28/09/2021

Science and Medicine in Football (2021) | Efeito da idade relativa em jovens Sub-14 em Portugal: Será que a localização geográfica, a qualidade da equipa e a posição de jogo importam?

As primeiras ideias deste projeto começaram a ser rascunhadas há cerca de oito anos. Na altura, acumulava sete épocas consecutivas a treinar rapazes no escalão Infantis (Sub-13), pelo que senti necessidade de aprofundar conhecimentos sobre os efeitos da idade relativa e da maturação biológica na participação desportiva infantojuvenil. Hoje em dia, sabe-se que são constructos distintos e que a relação existente entre “efeito da idade relativa” e “maturação biológica” não é tão linear e taxativa quanto a idealizada pelo senso comum. 

O “efeito da idade relativa” é um fenómeno frequente que compreende consequências imediatas e de longo prazo resultantes de diferenças subtis na idade cronológica entre indivíduos pertencentes ao mesmo coorte anual (e.g., geração ou ano de nascimento). Este constructo traduz-se numa distribuição enviesada das datas de nascimento, com uma sobrerrepresentação de indivíduos nascidos no primeiro trimestre do ano/período de seleção e uma sub-representação de indivíduos nascidos no último trimestre. Por sua vez, a maturação biológica é um processo que caracteriza o crescimento e desenvolvimento humano, sofrendo variações individuais no tempo e ritmo em que o processo ocorre. Daqui decorre que nem todos os indivíduos nascidos no primeiro trimestre tenham, necessariamente, uma maturação mais avançada que os indivíduos do último trimestre, e vice-versa. 

Portanto, sabendo-se que o “efeito da idade relativa” no futebol de formação é mais forte a nível representativo (i.e., seleções distritais e nacionais), foi conjeturado um desenho experimental com o propósito de perceber se a origem geográfica (associações distritais), a qualidade das respetivas equipas e a posição de jogo afetavam o “efeito da idade relativa” em jogadores portugueses Sub-14 (n = 2693) convocados para as últimas sete edições do torneio interassociações Lopes da Silva (2013–2019). 

Foi uma jornada laboriosa e marcada por inúmeros solavancos, em que ligeiros avanços foram interpolados por longas interrupções. No início de 2020 foram reunidas condições para concluir a investigação, levada a cabo com o valioso contributo da professora Anna Volossovitch (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa), a quem expresso a minha profunda gratidão. No dia 4 do presente mês, após 13 meses (!) de duras revisões, o artigo foi finalmente publicado na revista britânica Science and Medicine in Football (figura 1).

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo “Relative age effect among U14 football players in Portugal: do geographical location, team quality and playing position matter?”, publicado na revista Science and Medicine in Football.

 

Em síntese, ficou comprovado que o “efeito da idade relativa” é real na amostra de jogadores Sub-14 convocados para o torneio Lopes da Silva, com 44.3% dos jovens nascidos no primeiro trimestre (Q1: janeiro–março) e 9.9% no quatro trimestre do ano (Q4: outubro–dezembro). As variáveis “localização geográfica” e “qualidade da equipa” influenciaram o “efeito da idade relativa”. Por um lado, a probabilidade de selecionar jogadores Q1 (vs. Q4) aumentou significativamente na região norte (76.3%) e centro-norte (87.3%), comparativamente às equipas regionais das ilhas. Por outro lado, equipas mais bem classificadas apresentaram um aumento de 94.6% na probabilidade de selecionar jogadores Q1 (vs. Q4) em relação a equipas menos bem classificadas em cada edição do torneio (figura 2). A variável “posição de jogo” (guarda-redes, defesa, médio ou avançado) não afetou o “efeito da idade relativa” na amostra analisada.

 

Figura 2. Imagem do jogo entre a AF Algarve e a AF Coimbra na 25.ª edição do Torneio Lopes da Silva, em 2019 (fonte: https://www.fpf.pt/Galeria/gallery/479).

 

O abstract (resumo) original do artigo, que desenvolve um pouco mais os resultados suprarreferidos, encontra-se expresso na figura 3.

 

Figura 3. Abstract do artigo.

(Keywords: youth soccer; adolescence; talent identification; selection process; birthdate)

Reference

Almeida, C. H., Volossovitch, A. (2021). Relative age effect among U14 football players in Portugal: do geographical location, team quality and playing position matter? Science and Medicine in Football. https://doi.org/10.1080/24733938.2021.1977840

 

Uma vez que num projeto desta dimensão precisamos de contar com contribuições de outras pessoas, que não os autores, para que todos os dados sejam viáveis e para que o conteúdo possa ser convenientemente interpretado, aproveito a ocasião para agradecer a Catarina Martins (Federação Portuguesa de Futebol), Emanuel Domingos e Hélder Brito (Associação de Futebol do Algarve), e João Ramos (Vitória Futebol Clube), por nos terem ajudado a recolher alguns dados em falta de jovens jogadores que participaram nas últimas sete edições do torneio Lopes da Silva. Endereço, também, sinceros agradecimentos a Eduardo Jorge Duarte (geógrafo), por nos realizar todos os arranjos inerentes à Figura 1 da publicação, com a divisão de Portugal nas cinco zonas geográficas que compuseram a variável independente “localização geográfica”. 

Fizemos todos os possíveis para que a narrativa (que versa sobre o percurso formativo de Bernardo Silva) e os resultados obtidos fossem comunicados de forma escorreita e cativante. Acima de tudo, torço para que as evidências produzidas possam, de alguma forma, prevenir que processos de seleção/recrutamento sejam deturpados por variáveis ou intentos que, a longo prazo, pouca relevância têm na vida pessoal ou desportiva de crianças/jovens que buscam no jogo experiências e sensações prazerosas. 

Não raras vezes, a manifestação do potencial individual – o famigerado "talento" – depende da paciência dos agentes e das instituições desportivas. Tal como dita a natureza, tudo ocorre no seu devido tempo e cada individualidade (ser vivo) segue o seu próprio guião.

23/09/2021

Artigo do mês #21 – setembro 2021 | Treinar jovens jogadores de futebol de elite: área por jogador em jogos reduzidos para replicar as exigências do jogo competitivo

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Riboli, A., Olthof, S. B. H., Esposito, F., & Coratella, G.

País: Itália

Data de publicação: 28-julho-2021

Título: Training elite youth soccer players: area per player in small-sided games to replicate the match demands

Revista: Biology of Sport

Referência: Riboli, A., Olthof, S. B. H., Esposito, F., & Coratella, G. (2022). Training elite youth soccer players: area per player in small-sided games to replicate the match demands. Biology of Sport, 39(3), 579–598. https://doi.org/10.5114/biolsport.2022.106388

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 21 – setembro de 2021.

 

Apresentação do problema

As equipas técnicas de futebol (i.e., treinadores, preparadores físicos, analistas, etc.) necessitam de controlar a carga de treino imposta a cada jogador, no intuito de maximizar as adaptações individuais e melhorar a performance competitiva (Impellizzeri et al., 2019; Martin-Garcia et al., 2018). Para o efeito, as tecnologias de rastreamento (e.g., GPS) são tipicamente utilizadas para quantificar a distância total, a corrida em velocidades alta e muito alta, o sprint e as ações de aceleração/desaceleração durante o treino e a competição. 

Por sua vez, é sabido que os jogos reduzidos são muitas vezes propostos para melhorar a condição física enquanto recriam situações contextuais técnicas, táticas e físicas do jogo formal (Hill-Haas et al., 2011; Riboli et al., 2020). A intensidade destas tarefas jogadas é uma característica crucial para o desenvolvimento e preparação da performance, quer no futebol juvenil, como no futebol sénior. A comparação das exigências em jogo com as relativas ao treino pode ajudar a otimizar objetivos de performance (Lacome et al., 2018; Martin-Garcia et al., 2018; Riboli et al., 2020) e a estimular as atividades motoras particularmente suscitadas durante os 90 minutos e/ou as passagens mais exigentes do jogo (Riboli et al., 2021a, 2021b; Varley et al., 2012). Apesar disso, no decurso do processo de treino, tem sido evidenciado uma exposição insuficiente a atividades de corrida em alta velocidade e em sprint, relativamente ao solicitado em competição, nas principais ligas de futebol europeias. 

Na prática, a manipulação dos jogos reduzidos permite que os treinadores modulem as atividades locomotoras, como as distâncias de corrida em velocidades altas, sprint e/ou em aceleração/desaceleração. Por norma, o aumento do espaço de jogo ou a redução do número de jogadores determinam maiores distâncias total, de corrida em velocidades alta e muito alta, e em sprint (Lacome et al., 2018); ao invés, quando o espaço de jogo é reduzido ou é aumentado o número de jogadores, os indivíduos realizam mais toques sobre a bola e a prevalência de atividades locomotoras é geralmente caracterizada por acelerações e desacelerações (Lacome et al., 2018; Riboli et al., 2020). Ao combinarmos as variáveis “espaço de jogo” e “número de jogadores”, estamos a promover alterações na “área por jogador”, sendo determinada pela área de jogo total a dividir pelo número de jogadores (m2/jogador). Esta variável possibilita que profissionais do treino e investigadores estudem os efeitos da manipulação do espaço, independentemente do tamanho das equipas (Olthof et al., 2019). 

Recentemente, foi reportado que a área por jogador em jogos reduzidos esteve fortemente correlacionada com as distâncias total relativa (m/min), de corrida em velocidades alta e muito alta, e em sprint, embora a correlação fosse inexistente para acelerações/desacelerações (Riboli et al., 2020). Por exemplo, áreas por jogador superiores a 300 m2/jogador têm sido sugeridas para induzir respostas de carga interna e externa próximas das capacidades individuais máximas (Castagna et al., 2019), replicar respostas cardiovasculares e metabólicas de jogos oficiais (Castellano et al., 2015) e simular comportamentos táticos em competição (Olthof et al., 2019). 

Numa analogia com o futebol praticado por jogadores seniores de elite, a manipulação das regras, do espaço e do número de jogadores em jogos reduzidos também afeta a carga externa imposta aos jovens. Contudo, a existência de uma área por jogador mínima para reproduzir as exigências do jogo competitivo ainda não foi investigada em jovens praticantes de futebol de nível “elite” (figura 2). Para propósitos de conceptualização do treino, perceber se a relação entre exigências de treino e jogo varia em diferentes idades, em função da manipulação da área por jogador, não só é necessária como primordial. O objetivo deste estudo passou, assim, por identificar a área por jogador mínima que pode ser utilizada para replicar as atividades locomotoras dos jogos oficiais (distâncias total relativa, de corrida em velocidades alta e muita alta, em sprint, em aceleração/desaceleração), em jogadores de elite do escalão Sub-15 ao escalão Sub-19. Adicionalmente, foi calculada a área por jogador ótima para cada posição de jogo.

 

Figura 2. Jovens jogadores de elite em competição na UEFA Youth League 2021/2022 (fonte: UEFA.tv, UEFA.com; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Participantes: 228 jovens jogadores de elite a competir em provas juvenis de uma das cinco melhores ligas europeias de futebol. Os participantes foram enquadrados no estudo em função do escalão etário – Sub-15 (n = 36), Sub-16 (n = 48), Sub-17 (n = 49), Sub-18 (n = 37) e Sub-19 (n = 58) – e da posição de jogo – avançados (n = 6, 11, 12, 8 e 13 dos Sub-15 para os Sub-19, respetivamente), extremos (n = 4, 3, 5, 3 e 5), médios centro (n = 10, 12, 14, 11 e 14), médios-ala (n = 4, 5, 4, 4 e 11), defesas centrais (n = 7, 11, 8, 6 e 13) e defesas laterais (n = 5, 6, 6, 5 e 2). Os guarda-redes foram excluídos da análise. 

Desenho experimental: o estudo decorreu durante os períodos competitivos de cinco épocas consecutivas (2015-2016 a 2019-2020). Os participantes realizaram as sessões de treino habituais ao longo dos microciclos, que tiveram lugar em campos relvados ou sintéticos devidamente tratados. Foram recolhidas 12183 observações individuais (mediana de 98) em diferentes formatos de jogo reduzido: Sub-15 – 3v3 ao 10v10, áreas por jogador entre 40 e 343 m2/jogador; Sub-16 – 2v2 ao 10v10, áreas por jogador entre 40 e 343 m2/jogador; Sub-17 – 3v3 ao 10v10, áreas por jogador entre 50 e 286 m2/jogador; Sub-18 – 2v2 ao 10v10, áreas por jogador entre 54 e 211 m2/jogador; Sub-19 – 3v3 ao 10v10, áreas por jogador entre 42 e 343 m2/jogador. Para o cálculo das áreas por jogador de cada jogo reduzido, os guarda-redes não foram contabilizados. Os jogos reduzidos foram realizados com a supervisão e encorajamento de vários treinadores, de modo a manter um nível de empenho elevado. Foram colocadas bolas ao redor do campo para reposição rápida e os pontapés de canto foram substituídos por reposição de bola pelo guarda-redes. Foi analisado um total de 116 jogos oficiais, com a recolha de 683 amostras individuais, sendo que estas partidas decorreram em campos de relva natural, com as seguintes dimensões: 105x66 m. 

Procedimentos: foi utilizado um sistema de posição global (GPS), com uma frequência de 10 Hz, para recolher os dados das sessões de treino e dos jogos. Cada jogador utilizou sempre a mesma unidade GPS em toda a investigação. Em cada sessão e em cada jogo foram medidas as seguintes variáveis: distância total, corrida em velocidade alta (15–19.9 Km/h), corrida em velocidade muito alta (20–24 Km/h), sprint (>24 Km/h) e acelerações/desacelerações (>3 m/s2). Estas variáveis foram, posteriormente, normalizadas para a distância relativa percorrida por minuto (m/min). A fim de determinar as áreas por jogador que replicam as distâncias normalizadas em jogos oficiais, por escalão etário, os dados de cada variável foram primariamente recolhidos nas partidas oficiais. A relação entre a área por jogador e cada variável normalizada, obtida durante os jogos reduzidos, foi esquematizada separadamente e confrontada com os valores médios retirados dos jogos competitivos para calcular a área por jogador correspondente às exigências do jogo competitivo (figura 3).

 

Figura 3. Representação gráfica dos procedimentos usados para determinar a área por jogador (Area per Player: ApP) em jogos reduzidos, que reproduza a exigência física do jogo oficial. Eixo X: área por jogador no jogo reduzido. Eixo Y: exigência do jogo oficial. O ponto de interceção entre os dois eixos (X e Y) e a linha vertical picotada simbolizam a área por jogador necessária para replicar as exigências físicas do jogo formal (Riboli et al., 2022).

 

Análise estatística: a análise estatística foi realizada no software SPSS v. 26. A normalidade dos dados foi averiguada através do teste de Shapiro-Wilk. Foram executadas análises de regressão linear para calcular a correlação entre distâncias total, de corrida em velocidades alta e muito alta, em sprint e de aceleração/desaceleração e a área por jogador durante os jogos reduzidos. Depois, uma análise de modelo linear misto permitiu calcular a diferença entre a área por jogador mínima e as variáveis normalizadas para cada escalão etário e por posição de jogo. Foi, ainda, realizada uma análise post-hoc (correção de Holm-Sidak) para calcular as diferenças nas variáveis independentes. As dimensões de efeito foram apuradas segundo o Cohen’s d, com intervalos de confiança a 95%, para descrever a magnitude das diferenças entre pares. O nível de significância estabelecido foi α < 0.05.

 

Principais resultados

 

·      Correlações entre área por jogador e atividades locomotoras

As correlações entre a área por jogador e as atividades locomotoras foram moderada para a distância total, grande para a corrida em velocidade alta, muito grandes para a corrida em velocidade muito alta e para o sprint. Houve uma pequena correlação negativa entre área por jogador e acelerações/desacelerações. De resto, esta foi uma tendência genérica para todos os escalões etários.

 

·      Área por jogador em jogos reduzidos para replicar as exigências do jogo oficial

Através do uso de jogos reduzidos, o sprint necessita de áreas por jogador ligeiramente mais elevadas que a corrida em velocidade muito alta (p = 0.041), moderadamente mais elevadas que a corrida em velocidade alta (p = 0.009) e muito mais elevadas que a distância total (p < 0.001). Por sua vez, a corrida em velocidade muito alta apresentou áreas por jogador ligeiramente mais elevadas que a corrida em velocidade alta (p = 0.009) e muito mais elevadas que a distância total (p < 0.001). A corrida em velocidade alta requer áreas por jogador moderadamente mais elevadas (p < 0.001) que a distância total. As áreas por jogador para a aceleração/desaceleração foram moderada a amplamente mais baixas que as corridas em velocidade alta e muito alta, e o sprint (p < 0.001). Não houve diferenças significativas (p > 0.05) entre as acelerações/desacelerações e a distância total. Os valores descritivos de cada variável para os diferentes escalões etários constam na figura 4 (painel A). As diferenças na área por jogador entre escalões etários, para a mesma variável, estão apresentadas no painel B.

 

Figura 4. Área por jogador (m2/jogador) mínima para replicar as exigências locomotoras (m/min) em jogos reduzidos, para os diversos escalões etários (médias e desvios-padrão). Painel A (esquerda): comparações da área por jogador entre variáveis, no mesmo escalão etário. Painel B (direita): comparações da área por jogador entre escalões etários, para a mesma variável. Legenda: TD – total distance (distância total); HSR: high-speed running (corrida em velocidade alta); VHSR: very high-speed running (corrida em velocidade muito alta); SPR: sprint; Acc/Dec: acceleration/deceleration (aceleração/desaceleração) (Riboli et al., 2022).

 

·      Área por jogador em jogos reduzidos para reproduzir as exigências do jogo oficial por posição de jogo

As áreas por jogador em jogos reduzidos mínimas para reproduzir as exigências do jogo formal para as variáveis distância total, corrida em velocidade alta, corrida em velocidade muito alta, sprint e acelerações/desacelerações, para cada posição de jogo, em cada escalão etário, encontram-se detalhadas na figura 5.

 

Figura 5. Área por jogador (m2/jogador) para replicar as exigências locomotoras (m/min) em jogos reduzidos, para os diversos escalões etários e por posição de jogo (médias e desvios-padrão). Painel A: distância total. Painel B: corrida em velocidade alta. Painel C: corrida em velocidade muito alta. Painel D: sprint. Painel E: aceleração/desaceleração. Legenda: FW – forwards (avançados); WF: wide forwards (extremos); CM: central midfielders (médios centro); WM: wide midfielders (médios-ala); CD: central defenders (defesas centrais); WD: wide defenders (defesas laterais) (Riboli et al., 2022).

 

Aplicações práticas

Melhorar a condição física no treino pode ser almejado através de atividades jogadas que, simultaneamente, permitem recrear fatores contextuais específicos dos jogos oficiais. Entre os Sub-15 e os Sub-19, os treinadores devem propor áreas por jogador mais amplas para aumentar as distâncias total, de corrida em velocidade alta e muito alta, e em sprint. A aceleração/desaceleração parece ser menos afetada pela área por jogador prescrita, embora espaços mais reduzidos sejam mais recomendados para suscitar este tipo de deslocamentos espaciotemporais (efeito de pequena dimensão). 

Os resultados indicam ser necessária uma área por jogador mínima de 200 m2/jogador para estimular apropriadamente atividades de corrida em velocidades elevadas em jovens jogadores de futebol. As áreas por jogador mínimas para replicar as diferentes atividades locomotoras são: ≈182 m2/jogador para a corrida em velocidade alta; ≈197 m2/jogador para a corrida em velocidade muito alta; ≈212 m2/jogador para o sprint; ≈158 m2/jogador para a distância total; ≈156 m2/jogador para a aceleração/desaceleração. 

Os jogadores mais jovens (i.e., Sub-15 e Sub-16) parecem requerer áreas por jogador mais amplas (≈230 m2/jogador) para reproduzir as exigências espaciotemporais do jogo competitivo. Uma vez que tendem a ser indivíduos menos maturados e, por isso, com menor capacidade de aceleração, é plausível que necessitem de mais espaço para atingir velocidades muito altas (>20 Km/h). 

A falta de consistência para a área por jogador entre as diversas posições de jogo, nos diferentes escalões etários, sugere que é conveniente adotar uma abordagem individualizada. Visto que agrupar os jogadores por posição (e.g., só avançados) em jogos reduzidos não reproduz os fatores contextuais e estratégico-táticos encontrados em competição, a tradicional conceptualização de jogos reduzidos envolvendo jogadores de posições distintas deve ser complementada pela adição de constrangimentos espaciais por posição de jogo, ou por exercícios analíticos (técnico-físicos) ou de corrida que induzam os esforços de alta velocidade solicitados nos jogos oficiais.

 

Conclusão

Este estudo mostrou correlações positivas entre a área por jogador e medidas da carga externa, em jovens jogadores de futebol pertencentes à faixa etária entre os Sub-15 e os Sub-19. Excetuando a variável aceleração/desaceleração, maiores áreas por jogador induzem exigências locomotoras mais elevadas em termos de distância total, corrida em velocidades alta e muita alta, e sprint. Para cada variável foi sugerida uma área por jogador mínima que permite replicar ou enfatizar as exigências do jogo formal. Analisando todos os grupos etários, são necessárias áreas por jogador de maiores dimensões nos Sub-15 e nos Sub-16. Estas evidências podem ajudar as equipas técnicas a recriar a carga externa desejada, em relação às exigências específicas de cada posição nos jogos oficiais, tendo por base o planeamento de diferentes formatos de jogo reduzido no processo de treino com jovens jogadores de elite (dos Sub-15 aos Sub-19).

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Biology of Sport.

30/08/2021

Inconsciência temporal


Férias. Do emprego. Em casa, trabalho não falta. Dizem que a alegria e o cansaço contagiam. Eu acrescento que a inconsciência também. Uma inconsciência involuntária, como a dos bebés ou a dos loucos. Pela idade, talvez seja mesmo loucura. Dou por mim a ter noção da passagem dos dias, porque a seguir à luz vem a escuridão e, depois, a luz outra vez. Não importa a ordem dos dias, acumulam-se em semanas, em meses, o sinónimo perfeito de fugacidade.

Hoje, tinha marcada uma consulta de medicina do trabalho pelas 12h20. Fui mais cedo, ciente de que era sábado. Não faço ideia porquê, ignorei todos os sinais óbvios que indicavam ser um dia de semana; na prática, o primeiro dia útil da semana. Cheguei mais cedo e despachei-me rápido, não sem antes distribuir “bom fim de semana” por cinco ou seis pessoas diferentes. Foi a enfermeira, foi o médico, foram algumas colegas de trabalho. No regresso a casa, os neurónios restabeleceram as respetivas ligações sinápticas: “p*r*a, hoje é segunda-feira!”. 

Os “bons fins de semana” estavam dados e a minha inconsciência (ou parvoíce) atestada por quem de direito. Será que voltarei a ter trabalho depois das férias?

27/08/2021

Artigo do mês #20 – agosto 2021 | Como limitar o número de toques na bola afeta a performance de jovens jogadores de futebol em jogos reduzidos, nos diferentes escalões etários?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Coutinho, D., Gonçalves, B., Santos, S., Travassos, B., Folgado, H., & Sampaio, J.

País: Portugal

Data de publicação: 2-agosto-2021

Título: Exploring how limiting the number of ball touches during small-sided games affects youth football players’ performance across different age groups

Revista: International Journal of Sports Science & Coaching

Referência: Coutinho, D., Gonçalves, B., Santos, S., Travassos, B., Folgado, H., & Sampaio, J. (2021). Exploring how limiting the number of ball touches during small-sided games affects youth football players’ performance across different age groups. International Journal of Sports Science & Coaching. https://doi.org/10.1177/17479541211037001

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 20 – agosto de 2021.

 

Apresentação do problema

Os jogos reduzidos são tarefas de treino realizadas em espaços pequenos, geralmente com regras adaptadas e com um número reduzido de jogadores em relação ao jogo formal. Estes meios permitem recriar cenários percetivo-motores similares aos encontrados em competição, o que permite que os jogadores desenvolvam a habilidade de acoplar as respetivas ações à informação disponível no envolvimento (Davids et al., 2013; Machado et al., 2019). De facto, uma das principais características dos jogos reduzidos reside na possibilidade de, através da manipulação de constrangimentos da tarefa, enfatizar a informação disponível que orienta o comportamento dos jogadores para objetivos específicos. 

Existe um vasto leque de investigação produzida no intuito de explorar como a manipulação de constrangimentos da tarefa influencia a performance dos jogadores. Neste âmbito, a manipulação do número de toques permitidos sobre a bola é um constrangimento que tem merecido uma atenção considerável das ciências do desporto. Por exemplo, do ponto de vista físico, jogadores internacionais percorreram maiores distâncias total, em alta intensidade e em sprint, quando o número de toques na bola foi limitado num jogo reduzido de posse de bola (4v4+4 neutros) (Dellal et al., 2011, 2012). Contudo, a utilização do mesmo constrangimento em jogadores semiprofissionais e amadores não produziu evidências consistentes, já que foram registadas maiores intensidades em jogos sem restrição do número de toques (Casamichana et al., 2014; Román-Quintana et al., 2013). 

Na dimensão técnica, jogar a um toque tende a diminuir a percentagem de passes bem-sucedidos e a aumentar o número de posses de bola e de bolas perdidas em jogadores de nível internacional e profissional (Dellal et al., 2011, 2012; Giménez et al., 2013). Atendendo ao aumento de exigências percetivas, é expectável que estes efeitos sejam exacerbados em jogadores com menor experiência, como em contexto de formação. Se, por um lado, jogadores em diferentes fases de desenvolvimento (e.g., Sub-13 a Sub-19) podem revelar diferentes adaptações a este constrangimento da tarefa, por outro lado, a maioria dos estudos existentes explorou os efeitos da manipulação do número de toques na performance física e técnica, descurando as implicações que pode acarretar no comportamento posicional dos jogadores. 

Uma vez que jogadores de níveis de experiência diferentes respondem de forma distinta à imposição do mesmo constrangimento, é importante aprofundar o conhecimento de como a manipulação do número de toques na bola afeta a performance de jovens jogadores pertencentes a diferentes escalões etários. A introdução de variáveis posicionais pode, também, fornecer novas perspetivas acerca da utilização deste constrangimento no decurso do processo de treino. Assim, este estudo teve como propósito explorar o modo como o número de contactos permitidos ("jogo livre", "2 toques" e "1 toque") influencia o comportamento tático, técnico e físico de jogadores pertencentes a diferentes escalões etários (de Sub-9 a Sub-19), em jogos reduzidos com o formato Gr+4v4+Gr.


Métodos

Participantes: 114 jovens praticantes de futebol do mesmo clube (ver detalhes na tabela 1). Os participantes (crianças/jovens) tinham dois a quatro treinos semanais, com um jogo ao fim de semana. Devido à especificidade da posição, os guarda-redes foram excluídos da análise.


Tabela 1. Detalhes da amostra (n = 114) por escalão etário (Coutinho et al., 2021).

Desenho e procedimentos experimentais: o desenho do estudo seguiu uma abordagem de medidas repetidas em função de três condições experimentais: (i) “jogo livre”, sem restrições ao nível do número de toques sobre a bola; (ii) “2 toques”, permitido um máximo de dois toques por cada intervenção individual; (iii) “1 toque”, apenas permitido um toque por cada posse de bola individual. O formato de jogo reduzido foi Gr+4v4+Gr, disputado num espaço de 40x30m (150 m2/jogador; figura 2), num relvado artificial, após 15 minutos de aquecimento padronizado.

 

Figura 2. Formato de jogo proposto na tarefa experimental: Gr+4v4+Gr, num espaço de 40x30m (imagem não publicada pelos autores).

 

A experiência decorreu durante duas semanas a meio do período competitivo da época, com um total de 6 sessões não consecutivas, sendo garantidas condições de práticas similares para todos os indivíduos (e.g., temperatura, fase do dia, etc.). Em cada sessão, os treinadores principais formaram duas equipas equilibradas de 4 elementos (+ guarda-redes). Houve variabilidade nas equipas ao longo da experiência para incentivar o envolvimento dos elementos dos planteis e aumentar a capacidade de generalização dos resultados; apesar disso, em cada sessão, as equipas permaneceram inalteradas nas três condições experimentais, cuja ordem foi aleatória. Em cada sessão, as condições experimentais tiveram a duração de 4 minutos, com um intervalo de 2 minutos de recuperação passiva entre elas. Os treinadores não podiam conceder feedbacks e encorajamento aos jovens participantes na experiência. As regras oficiais do futebol foram aplicadas, à exceção da lei do fora-de-jogo e a possibilidade de reatar o jogo após golo através do guarda-redes. 

Recolha dos dados: durante os jogos reduzidos, os dados posicionais dos jogadores (dimensão tática) foram obtidos mediante a utilização de um sistema de posição global (GPS), a 5 Hz (SP-PRO. GPSports, Canberra, ACT, Austrália). As coordenadas dos jogadores (latitude e longitude) foram exportadas e computadas através de rotinas específicas no software Matlab® (MathWorks, Inc., Massachussets, EUA). A utilização de GPS também permitiu analisar diversas variáveis na dimensão física. Na vertente técnica, os jogos foram gravados através de uma camara digital (Sony NV-GS230) e a análise notacional executada no software LongoMatch (Longomatch, v. 1.3.7., Fluendo). As variáveis utilizadas nesta análise multidimensional encontram-se detalhadas na tabela 2.

 

Tabela 2. Variáveis do estudo: dimensão e respetiva definição (adaptado de Coutinho et al., 2021).


Análise estatística: os resultados foram apresentados como médias ± desvios-padrão. A presença de outliers e a normalidade dos dados em cada variável foi analisada mediante testes de Shapiro-Wilk. Face à normalidade ou não dos dados, foram empregues dois tipos de teste: (1) paramétrico – análise de variância para amostras emparelhadas (ANOVA); (2) não paramétrico – teste ANOVA de Friedman. O nível de significância ficou definido em p ≤ 0.05 e os cálculos foram realizados no software SPPS v.24 (IBM SPSS, Armonk, NY: IBM Corp.). Posteriormente, as diferenças nas médias de grupo foram expressas em unidades não tratadas, com intervalos de confiança de 90%, utilizando, para cada escalão etário, uma folha específica de Excel proposta por Hopkins (2017). Os valores de corte das dimensões de efeito foram: <0.2 trivial, <0.6 pequena, <1.2 moderada, <2.0 grande e >2.0 muito grande (Kleiven et al., 2020).

 

Principais resultados

Os resultados são apresentados em função da dimensão de desempenho analisada: variáveis tático-posicionais, físicas e técnicas.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis tático-posicionais

As distâncias de cada jogador para os centroides da própria equipa e da equipa oponente, para o companheiro de equipa mais próximo e para o adversário mais próximo não foram afetadas pela manipulação deste constrangimento da tarefa, à exceção da distância de cada jogador para o oponente mais próximo no escalão Sub-15, com valores mais elevados na condição “2 toques” comparativamente ao “jogo livre”. Também não foram observadas diferenças para o rácio comprimento : largura. Em termos de sincronização longitudinal, houve pequenos decréscimos de coordenação nos Sub-9 e nos Sub-17 nas condições “1 toque” e “2 toques”, respetivamente. No escalão Sub-17 verificaram-se decréscimos moderados de sincronização no jogo a “1 toque”. Ao invés, nos Sub-13 houve um pequeno aumento de coordenação longitudinal a jogar a “1 toque” e, nos Sub-15, acréscimos moderados nos jogos com limitação do número de toques (1 e 2 toques). Os efeitos na sincronização lateral foram somente evidentes nos escalões etários mais velhos: na condição “2 toques”, houve um pequeno aumento nos Sub-17 e um pequeno decréscimo nos Sub-19; na condição “1 toque”, observaram-se pequenos aumentos nos Sub-15 e Sub-19. No índice de exploração espacial foram registadas diferentes tendências por escalão etário: Sub-9 e Sub-17 – pequenos decréscimos a jogar a “1 toque”; Sub-11 – pequeno acréscimo a jogar a “1 toque” e pequeno decréscimo a jogar a “2 toques”.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis físicas

Os resultados foram claros no que respeita à distância total percorrida: houve decréscimos pequenos a moderados em todos os escalões etários nas condições de jogo com limitação do número de toques (1 e 2 toques). No que respeita a zonas de intensidade, foram observados aumentos, de dimensão pequena a moderada, na distância percorrida a andar com limitação do número de toques para todos os escalões etários, ao contrário do que sucedeu para a distância percorrida em jogging. Para a distância percorrida em corrida, foram revelados pequenos decréscimos nos jogos a 1 e 2 toques no escalão Sub-11, enquanto nos Sub-13 houve um pequeno decréscimo na condição “1 toque”, em comparação com o “jogo livre”.

 

·      Efeito da manipulação do número de toques nas variáveis técnicas

A jogar a “2 toques” foram observados pequenos acréscimos no número de passes com sucesso nos escalões Sub-9, Sub-15 e Sub-17; por sua vez, a jogar a “1 toque” houve aumentos, de dimensão pequena a moderada, nos Sub-9, Sub-15 e Sub-17. Contrariamente, na condição de jogo “1 toque”, constatou-se um pequeno decréscimo do número de passes bem-sucedidos nos Sub-13. À exceção dos escalões Sub-11 e Sub-15, houve um aumento praticamente generalizado do número de passes sem sucesso ao limitar o número de toques nos jogos reduzidos (efeitos pequenos a moderados). Esta condicionante não influenciou o número de remates à baliza e o número de golos concretizados nos diversos escalões etários.

 

Aplicações práticas

Os treinadores devem estar cientes da importância de um planeamento apropriado das tarefas de treino, de modo que a introdução de regras (e.g., limitação do número de toques) nos jogos reduzidos garanta ambientes de aprendizagem profícuos, nos quais as crianças/jovens são capazes de desenvolver um conjunto vasto e variável de habilidades. 

Do ponto de vista tático-posicional, foram identificados padrões de movimento distintos ao longo dos diversos escalões etários. Contudo, uma vez que os praticantes mais jovens (Sub-9 a Sub-13) ainda se encontram a desenvolver e a refinar o seu repertório motor, é provável que o foco na condição “1 toque” seja colocado na execução motora, comprometendo a perceção do envolvimento e a sincronização do movimento com os companheiros de equipa. 

Ao invés do que sucede com jogadores profissionais, jogadores menos experientes e/ou com menor nível de prática, como sucede no futebol infantojuvenil, tendem a apresentar uma redução da performance física em contextos de jogo com limitação do número de toques. Se o objetivo dos treinadores for aumentar a solicitação física (i.e., deslocamentos espaciotemporais), o “jogo livre” parecer ser uma solução mais conveniente, em particular nos escalões mais jovens. 

Jogar com limite de toques parece ser um constrangimento chave para aumentar a habilidade dos jogadores para atuar sob pressão adicional em termos de tempo e espaço. Apesar de promover a frequência e a qualidade da ação de passe, bem como a adaptabilidade comportamental, também pode limitar o tempo necessário para executar – tão importante em idades mais jovens – e inibir a emergência de outras ações específicas do jogo, designadamente o drible. 

Com base nas evidências supramencionadas, os jogadores mais jovens (Sub-9 a Sub-13) devem ser expostos menos vezes à limitação de toques, sendo a condição “2 toques” mais oportuna para a etapa de desenvolvimento em causa. Os elementos dos escalões mais velhos (Sub-15 a Sub-19) exibiram maior capacidade para ajustar o seu comportamento à imposição de limite de toques, sobretudo na condição “1 toque”, pelo que os treinadores podem utilizar esta regra para aumentar as exigências percetivas da tarefa e, concomitantemente, desafiar os jogadores a explorar respostas motoras adaptativas.

 

Conclusão

Os resultados deste estudo mostram que diferentes respostas tendem a ocorrer como consequência da manipulação do número de toques sobre a bola em jogos reduzidos. Os efeitos da manipulação também variam em função do escalão etário. Em concreto, modificar o número de toques permitidos afetou, essencialmente, as performances física e técnica dos jovens jogadores. As crianças/jovens percorreram menores distâncias totais, em virtude de menores distâncias percorridas em jogging e maiores distâncias percorridas a andar. Na dimensão técnica, limitar o número de toques proporcionou o aumento quer de passes bem-sucedidos, como de passes malsucedidos. As variáveis tático-posicionais foram menos sensíveis à manipulação do número de toques, embora os jogadores alterarem a coordenação com os companheiros de equipa e o espaço explorado face ao número de contactos permitido. 

Os efeitos sobre as variáveis tático-posicionais, físicas e técnicas foram mais evidentes na condição de jogo a “1 toque”. Por isso, é fundamental que os treinadores periodizem de forma ponderada a utilização deste constrangimento, especialmente nos escalões etários mais novos, no intuito de conformar contextos de aprendizagem/treino dotados de variabilidade e riqueza informacional.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

30/07/2021

Da componente metodológico-estratégica ao fator humano: de Jorge Jesus a Rúben Amorim, passando por Vítor Oliveira

Em plena era do fenómeno “Big Data” no futebol e no desporto em geral (figura 1), a componente metodológico-estratégica é cada vez menos uma arte e cada vez mais uma ciência. Os números e as quantidades prosperaram de tal modo que se tem esquecido os predicados e as qualidades do jogador e, contundentemente, do ser humano.

 

Figura 1. A análise do jogo de futebol na era do fenómeno “Big Data” (fonte: https://www.linkedin.com/pulse/impact-big-data-analytics-football-chris-pearson/).

 

O sucesso de treinadores portugueses, como José Mourinho ou Jorge Jesus, tem sido reiteradamente associado ao nome de Manuel Sérgio (ex-professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana), uma fonte de inspiração e conhecimento para o processo de treino e competição na modalidade. Não que o prof. Manuel Sérgio fosse um especialista em futebol, o próprio refere que nunca o foi, mas porque um treinador de excelência deve ser, antes de tudo, um líder capaz de potenciar relações humanas, fazendo do “todo” muito mais do que a mera soma das suas “partes”. 

Quem só sabe de futebol, de futebol nada sabe.

(Manuel Sérgio)


Este é o ponto de partida para este texto: até que ponto o fator humano se sobrepõe ou se coaduna com a metodologia de treino e a preparação estratégico-tático empregues pelo treinador contemporâneo? No início da pré-época, Filip Krovinović deixou duras críticas ao seu treinador Jorge Jesus após não ser utilizado num jogo contra o SC Covilhã:


Imagina se estás na minha situação. Ontem tiveram jogo e eu fui o único jogador que não entrou nem um minuto. Jogaram duas equipas e não entrei. Depois o treinador adjunto foi perguntar ao Jesus se eu entrava e ele [Jorge Jesus] disse 'não, fica lá. Se alguém se lesionar, entra'. Mano, que filho da p***, pá, incrível! Tipo, não conseguia sair para casa e tinha de ficar lá...

(fonte: O Jogo, 9 de julho de 2021)

 

Sim, são declarações que não são admissíveis a um profissional pago a peso de ouro e que culminaram com a sua transferência para o Hadjuk Slipt, na sequência de um processo disciplinar instaurado pelo clube ao médio internacional croata. Este incidente permite-nos refletir um pouco sobre o “fator humano” no desporto profissional. Foi somente o jogador que esteve mal? A sua venda, quiçá precipitada, não poderia ter sido evitada (e posteriormente rentabilizada), sabendo que se tratava de um simples jogo de preparação contra uma equipa de um escalão inferior? Decidi, por isso, analisar o perfil de substituições em jogos subsequentes dos designados “três grandes” e respetivos adversários, durante o período preparatório, no intuito de retirar mais algumas ilações sobre a gestão dos ativos (humanos) que cada treinador tem ao seu dispor (figuras 2, 3 e 4).

 

Figura 2. Substituições no jogo Sporting CP 3 x 2 Olympique Lyonnais, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Figura 3. Substituições no jogo FC Porto 2 x 0 LOSC Lille, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Figura 4. Substituições no jogo SL Benfica 1 x 1 Olympique de Marseille, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Rúben Amorim (Sporting CP), Peter Bosz (Lyon) e Jorge Sampaoli (Marseille) deram, pelo menos, 20 minutos aos últimos jogadores que entraram nos jogos. No caso de Jocelyn Gourvennec (Lille), os últimos dois substitutos tiveram pouco mais de 10 minutos para jogar, enquanto Jorge Jesus (Benfica) e Sérgio Conceição (Porto) proporcionaram cerca de 5 minutos a Carlos Vinícius, Paulo Bernardo, Florentino Luís, Gedson Fernandes e Romário Baró. Note-se, por exemplo, que os três derradeiros elementos da lista foram recentemente vice-campeões europeus na categoria Sub-21. Se estes treinadores contam com os jogadores para a época, porque é que entraram tão tarde? Se não contam, porque renderam os colegas quase sem tempo para se adaptarem às circunstâncias situacionais do jogo e/ou gerir eventuais estados de fadiga dos jogadores substituídos?

Do ponto de vista estratégico-tático são alterações que não fazem muito sentido em contexto de pré-época. Porém, se nos debruçarmos exclusivamente sobre a gestão da individualidade e do grupo (i.e., preparação física, motivação, relações interpessoais), atrevo-me a escrever que, ao invés de acrescentarem algo de positivo, apenas causam mal-estar. Nenhum jogador gosta deste tipo de substituição, muito menos se se tratar de um jogo em pleno período preparatório. Quem comigo priva sabe que considero que os jogadores são os principais representantes e executores do modelo de jogo criado pela equipa técnica e do plano estratégico-tático engendrado para cada partida. A interpretação de princípios táticos e o desempenho eficaz de comportamentos individuais e coletivos são facilitados, não determinados, pela relação interpessoal que o(s) treinador(es) estabelecem com o(s) jogador(es). Não ser empático com outro ser humano gera uma barreira, que pode ser mais ou menos transponível consoante a capacidade de abstração e determinação do atleta, para a identificação, interpretação e aplicação de uma dada mensagem ou matéria. 

Não é a primeira vez, e duvido que seja a última, que Jorge Jesus recorre a este género de opções estratégicas. Não só provocam afastamento de jogadores tidos como “menos importantes”, como fomentam clivagens desnecessárias no seio do grupo. Quando o malogrado Vítor Oliveira (figura 5) foi há tempos questionado sobre o “segredo” para o seu estupendo sucesso na II Liga, o mister referiu a relação com os jogadores como um aspeto crucial: tratá-los a todos, sem exceção, como se fossem filhos, primando pela justiça e frontalidade. Justiça, porque o grupo é extremamente sensível às (in)justiças cometidas pelos treinadores; frontalidade, porque tudo o que se tem para expor deve ser feito na cara, sem rodeios, seja para elogiar, criticar construtivamente ou penalizar. Estando prestes a iniciar uma nova época desportiva em Portugal, e admitindo que em termos metodológico-estratégicos os treinadores dos "três grandes" possam estar equiparados, é na liderança, na comunicação e na gestão de grupo que as equipas técnicas podem marcar a diferença.

 

Figura 5. Homenagem a Vítor Oliveira no Estádio do Mar, em Leixões (fonte: record.pt).

 

As substituições constituem um fator explícito de gestão de grupo e liderança, e um fator implícito, mas potente, de comunicação para o grupo. Rúben Amorim é, na minha perspetiva, um líder muito mais assertivo neste âmbito que Jorge Jesus e Sérgio Conceição. Independentemente do investimento que possa ser realizado em contratações pelos três clubes mencionados, acredito que o Sporting CP parte na “pole position” para a época 2021/2022; se será o clube mais bem-sucedido ou não, só o tempo o dirá. 

Retornando às palavras de Manuel Sérgio, “não há chutos na bola, há Homens que chutam”. É tempo de deixar de lado estilos autoritários e diretivos mais tradicionais, e começar a envolver mais os nossos representantes nos processos de preparação e decisão para competição, incluindo a elaboração do plano de jogo. Equacionar diversos tipos de substituição em função de diferentes contextos situacionais (e.g., a vencer por 3–0 aos 45’, empatados aos 60’, a jogar “fora”) e discuti-los, aberta e democraticamente, com os jogadores, de maneira a utilizar as melhores ideias/soluções em jogo. Talvez possa parecer estapafúrdio, talvez alguns grupos não tenham maturidade para isso, talvez possa resultar e produzir efeitos positivos. Caberá a cada treinador perceber de que modo pode rentabilizar a massa humana, além da massa atlética, de um “todo” que se quer uma verdadeira “equipa”.