogador, os autores empregaram a noção de Adolph “aprendizagem em desenvolvimento” para explicar as ideias fundamentais da ABC. Em termos práticos, também exemplificaram uma estrutura de trabalho do tipo “aprendizagem em desenvolvimento” adotada numa organização de futebol juvenil de alto nível.

 

“Aprendizagem em desenvolvimento”

 

· Rumo a uma interpretação acessível para o utilizador da ABC para conceptualizar o desenvolvimento do jogador

À luz de conceitos da psicologia ecológica e dos constrangimentos em sistemas dinâmicos, a compreensão da perícia, da habilidade e do desenvolvimento do talento pode emergir das interações complexas e dinâmicas subjacentes à contínua adaptação do indivíduo aos constrangimentos do envolvimento (executante, ambiente e tarefa), os quais se alteram ao longo de micro e macro escalas temporais (Button et al., 2020; Fitzpatrick et al., 2018). A aprendizagem ocorre durante modificações de desenvolvimento continuadas ao longo de uma vida e têm que ver, sobretudo, com o modo como cada indivíduo lida com essas mudanças. É por isso que Adolph (2019) utilizou a frase “aprendizagem EM desenvolvimento” (learning IN development), em vez de “aprendizagem e desenvolvimento” (learning AND development). 

A caracterização do processo de aprendizagem não prescinde do termo “não linear”. A não linearidade refere-se à ideia de que pequenas alterações nas propriedades de um sistema (e.g., características físicas, psicológicas emocionais de um indivíduo; as condições de prática de uma equipa) podem originar grandes transformações no comportamento emergente e vice-versa. A não linearidade é, assim, algo muito específico de um sistema, dado que a não proporcionalidade transformacional depende das suas características exclusivas e da rede de interações que estabelece (Chow et al., 2011). 

Por exemplo, a manipulação de um constrangimento da tarefa, como a massa e o tamanho da bola no futebol infantojuvenil, pode levar à emergência de “novas” ações qualitativas para a exploração de brechas ou espaços existentes, situação que pode não acontecer de forma óbvia e imediata quando os jogadores treinam sistematicamente com bolas com diferentes propriedades. Uma criança pode ter a oportunidade de passar ou driblar por um espaço entre dois jogadores oponentes a jogar com uma bola oficial do jogo dos adultos (tamanho 5), embora seja incapaz de “picar” a bola por cima desses defensores para explorar o espaço nas suas costas. Não se trata, portanto, da mera falta de habilidade da criança, simplesmente o peso e as dimensões da bola não estão ajustados à sua capacidade de ação no momento. Neste sentido, introduzir uma bola mais pequena e leve (i.e., adaptada às características momentâneas do sistema físico do aprendiz) pode proporcionar a “nova” oportunidade de ação de “picar” a bola por cima dos defensores. Com esta ligeira modificação na tarefa, o valor e o significado do contexto altera-se para o jovem praticante, por meio da transformação da relação indivíduo-contexto. A não linearidade deriva, precisamente, da evolução das múltiplas relações (e transformações) que ocorrem entre o indivíduo e o contexto no qual opera. 

A ABC, com as suas três categorias de constrangimentos, forma um sistema complexo que molda a “aprendizagem em desenvolvimento”. As características interconectadas do sistema podem ser conceptualizadas como constrangimentos, pois orientam a direção e a taxa de desenvolvimento ao delimitar barreiras entre as quais despoleta a aprendizagem. Um ponto essencial aqui é que os constrangimentos não determinam a aprendizagem individual e os comportamentos competitivos, contudo, interagem continuamente para orientá-los e moldá-los (Davids et al., 1994). Esta ideia permite enquadrar o aprendiz e o processo de aprendizagem numa trajetória de desenvolvimento única e individual (figura 2), contribuindo para que os autores reconheçam as oportunidades que advêm da implementação da ABC no terreno.

  

Figura 2. Adaptado do modelo de constrangimentos de Newell (1986), englobando os constrangimentos que orientam e moldam a aprendizagem (Sullivan et al., 2021).

 

Embora a ABC ajude a entender como se processa a emergência de habilidades específicas, não providencia uma estrutura teórica de como criar ou apresentar ambientes de aprendizagem apropriados nos desportos coletivos. Para o efeito, os princípios da pedagogia não linear podem contornar esta limitação, uma vez que conduzem os treinadores a melhor aproveitar a operacionalização da matriz de constrangimentos numa grande diversidade de propostas práticas. Os princípios-chave da pedagogia não linear podem ser resumidos a: (1) criação de ambientes de aprendizagem representativos, que fomentem oportunidades para que os aprendizes desenvolvam e adaptem acoplamentos informação-movimento relevantes; (2) manipulação de constrangimentos; (3) repetição sem repetição (variabilidade funcional do movimento); (4) promoção de um foco atencional externo (relação com o envolvimento).

 

·      Conhecimento de (em jogo) e conhecimento sobre (fora do jogo)

Gibson (1966) distinguiu dois tipos de conhecimento, “conhecimento de” e “conhecimento sobre”, que podem influenciar (in)diretamente a perceção de um indivíduo. Enquanto o “conhecimento sobre” reflete uma resposta abstrata e indireta sobre coisas, estados ou assuntos (fora do contexto), o “conhecimento de” um ambiente demonstra competências incorporadas que foram desenvolvidas, e são exemplificadas, em atividades (e.g., movimentos, comportamentos, performances), potenciando o acoplamento entre perceção e ação. 

Um ponto importante do artigo é que as tarefas práticas devem ser conceptualizadas por técnicos com um extensivo conhecimento sobre o jogo, porquanto este conhecimento da performance individual e coletiva pode favorecer, qualitativamente, a criação de tarefas práticas que fomentem o desenvolvimento do conhecimento em jogo do(s) jogador(es).

 

·      Conceptualizar a prática de suporte ao conhecimento em jogo

As tarefas práticas devem ser cuidadosamente pensadas para fomentar a aprendizagem no jogo, ou seja, devem proporcionar que os executantes detetem informação relevante do envolvimento para reconhecer oportunidades de ação, as designadas affordances (Gibson, 1979). As affordances são entendidas como propriedades do sistema indivíduo-ambiente e constituem oportunidades de ação face às capacidades de ação do indivíduo (e.g., velocidade, força) e dimensões corporais. 

Muito embora os seres humanos vivam rodeados de affordances, estas oportunidades de ação apenas emergem quando o indivíduo reconhece e assume o seu significado. Na medida em que há muitas perceções e ações possíveis num dado instante e local, os profissionais do treino precisam de orientar as intenções dos praticantes para o que convém ser alcançado em contexto de desempenho. Ao consegui-lo, os técnicos tornam-se capazes de educar a atenção dos jogadores para a perceção e realização de affordances chave disponíveis no envolvimento.

 

A proposta de uma estrutura de trabalho de “aprendizagem em desenvolvimento”

Os autores propuseram uma estrutura de trabalho acessível para o utilizador (treinador), baseada na noção “aprendizagem em desenvolvimento” de Adolph (2019). A proposta a seguir apresentada está a ser aplicada no futebol de formação do clube AIK, sedeado em Solna, Estocolmo, na Suécia (figura 3). O clube tem cerca de 1500 praticantes de futebol entre os 5 e os 18 anos de idade. Em abril de 2017, depois de cessar a antiga política de seleção de talentos, foi realizada uma investigação interna conduzida por treinadores profissionais e cientistas do desporto, a fim de discutir e implementar estratégias sustentadas sobre a evolução da prática e o desenvolvimento do jogador.

  

Figura 3. Jovens jogadoras do AIK (fonte: efeg.se; imagem não publicada pelos autores).

  

Em primeira instância, os treinadores foram encorajados a adotar os princípios da ABC no desenvolvimento de jogadores. O esforço contínuo e interativo de promover as ideias-chave e os conceitos pedagógicos da ABC junto dos técnicos, motivou avanços na estrutura de trabalho “aprendizagem em desenvolvimento” (figura 4) e nas “fundações para o modelo de conceptualização de tarefas” (figura 5).

 

Figura 4. As três fases da estrutura “aprendizagem em desenvolvimento” do jogador, parte integrante do ciclo de desenvolvimento do clube de futebol AIK (Sullivan et al., 2021).

  

Figura 5. Fundações para o modelo de conceptualização de tarefas. A bola, os oponentes e a direccionalidade são aspetos essenciais no modelo para moldar as intenções e a atenção dos aprendizes. A noção de consequência (e.g., se perdermos a bola e não a conseguirmos recuperar, os adversários podem marcar golo) enfatiza a continuidade e a coadaptação existentes entre o ataque e a defesa. A informação relevante na conceptualização de tarefas é representativa do jogo (Sullivan et al., 2021).

 

Se este último modelo fornece uma breve perspetiva de alguns dos fundamentos para a conceção de tarefas práticas, considerando os princípios basilares da pedagogia não linear, a estrutura “aprendizagem em desenvolvimento” encontra-se organizada em três fases, associadas ao timing e às escalas temporais nos quais se processa o desenvolvimento em diferentes níveis (macro e micro). O papel do treinador envolve a orientação do desenvolvimento individual do praticante.

 

·      Fase 1 da “aprendizagem em desenvolvimento”

A fase 1 ilustra o papel do treinador nesta matriz estrutural. Basicamente, o técnico tem uma missão de “co-designer” da sessão de treino para estimular a evolução do conhecimento em jogo. Trata-se de um facilitador de atividades que coloquem as interações indivíduo-envolvimento no âmago da conceptualização da prática. Garantido este predicado, os aprendizes são convidados a explorar ativamente a informação disponível no contexto de desempenho, incrementando o seu conhecimento em jogo e o entendimento das suas possibilidades de (inter)ação (Woods et al., 2020b). 

A partir dos pressupostos da ABC e da pedagogia não linear, os treinadores manipulam os constrangimentos da tarefa para moldar intenções que enquadram a perceção e a ação dos jogadores. O “co-design” alude aos inputs que os principais agentes que operam no processo de aprendizagem (i.e., treinador e jogadores) providenciam, tanto implícita como explicitamente. Ao ajustarem as tarefas de aprendizagem às capacidades de ação momentâneas dos praticantes, os treinadores estão implicitamente a ponderar os efeitos da tarefa no processo de aprendizagem. Por outro lado, os executantes podem ser envolvidos na decisão dos constrangimentos da tarefa a utilizar, tornando-os explicitamente corresponsáveis pelo próprio percurso de aprendizagem e respetivas adaptações (Pinder et al., 2011). 

A esta primeira fase está vinculado o recurso ao modelo de conceptualização de tarefas (figura 5), uma vez que define os princípios de como os profissionais do treino podem criar e avaliar contextos específicos de aprendizagem. De facto, uma tarefa pode satisfazer os princípios bola–adversário(s)–consequência, mas violar o critério de que a informação presente na tarefa seja representativa do jogo. Por exemplo, a regra de que todos os jogadores devem tocar na bola para que o golo seja válido pode não ser um constrangimento da tarefa representativo, já que pode não promover acoplamentos perceção-ação efetivos em relação às affordances disponíveis em competição. No caso, a equipa em posse de bola pode não ficar afinada para a informação que suporta a exploração de espaços ou brechas defensivas, mediante a execução de deslocamentos de rotura (penetrantes) e de ações de finalização (figura 6).


Figura 6. Jogo Gr+5v5+Gr e a violação do princípio de representatividade do jogo. A preto consta a sequência de passes que cumprem o constrangimento proposto; a vermelho uma possível affordance (i.e., deslocamento de rotura e finalização) impossibilitada pelo constrangimento da tarefa (imagem não publicada pelos autores).

 

De acordo Woods et al. (2020a), as regras e as instruções verbais utilizadas pelos treinadores podem exercer uma influência negativa (i. e., excessivamente constrangida) nas interações e nas intenções do jogador, guiando a atenção do indivíduo para fontes de informação não representativas. Assim, ao invés de impor regras durante o processo ofensivo, o treinador pode propiciar que os jogadores utilizem o tempo da sua equipa em posse de bola para criar mais possibilidades de jogar por dentro, por fora, através de métodos ofensivos mais rápidos, ou de modo mais posicional. Em suma, os constrangimentos utilizados na conceptualização de uma tarefa devem orientar, moldar ou estimular ações e não necessariamente erradicá-las, prescrevê-las ou ditá-las.

 

·      Fase 2 da “aprendizagem em desenvolvimento”

A segunda fase desta estrutura de trabalho diz respeito ao jogador, visto ser na prática que refina os acoplamentos perceção-ação através da progressiva deteção de informação e da (re)organização da ação. O treinador deve, por isso, ser cauteloso na sua abordagem, evitando basear-se em constrangimentos informacionais como são as instruções verbais concedidas aos jogadores. A orientação do(s) jogador(es) pode ser alcançada de múltiplas formas através da manipulação da tarefa. Os defensores podem perder pontos extra se permitirem passes penetrantes entre eles, mas podem ganhar pontos se, pelo contrário, forem eficazes na pressão exercida no centro do jogo, com a reconquista da posse de bola. 

Nesta paisagem de affordances partilhadas, a intenção dos atacantes em jogar por dentro colocaria ênfase na busca de oportunidades para realizar e receber passes penetrantes entre os defensores. Porém, para os defensores, as oportunidades de ação percebidas estariam associadas à tentativa de intercetar o passe ou em fechar espaços passíveis de provocar roturas na sua organização defensiva. É a partir das affordances partilhadas entre indivíduos com intenções opostas que emerge a coadaptação comportamental.

 

·      Fase 3 da “aprendizagem em desenvolvimento”

A terceira fase refere-se ao progresso da recuperação e da adaptação suscitada pela(s) sessão/sessões de treino. No decurso das típicas escalas temporais da aprendizagem (dias, semanas, meses, anos), a adaptação irá modificar as capacidades de ação do jogador à medida que aprendem em desenvolvimento. O desenvolvimento contínuo do jogador irá restruturar todo o ciclo e a partilha de responsabilidades, o que enaltece a dinâmica do processo de aprendizagem nesta estrutura de trabalho. Neste contexto, se há um aspeto sobre o qual o treinador deve refletir durante a atividade de planeamento de tarefas, no curso de diferentes escalas temporais, é que que a perceção de affordances do praticante altera-se à medida que as suas capacidades de ação evoluem (ou involuem).

 

Conclusão

Este artigo propôs uma estrutura de trabalho que suporta a aplicação da ABC na prática de futebol, em idades infantojuvenis. Ainda que os autores reconheçam que há trabalho a fazer, é expectável que a estrutura apresentada resolva alguns dos desafios atuais para os técnicos de futebol. Os objetivos desta proposta foram: (1) auxiliar os treinadores a ponderar a natureza não linear e altamente pessoal da aprendizagem, de modo a melhor aferir e comunicar trajetos de desenvolvimento do jogador; (2) demonstrar como integrar a ABC na elaboração de tarefas práticas. A discussão gerada visou orientar os técnicos para uma abordagem de planeamento mais flexível e adaptada, na qual eles possam, mediante a implementação e o aperfeiçoamento de tarefas práticas, avaliar continuamente as necessidades do indivíduo (no seio de uma equipa), ao longo de várias escalas temporais de desenvolvimento.

 

P.S.:

1-  As que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

19/04/2021

Biology of Sport (Vol. 38/2021) | A vantagem de jogar em casa ("home advantage") no futebol profissional europeu em tempos de COVID-19

Em tempos de confinamento há tempo para pensar, ou melhor, em março do ano passado houve algum tempo para formular uma questão de pesquisa: resistiria o fenómeno da “vantagem de jogar em casa” (home advantage) no futebol à ausência de público nos estádios (figura 1), uma das medidas adotadas para controlar a propagação do novo coronavírus SARS-CoV-2?

Figura 1. Futebol sem público no estádio (fonte: rfi.fr).


Em maio de 2020 foram reatadas as competições profissionais de futebol em alguns países e, volvidas as primeiras jornadas de retoma na principal liga alemã (Bundesliga), soaram os alarmes a nível internacional: as percentagens de vitórias caseiras haviam caído dramaticamente; na prática, a secular “vantagem de jogar em casa” havia desaparecido nos jogos com estádios vazios. Na altura, questionámo-nos se o mesmo aconteceria nas outras ligas europeias de referência, as designadas “Big-5”. Substituindo a Ligue 1 (francesa), cujo desenlace na época 2019/2020 não ocorreu no campo, optámos por introduzir na análise a Primeira Liga portuguesa (6.ª classificada no ranking da UEFA). 

Hoje, foi publicado na revista Biology of Sport (figura 2) o produto final de um verão intenso, com o valoroso contributo do meu colega Werlayne Leite (Secretaria da Educação do Estado do Ceará, Fortaleza, Brasil). Ao Werlayne e ao Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes (ISMAT, Portimão), endereço os sinceros agradecimentos pelo apoio prestado ao longo dos últimos meses.


Figura 2. Revista Biology of Sport (fonte: https://www.termedia.pl/Journal/Biology_of_Sport-78).

 

Quanto aos principais resultados, a “vantagem de jogar em casa” não reduziu significativamente no conjunto das 5 ligas europeias analisadas (de 16.4% para 11.6%). Depois da suspensão provocada pela COVID-19, a “vantagem de jogar em casa” foi significativamente superior a 0%, ou seja, no somatório das ligas europeias, o efeito da “vantagem de jogar em casa” persistiu, mesmo sem público nos estádios. A análise por cada liga permitiu-nos constatar que o efeito da “vantagem de jogar em casa” desapareceu completamente na Bundesliga, permaneceu inalterado na La Liga, Premier League e Primeira Liga e, inclusivamente, aumentou na Serie A após a retoma. Nestas ligas, o contexto induzido pela pandemia COVID-19, sobretudo o facto de se jogar sem adeptos nos recintos, influenciou de forma distinta o desempenho das equipas visitadas. Contudo, no cômputo geral, as equipas da casa realizaram menos remates (total), remates à baliza, desarmes e, ainda, houve um decréscimo significativo da taxa de passes precisos.

Convido-vos a ler o resumo seguinte (figura 3) e, se o mesmo suscitar interesse, a descarregar o artigo original (disponível gratuitamente) através do link facultado na referência em baixo. Adicionada mais uma peça ao complexo puzzle do fenómeno home advantage, torcemos para que as comunidades do futebol e das ciências do desporto encontrem alguma informação útil e relevante neste trabalho.


Figura 3. Informações editoriais do artigo, abstract (resumo) e key words (palavras-chave).

(clique para ampliar)


Referência

Almeida, C. H., & Leite, W. S. S. (2021). Professional football in times of COVID-19: did the home advantage effect disappear in European domestic leagues? Biology of Sport, 38(4), 693–701. https://doi.org/10.5114/biolsport.2021.104920 (LINK)

 

Saúde!