31/12/2024

Trends in Sport Sciences (Vol. 31, 2024) | Tendências temporais dos golos marcados por jogo nas principais ligas europeias: Uma análise de 3 décadas

O ano de 2024 foi marcado por um turbilhão de emoções – para mim e para a minha família. Altos e baixos constantes, marcados por tristeza, alegria, frustração, resiliência e muita, muita esperança. Ainda antes dos sobressaltos e em consequência da possível alteração da lei 11 do futebol – a famigerada lei do fora de jogo –, surgiu a ideia de estudar a evolução da média de golos por jogo das principais ligas europeias. 

Voltemos um pouco atrás: que alteração da lei do fora de jogo? Pois bem, há tempos, o ex-treinador e atual Chefe de Desenvolvimento Global do Futebol da FIFA, Arsène Wenger, propôs que a lei do fora de jogo fosse modificada. A ideia era que, se, no meio-campo ofensivo, alguma parte do corpo do atacante estivesse em linha com alguma parte do corpo do penúltimo defensor no momento do passe, este estaria em jogo. A lei 11 atual, no entanto, estipula que a parte mais adiantada do corpo do atacante (excluindo os membros superiores) deve estar, no máximo, em linha com a parte mais recuada do penúltimo defensor. 

A suposta alteração, atualmente em fase de testes, tem como objetivo, por um lado, facilitar a vida dos árbitros em campo e, por outro lado, tornar o jogo de futebol mais apelativo, ao contribuir – supõe-se – para a adoção de estilos de jogo mais ofensivos, com maior potencial para gerar golos. O processo de industrialização da modalidade, além de a querer tornar num produto diariamente consumível, visa também reforçar a questão da atratividade. Contudo, o que não consegui encontrar foi a resposta a uma questão tão simples quanto: “Como tem evoluído a média de golos por jogo nas principais ligas europeias nas últimas décadas?”. Este foi o ponto de partida para um novo artigo, publicado ontem, 30 de dezembro de 2024, na revista Trends in Sport Sciences (figura 1), que figura no quartil 3 da Scimago e apresenta um CiteScore 2023 de 1.6 na Scopus.

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo publicado na revista Trends in Sport Sciences.

 

Este trabalho envolveu a análise da média de golos marcados nas 7 principais ligas europeias de futebol (Premier League inglesa, LaLiga espanhola, Serie A italiana, Bundesliga alemã, Ligue 1 francesa, Eredivisie neerlandesa e Liga Portugal), ao longo das últimas 30 épocas (1994/1995 – 2023/2024), contabilizando-se 193.442 golos marcados em 71.499 jogos disputados neste período. A análise pretendeu responder a 3 questões-chave: (1) O número médio de golos marcados no futebol tem-se mantido estável ao longo das últimas décadas? (2) O número médio de golos por jogo nas últimas décadas difere significativamente entre as principais ligas europeias? (3) Que ligas se desviam da média europeia global?

 

1. O número médio de golos marcados no futebol tem-se mantido estável ao longo das últimas décadas?

Não, o número médio de golos marcados não se manteve estável. Identificaram-se correlações positivas e significativas entre o número de golos marcados por jogo e a época (tempo) na Premier League, Ligue 1, Bundesliga e na média global das 7 ligas. Foram observadas correlações fortes na Premier League, Ligue 1 e na média global, enquanto a correlação na Bundesliga foi moderada (figura 2). Curiosamente, em 3 das 7 ligas, o maior valor médio de golos por jogo foi registado na época mais recente da amostra (2023/2024), nomeadamente na Premier League (3,27), Bundesliga (3,22) e Liga Portugal (2,87). A média global também foi mais elevada nesta última época (2,94).

 

Figura 2. Evolução dos golos marcados por jogo nas 7 principais ligas europeias de futebol (1994/1995-2023/2024).

 

2. O número médio de golos por jogo nas últimas décadas difere significativamente entre as principais ligas europeias?

Sim, foram identificadas diferenças significativas entre as principais ligas europeias no número médio de golos por jogo. A Bundesliga (2,93) e a Eredivisie (3,07) apresentaram médias significativamente superiores às restantes ligas, com efeitos de grande dimensão. Contudo, a Eredivisie destacou-se com uma média de golos por jogo superior à da Bundesliga. Por outro lado, não se verificou uma diferença significativa entre as duas ligas com as médias de golos mais baixas: a Ligue 1 (2,46) e a Liga Portugal (2,52). Já a Premier League (2,69), a LaLiga (2,66) e a Serie A (2,67) não apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre elas, embora se tenham destacado significativamente de todas as outras.

 

3. Que ligas se desviam da média europeia global?

A Bundesliga (2,93) e a Eredivisie (3,07) apresentaram médias de golos por jogo significativamente superiores à média europeia global (2,71), com efeitos de grande dimensão. Por outro lado, a Ligue 1 (2,46) e a Liga Portugal (2,52) registaram médias significativamente inferiores, também com efeitos de grande magnitude. A Premier League, a LaLiga e a Serie A não se desviaram significativamente da média europeia.

 

Face a estas evidências, justifica-se alterar a lei 11 do futebol para aumentar a atratividade do jogo? 

O resumo original do estudo consta na Figura 3.

 

Figura 3. Abstract do estudo publicado na revista Trends in Sport Sciences.

 

De modo algum este texto ou o resumo substituem a leitura do artigo integral. Por isso, deixo-vos a referência do trabalho em baixo, cujo acesso é gratuito (open access). Acima de tudo, torço para que seja útil e interessante para a comunidade afeta ao futebol. 

Em 2025 por cá continuaremos, na tentativa de esclarecer outras curiosidades ou mitos. Boas entradas no Ano Novo para todos! 

 

Reference

Almeida, C. H. (2024). Temporal trends in goals scored per match across European soccer leagues: a three-decade analysis. Trends in Sport Sciences, 31(4), 245-254. https://doi.org/10.23829/TSS.2024.31.4-6

28/12/2024

Artigo do mês #60 – dezembro 2024 | O erro no tempo adicional no futebol está associado ao tipo de interrupção e à diferença de golos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

- 60 -

Autores: Li, Y., Weber, H., & Link, D.

País: Alemanha

Data de publicação: 2-dezembro-2024

Título: Additional time error in association football is associated with interruption type and goal difference

Referência: Li, Y., Weber, H., & Link, D. (2024). Additional time error in association football is associated with interruption type and goal difference. Science and Medicine in Football, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2435843

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 60 – dezembro de 2024.

 

Apresentação do problema

No Mundial da FIFA em 2022, os tempos adicionais foram significativamente mais longos que o habitual, frequentemente excedendo os 7 minutos e, por vezes, os 10 minutos. Segundo a OPTA, nos 2 primeiros dias do torneio, 5 partes já tinham batido recordes históricos. Este aumento deveu-se a uma ordem da FIFA para que os árbitros aplicassem com maior rigor as regras de compensação de tempo perdido. 

O International Football Association Board (IFAB) tem ajustado as regras de compensação de tempo perdido desde 1939/1940. Inicialmente vagas, estas regras foram especificadas em 1987/1988 para incluir substituições, avaliação de jogadores lesionados e perda de tempo. Em 2016/2017, foram adicionadas as paragens médicas e as sanções disciplinares, seguidas pelo VAR em 2018. Na versão 2023/2024, as celebrações de golo foram listadas como uma categoria separada (IFAB, 2023b). 

Durante o Mundial de 2022, estas regras foram aplicadas rigorosamente pela primeira vez. Registaram-se dados adicionais da partida, como o tipo, o início e o fim de todas as interrupções do jogo consideradas no cálculo do tempo adicional. A recolha desta informação foi executada pela Sportech Solutions Corp., sendo possível calcular o designado “Tempo Adicional Calculado” (Calculated Additional Time – CAT) através da soma aritmética de todas as interrupções, posteriormente sugerido ao árbitro. A Premier League adotou o mesmo mecanismo na temporada 2023/2024 (Kilpatrick, 2023). 

Na Bundesliga alemã, a Sportech Solutions Corp. recolheu o CAT durante a época 2022/2023, após o Mundial (segunda metade da temporada), utilizando o mesmo método aplicado no torneio, mas sem sugerir aos árbitros o tempo adicional a atribuir. Esta configuração ofereceu uma oportunidade única para investigar até que ponto os árbitros atribuem o tempo adicional de acordo com as regras e se estão, de alguma forma, enviesados neste processo. Para tal, foi introduzido um novo parâmetro chamado “Erro de Tempo Adicional” (Additional Time Error – ATE), definido como a diferença entre o CAT e o “Tempo Adicional Atribuído” (Awarded Additional Time – AAT) pelo árbitro. 

O tempo adicional é um elemento decisivo no futebol, representando até 12,2% dos golos marcados nas principais ligas europeias (Transfermarkt, 2024). Apesar dessa relevância, ainda não há estudos que analisem em profundidade o CAT e o ATE. Estudos anteriores sugerem que interrupções no jogo podem ser usadas como estratégia para perder tempo, levando a um tempo adicional atribuído frequentemente inferior ao necessário. Além disso, fatores como a presença do público da equipa da casa e a diferença de golos podem influenciar as decisões dos árbitros sobre o tempo adicional concedido (Augste & Cordes, 2016; Reade et al., 2022; Riedl et al., 2014). Contudo, as análises carecem de dados precisos sobre o CAT, essenciais para avaliar a aplicação rigorosa das Leis de Jogo. 

Este estudo pioneiro explora o CAT e o ATE no futebol, analisado 3 tópicos: (i) a prevalência do CAT por tipo de interrupção na Bundesliga; (ii) a relação entre CAT, tempo adicional concedido (figura 2) e ATE, verificando possíveis vieses associados ao tipo de interrupção; (iii) o impacto da diferença de golos no ATE, avaliando a influência sobre as decisões dos árbitros. Os resultados fornecem informações essenciais para as ligas e árbitros na aplicação e implementação das regras relativas ao tempo adicional no futebol.

 

Figura 2. Exemplo de tempo adicional concedido num jogo da Bundesliga (fonte: gettyimages.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Amostra: o estudo utilizou dados de todos os 153 jogos das jornadas 18–34 da temporada 2022/2023 da Bundesliga, na qual participaram 18 equipas e 25 árbitros. Cada árbitro concordou com a gravação em vídeo dos jogos e com a recolha de dados. 

Procedimentos: para cada jogo, foram analisadas todas as interrupções de jogo relevantes para o cálculo do tempo adicional, conforme as Leis de Jogo 2023/2024 (IFAB, 2023b). Os dados incluíram o tipo de interrupção (substituição, lesão, penálti, celebração de golo, sanção disciplinar, Árbitro Assistente de Vídeo (VAR), outras razões e causas múltiplas), o momento e a duração da ocorrência. A categoria “penálti” abrange a duração de discussões entre o árbitro e os jogadores, sem envolvimento do VAR. A categoria “causas múltiplas” foi usada para interrupções causadas por eventos simultâneos (e.g., lesão e substituição). Registaram-se também o “diferencial de golos da equipa da casa” (Home Goal Difference – HGD), correspondente à diferença de golos antes do tempo adicional da segunda parte, e o “Tempo Adicional Atribuído” (AAT) por período. O “Tempo Adicional Calculado” (CAT) foi obtido somando a duração das interrupções de jogo. Os dados foram recolhidos por observadores humanos profissionais e fornecidos pela Deutsche Fußball Liga. 

Análise estatística: a análise da distribuição das interrupções por tipo implicou que cada jogo constituísse uma unidade estatística. Foram reportados os valores médios absolutos (min:ss) e relativos (%) do CAT para os 8 tipos de interrupção, divididos por primeira parte, segunda parte e tempo total. A avaliação da influência do tipo de interrupção no tempo adicional atribuído (AAT) envolveu o cálculo do “Erro de Tempo Adicional” (ATE), i.e., a diferença entre o CAT e o AAT no tempo total. Regressões Lineares Múltiplas examinaram as relações entre os tipos de CAT e o AAT e o ATE. De forma a explorar se, e em que medida, a diferença de golos e a vantagem de jogar em casa influenciaram os árbitros, os jogos foram categorizados com base no diferencial de golos (HGD). O critério Goal Difference+ usou 5 categorias (>1, 1, 0, −1 e <−1), enquanto o Goal Difference# utilizou apenas duas: “Desequilibrado” (HGD > 1 ou HGD < −1) e “Equilibrado” (todos os restantes). Testes de Mann-Whitney U avaliaram o ATE em diferentes resultados dos jogos. Como jogos desequilibrados apresentaram mais golos (3,94 ± 1,74) do que os equilibrados (2,38 ± 1,46), foi feita uma análise adicional excluindo as celebrações de golos. Testes Kruskal-Wallis H identificaram o ATE em categorias de HGD, com comparações post hoc usando Dunn e ajuste de Bonferroni. A dimensão do efeito (η²) foi classificada como pequena (0,010 ≤ η² < 0,059), moderada (0,059 ≤ η² < 0,138) ou grande (η² ≥ 0,138) (Cohen, 1988). Os instrumentos utilizados foram o SPSS Statistics 25 e o Python 3.9.

 

Principais resultados

 

·     Estatística descritiva

Em média, os jogos da segunda metade da época da Bundesliga 2022/2023 apresentaram um “Tempo Adicional Calculado” (CAT) total de 9:22 ± 3:11, com um “Tempo Adicional Atribuído” (AAT) correspondente de 7:11 ± 2:27. As interrupções nos jogos (CAT = 6:23 ± 2:23) e o tempo adicional atribuído (AAT = 4:55 ± 1:52) foram significativamente mais elevados na segunda parte, comparativamente à primeira (CAT = 2:58 ± 2:09, AAT = 2:15 ± 1:28). O “Erro de Tempo Adicional” (ATE) médio foi de 2:10 ± 2:24 minutos no tempo total, com 0:42 ± 1:22 minutos na primeira parte e 1:28 ± 1:57 na segunda parte.

 

·     Prevalência do Tempo Adicional Calculado (CAT) por tipo de interrupção

Considerando o tempo total de jogo, os tipos de interrupção que mais contribuíram para o CAT foram as substituições (28,17%), as celebrações de golo (24,33%) e causas múltiplas (22,97%). Exclusivamente na primeira parte, foram as celebrações de golo (40,49%), as lesões (25,13%) e as causas múltiplas (18,76%), enquanto na segunda parte foram as substituições (41,76%), as causas múltiplas (23,75%) e as celebrações de golo (17,64%).

 

·     Relação entre o tipo de interrupção e o Tempo Adicional Atribuído (ATT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE) para o jogo inteiro

O tempo associado a lesões esteve significativamente relacionado com o AAT e o ATE. As substituições e a intervenção do VAR também afetaram significativamente o AAT, mas não tiveram impacto significativo no ATE. Por outro lado, as celebrações de golos influenciaram significativamente o ATE, mas não o AAT. Já os penáltis e as sanções disciplinares foram 2 tipos de CAT que não afetaram o AAT, embora estivessem consideravelmente associados ao ATE.

 

·     Distribuição do Erro de Tempo Adicional (ATE) em função da diferença de golos

O ATE foi significativamente maior em jogos desequilibrados (imbalanced) em comparação com jogos equilibrados (close), com um efeito de grande magnitude (Figura 3a). No teste adicional, que excluiu as celebrações de golos, o ATE manteve-se significativamente maior em jogos desequilibrados, embora com uma dimensão de efeito pequena. Os resultados também mostraram um ligeiro viés a favor da equipa da casa, uma vez que o ATE foi mais elevado quando a equipa da casa estava em vantagem (diferença de golos > 1; Figura 3b).

 

Figura 3. Erro de Tempo Adicional (ATE) agrupado por diferença de golos# (parte A) e diferença de golos+ (parte B) (golos da equipa da casa – golos da equipa visitante). ES refere-se à dimensão do efeito, e * indica diferenças significativas. O ATE em jogos desequilibrados (imbalance) foi significativamente maior do que em jogos equilibrados (close), indicando um viés dos árbitros ao alocar menos tempo adicional em jogos já decididos. Mais concretamente, a parte B mostra um ATE significativamente mais elevado quando a equipa da casa lidera por mais de 1 golo, em comparação com HGD = 1, 0 e −1. Além disso, o ATE médio foi menor quando a equipa da casa estava a perder por apenas 1 golo, o que sugere um ligeiro viés a favor dos visitados.

 

Aplicações práticas

Uma potencial melhoria na formação dos árbitros e nos processos de tomada de decisão, incluindo uma maior consciência na atribuição do tempo adicional, pode beneficiar substancialmente o jogo de futebol. Até a literatura científica demonstra que as equipas utilizam interrupções de jogo para fins estratégico-táticos (Augste & Cordes, 2016), como a perda de tempo (Morgulev & Galily, 2019). Neste contexto, o aperfeiçoamento do cálculo do tempo adicional pode garantir que os jogos tenham uma duração mais justa, desencorajando as equipas de provocarem conflitos desnecessários, forçarem lesões ou prolongarem excessivamente as celebrações de golos. Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas que poderão ser exploradas no futuro para adequar o tempo adicional mínimo concedido às incidências de cada partida:

 

1. Adotar a sugestão de Tempo Adicional Calculado (CAT) para maior justiça competitiva: a utilização do CAT sugerido por fornecedores de dados dos jogos, como a OPTA, seguindo o exemplo do Campeonato do Mundo FIFA 2022, pode assegurar que o tempo adicional reflita com maior precisão o tempo perdido durante as interrupções. Esta abordagem ajudaria a reduzir jogos com menos de 45 minutos de tempo útil e a promover maior equidade competitiva. No entanto, a implementação deve ser precedida de uma avaliação cuidadosa, tendo em conta as perceções dos adeptos, que manifestaram críticas aos tempos adicionais prolongados no último Mundial. 

2. Aperfeiçoar a formação de árbitros para contabilização justa das interrupções: os resultados mostram que o tipo de interrupção afeta o Tempo Adicional Atribuído (AAT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE). Embora as substituições e as intervenções do VAR sejam bem contabilizadas, interrupções como lesões e celebrações de golo são frequentemente subestimadas. É fundamental que os árbitros avaliem a duração e o impacto de todas as interrupções, especialmente agora que estas estão mais detalhadas nas Leis de Jogo. Os programas de formação devem enfatizar a importância de contabilizar cada interrupção com precisão, garantindo que o tempo adicional reflete fielmente os acontecimentos em campo. 

3. Sensibilizar os árbitros para decisões justas independentemente das dinâmicas situacionais: os dados sugerem que o Erro de Tempo Adicional (ATE) é maior em jogos decididos. Os árbitros tendem a atribuir menos tempo adicional nestas situações, possivelmente devido a um viés consciente ou inconsciente. Embora as Leis do Jogo (IFAB, 2023b) concedam aos árbitros poder discricionário para gerir estas situações – a designada “lei do bom senso” –, finalizar jogos desequilibrados mais cedo pode ser mal interpretado. Também foi observado que os árbitros atribuem tempos adicionais mais adequados quando a equipa da casa ainda pode empatar, o que reflete uma ligeira tendência a favor da equipa da casa. Recomenda-se que o treino dos árbitros inclua estratégias para aumentar a precisão das decisões relativas ao tempo adicional, quer em contextos de resultados desequilibrados, como ao equacionar o “fator casa”.

 

Conclusão

O estudo explorou o Tempo Adicional Calculado (CAT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE) na Bundesliga alemã. Verificou-se que os árbitros frequentemente atribuem menos tempo adicional do que o sugerido pelas Leis de Jogo. Na alocação desse tempo, priorizam interrupções como lesões, intervenções do VAR e substituições, mas subestimam as celebrações de golo, apesar de estas contribuírem significativamente para o tempo total de interrupções. Houve uma tendência para atribuir menos tempo adicional em jogos com uma diferença de golos superior a um no final do tempo regulamentar. Por outro lado, quando a equipa da casa estava a perder por um golo, o tempo adicional foi ligeiramente mais adequado, indiciando um ligeiro viés a favor da equipa da casa. Estes resultados destacam a importância de melhorias na formação dos árbitros e nos seus processos de tomada de decisão.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

30/11/2024

Artigo do mês #59 – novembro 2024 | Sessões de treino compensatórias; será que compensam mesmo?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 59 -

Autores: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J.

País: Espanha

Data de publicação: 4-novembro-2024

Título: Compensatory training sessions, do they really compensate?

Referência: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J. (2024). Compensatory training sessions, do they really compensate? International Journal of Sports Science & Coaching, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241287914

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 59 – novembro de 2024.

 

Apresentação do problema

O conhecimento sobre as cargas externas no microciclo competitivo tem evoluído significativamente. Os estudos mostram que os jogos oficiais representam a maior parte da carga semanal, diferenciando-se claramente das sessões de treino (Kelly et al., 2020; Stevens et al., 2017). Os jogadores com menos minutos acumulam menor atividade semanal, especialmente em ações de alta velocidade e sprint, com maior impacto em semanas de alta densidade competitiva (Casamichana et al., 2022; Gualtieri et al., 2020). Assim, encontrar formas de estimular jogadores com baixa participação nos jogos oficiais tornou-se uma preocupação central para treinadores e investigadores. 

A investigação científica tem analisado as cargas externas no treino compensatório do microciclo (MD+1, ou seja, treino após o dia de jogo) para jogadores com menos minutos em competição. Martín-García et al. (2021) observaram que estas sessões atingem mais de 50% da carga do jogo em variáveis como a distância total percorrida, a potência metabólica média e as acelerações/desacelerações (>3 m/s2), mas apenas 20% na distância em alta velocidade (>19,8 km/h) e em sprint (>25,2 km/h). Calderón-Pellegrino et al. (2022) destacaram que estas sessões não replicam as exigências dos titulares, sobretudo na distância em sprint (>24,0 km/h). 

A comparação das cargas externas entre diferentes equipas dentro de uma estrutura profissional de futebol tem despertado interesse na literatura científica, mediante a análise das cargas acumuladas em sessões e microciclos por diferentes equipas (Calderón-Pellegrino et al., 2022; Martin-Garcia et al., 2018). Assim, Kavanagh et al. (2024) observaram recentemente que a carga externa semanal acumulada foi maior em semanas com 1 jogo na equipa principal em comparação com a equipa de reservas. Por outro lado, Houtmeyers et al. (2021) descreveram que, enquanto as cargas semanais a baixa velocidade foram mais elevadas nos jogadores de elite jovens, a intensidade e a variabilidade de carga tendem a aumentar quando esses jogadores transitam para o futebol profissional. A compreensão destas dinâmicas da carga externa pode favorecer a progressão dos jogadores entre equipas e facilitar a sua integração nos treinos de outras equipas do mesmo clube. 

Contudo, existe pouca informação sobre a atividade realizada pelos jogadores neste tipo de sessão (MD+1; Figura 2) e ainda menos sobre os padrões de carga entre diferentes equipas no seio do mesmo clube de futebol. Posto isto, o objetivo deste estudo foi comparar a carga externa acumulada por jogadores pertencentes a 3 equipas do mesmo clube profissional na sessão de treino compensatório, expressando-a tanto em valores absolutos como em valores relativos às exigências do jogo.

 

Figura 2. Proposta de treino compensatório (fonte: https://isspf.com; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Abordagem experimental: foram analisados 191 registos de sessões compensatórias realizadas por 3 equipas de um clube profissional na época 2019/2020. Estas sessões, executadas no dia seguinte aos jogos oficiais (MD+1), foram desenhadas para simular as exigências competitivas. Somente participaram os jogadores de campo que não foram titulares ou jogaram menos de 60 minutos no encontro anterior, com o objetivo de replicar, de forma aproximada, as cargas físicas do jogo. 

Participantes: 51 jogadores de 3 equipas de um clube profissional: equipa principal (PRO, n = 16; 24,5 ± 3,5 anos; 180,6 ± 6,7 cm; 75,1 ± 5,7 kg), equipa de reservas (RES, n = 15; 21,3 ± 1,1 anos; 179,5 ± 7,1 cm; 72,5 ± 6,4 kg) e segunda equipa de reservas (RES2, n = 20; 19,7 ± 0,9 anos; 177,9 ± 5,1 cm; 70,7 ± 6,3 kg). Os guarda-redes foram excluídos devido à especificidade da posição. A equipa PRO competiu na primeira divisão espanhola (La Liga), a RES na terceira divisão e a RES2 na quarta divisão. Os dados foram recolhidos no âmbito da avaliação diária como condição de trabalho dos jogadores. 

Variáveis: as sessões de treino compensatório foram monitorizadas com dispositivos MEMS, analisando-se 10 variáveis: duração total (min), distância total percorrida (TD, m), distâncias percorridas a velocidades moderada (TD14: >14 km/h), alta (TD18: >18 km/h), muito alta (TD21: >21 km/h) e sprint (TD24: >24 km/h), carga de aceleração (aLoad, AU), número de acelerações (>2 m/s²) e desacelerações (<-2 m/s²), e carga do jogador (Player Load – PL, AU). As variáveis foram obtidas via GPS e acelerómetros, seguindo limiares de intensidade de estudos prévios (e.g., Guridi Lopategui et al., 2021). A variável aLoad soma todas as acelerações e desacelerações positivas, refletindo as exigências totais de aceleração, independentemente da velocidade. A PL combina acelerações nos 3 planos de movimento, sendo fiável e validada para monitorizar a carga em jogadores de futebol (Casamichana et al., 2013). 

Procedimentos: a investigação foi executada na primeira metade da época 2019/2020. As 189 sessões de treino compensatório analisadas ficaram assim distribuídas pelas 3 equipas: PRO = 80, RES = 52 e RES2 = 57.  Estas sessões foram realizadas no dia seguinte ao jogo oficial, envolvendo jogadores que jogaram menos de 60 minutos. A carga externa foi monitorizada com dispositivos MEMS (Vector S7 e X7), e os dados, processados no software Catapult OpenField, garantiram elevada precisão. Para comparar com a carga dos jogos, estimaram-se os valores para os jogadores que não completaram as partidas: menos de 70 minutos baseados na média da posição e mais de 70 minutos extrapolados para 94 minutos. As cargas foram expressas em valores absolutos e relativos (%) em relação à média dos jogos oficiais. 

Análise estatística: os dados foram apresentados através de média, desvio padrão e intervalo (mínimo e máximo), em valores absolutos e relativos (em relação ao jogo). As diferenças entre as equipas foram avaliadas através de ANOVA de uma via. Também foram calculadas as dimensões de efeito mediante o d de Cohen, considerando os intervalos seguintes: trivial <0,2; pequeno >0,2; moderado >0,6; grande >1,2; e muito grande >2,0 (Hopkins et al., 2009). As análises estatísticas foram realizadas no software JASP, versão 0.18.1 para Windows, adotando-se um nível de significância de p < 0,05.

 

Principais resultados

 

· Estatísticas descritivas das variáveis de carga externa de treino nos dias compensatórios por equipa (PRO, RES e RES2)

Os dias compensatórios apresentaram diferenças significativas entre as equipas (PRO, RES e RES2) em diversas variáveis de carga externa. As principais observações incluem:

 

1. Duração (DUR): as equipes RES e RES2 apresentaram maior duração média de treino em comparação à PRO, com diferenças estatisticamente significativas;

2. Cargas absolutas (PL e aLoad): os valores de carga absoluta (PL) e carga acumulada (aLoad) foram significativamente maiores para as equipas RES e RES2 em relação à PRO;

3. Distâncias totais (TD e respetivos patamares de velocidade): a equipa RES percorreu as maiores distâncias totais (TD) e em velocidades altas (TD14 e TD18), enquanto a equipa PRO apresentou valores significativamente inferiores;

4. Acelerações e desacelerações (ACC e DEC): houve um número mais reduzido de desacelerações (DEC) nas equipas RES e RES2 em comparação à PRO, indicando padrões distintos de trabalho de intensidade entre os conjuntos;

5. Diferenças não significativas: algumas variáveis, como TD21, não apresentaram diferenças significativas entre as equipas.

 

·   Magnitude das diferenças entre as equipas para cada variável de carga externa

Os tamanhos do efeito das diferenças entre as equipas para cada uma das variáveis de treino relacionadas com os jogos demonstraram magnitudes mais pronunciadas nas variáveis associadas ao volume (DUR%, PL%, aLoad% e TD%), com a equipa PRO a apresentar consistentemente os valores mais baixos.

 

·  Valores relativos (%) da carga de treino compensatório em relação à carga do jogo oficial para cada equipa.

A Figura 3 expõe o perfil da carga dos treinos compensatórios relativamente à carga obtida nos jogos oficiais das 3 equipas. 


Figure 3. Médias e desvios padrão das variáveis relativas (%) em relação à carga de treino em dias compensatórios para cada equipa. Nota: DUR% refere-se à duração total, aLoad% é a carga total de aceleração, PL% é a carga do jogador, TD% é a distância total percorrida, TD14% é a distância percorrida a >14 km/h, TD18% é a distância percorrida a >18 km/h, TD21% é a distância percorrida a >21 km/h, TD24% é a distância percorrida a >24 km/h, e ACC% e DEC% referem-se ao número de acelerações (>2 m/s2) e desacelerações (<-2 m/s2), todas as variáveis relativas ao jogo. PRO corresponde à equipa profissional, RES à equipa de reservas e RES2 à segunda equipa de reservas. (a) indica >PRO, (b) indica >RES e (c) indica >RES2 com p < 0,05.

 

Nas variáveis DUR%, PL%, TD% e TD14%, foram encontradas diferenças significativas entre todas as equipas. Além disso, na variável ACCLoad%, as equipas RES e RES2 exibiram percentagens superiores à PRO. Para a variável TD18%, a equipa RES apresentou valores relativos superiores à RES2, que, por sua vez, exibiu valores superiores à PRO. As equipas RES e RES2 também apresentaram valores superiores à PRO na variável ACC%. Por fim, na variável DEC%, a equipa PRO demonstrou percentagens significativamente superiores à RES.

 

Aplicações práticas

A partir dos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas propícias para auxiliar os treinadores na otimização do treino compensatório, particularmente destinado a jogadores com menos minutos de competição. Estas recomendações concentram-se em estratégias para melhorar a condição física, equilibrar as cargas neuromusculares e garantir uma preparação mais consentânea com as exigências competitivas. 

1. Estimular níveis competitivos em jogadores menos utilizados: as variáveis de carga externa oscilaram entre 30–90% do observado em competição, situando-se maioritariamente entre 50–60% das exigências do jogo oficial, enquanto valores mais altos foram registados nas ações de aceleração e desaceleração. Para preparar jogadores menos utilizados, os treinadores devem integrar jogos particulares ou simulados, especialmente em equipas de reserva ou formação, onde há maior disponibilidade de jogadores. 

2. Estratégias eficientes para o treino compensatório: os jogos reduzidos/condicionados sobrecarregam a dimensão neuromuscular e subestimam aspetos como o pico de velocidade. Assim, o treino intervalado de sprint e de resistência de velocidade deve ser implementado para maximizar a condição física em cenários com menos jogadores ou tempo limitado. A exposição semanal à corrida de alta velocidade, como sprints, pode melhorar o desempenho e reduzir a incidência de lesões, sendo uma estratégia essencial para os jogadores pouco utilizados. 

3. Corrigir o desequilíbrio entre ações de aceleração e desaceleração em treinos compensatórios: as sessões de treino compensatório apresentaram uma maior frequência de acelerações em comparação com as desacelerações, tanto em número absoluto como em percentagem das exigências competitivas. Este desequilíbrio pode limitar o desenvolvimento equilibrado das capacidades neuromusculares dos jogadores. Assim, além da utilização de jogos reduzidos/condicionados para estimular acelerações, é essencial integrar exercícios como corrida intervalada com mudanças bruscas de direção e desacelerações progressivas após sprints, por forma a garantir uma preparação mais completa e alinhada com as exigências do jogo.

 

Conclusão

Este estudo comparou as cargas externas acumuladas em sessões de treino compensatório de 3 equipas de um clube profissional de futebol. As equipas de reserva apresentaram cargas absolutas e relativas superiores à equipa principal, com destaque para ações de aceleração e desaceleração. Contudo, observou-se um desequilíbrio entre acelerações e desacelerações, bem como uma sub-representação de ações em alta velocidade e sprint em relação às exigências do jogo oficial. Estes resultados sugerem que os treinos compensatórios devem ser ajustados para replicar mais fielmente as condições de competição, integrando exercícios de sprint e mudanças de direção. A aplicação prática destas evidências poderá melhorar a preparação de jogadores com menos minutos e reduzir o risco de lesões em contexto competitivo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

30/10/2024

Artigo do mês #58 – outubro 2024 | Explorando as práticas de tomada de decisão em sessões de treino no futebol infantojuvenil de base

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 58 -

Autores: Roca, A., Pocock, C., & Ford, P. R.

País: Inglaterra

Data de publicação: 4-setembro-2024

Título: Exploring decision-making practices during coaching sessions in grassroots youth soccer: a mixed-methods study

Referência: Roca, A., Pocock, C., & Ford, P. R. (2024). Exploring decision-making practices during coaching sessions in grassroots youth soccer: a mixed-methods study. Science and Medicine in Football, 1–8. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2399011

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 58 – outubro de 2024.

 

Apresentação do problema

Uma questão fundamental que tem captado a atenção de investigadores e profissionais é a otimização das atividades e dos ambientes de treino para melhorar a capacidade dos jovens jogadores em antecipar e tomar decisões eficazes (Williams & Jackson, 2019). Os estudos sugerem que o desenvolvimento das competências associadas à “inteligência de jogo” depende, em grande parte, da participação em atividades cuja estrutura subjacente é semelhante ou idêntica à do jogo (Roca et al., 2012; Miller et al., 2017; Roberts et al., 2020; Coutinho et al., 2023). Diversas recomendações teóricas e científicas têm sido adiantadas para otimizar estas atividades (Pinder et al., 2011; Hodges & Lohse, 2022). Como parte desse processo, os investigadores têm procurado compreender as estruturas de treino e a pedagogia empregue nas sessões de treino (e.g., Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013; O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020). 

A abordagem utilizada para investigar a microestrutura das sessões de treino baseia-se na observação sistemática, onde os investigadores analisam e categorizam o tempo que os jogadores passam em diferentes tipos de atividades e os comportamentos dos treinadores (e.g., Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013). As atividades dividem-se geralmente em duas categorias: (1) atividades de jogo, onde os jogadores interagem com adversários e colegas de equipa, como os jogos reduzidos; (2) atividades de exercício, onde se praticam habilidades motoras com a bola sem adversários e, por vezes, sem companheiros de equipa. Algumas definições fazem uma distinção entre atividades com e sem tomada de decisão ativa (e.g., Roca & Ford, 2020). 

Estudos prévios no futebol (Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013) observaram que jovens jogadores passam uma parte significativa do tempo em atividades de exercício, em vez de atividades baseadas no jogo. Ford et al. (2010) avaliaram as atividades de treino de 25 treinadores e descobriram que os jogadores de grupos etários mais jovens passavam 62% do tempo em exercícios. Os autores levantaram preocupações sobre este desequilíbrio, pois argumentaram que, devido ao menor envolvimento de processos de tomada de decisão, estas atividades poderiam prejudicar a aquisição de habilidades e sua transferência para o jogo competitivo. Recomendaram, então, aumentar o tempo dedicado a atividades baseadas no jogo, mais alinhadas com as exigências do competição (Miller et al., 2017; Roberts et al., 2020). 

Em investigações mais recentes (Ford & Whelan, 2016; O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020), verificou-se uma mudança, com treinadores de crianças mais habilidosas a recorrerem mais frequentemente a atividades baseadas no jogo do que a exercícios (figura 2). Ford e Whelan (2016) analisaram 16 sessões de treino em jogadores Sub-9 a Sub-11 de academias de elite em Inglaterra, revelando que 63% do tempo foi dedicado a atividades de jogo, 20% a exercícios e 17% em transições. Na Austrália, O’Connor et al. (2018) descobriram que, em 40 sessões de treino com jogadores Sub-11 a Sub-13 mais evoluídos, 45% do tempo foi dedicado a atividades de jogo e 20% a exercícios. Contudo, para jogadores principiantes ou de base, as atividades de jogo podem ser mais desafiantes, o que suscita a questão de se estas tarefas são apropriadas para esta população (Larkin et al., 2022).

 

Figura 2. Crianças a praticar atividades com tomada de decisão ativa, no caso jogos reduzidos (imagem não publicada pelos autores).

 

Embora a investigação sobre a microestrutura das atividades de treino tenha proporcionado alguma compreensão sobre as estruturas específicas que os treinadores utilizam, é crucial entender as intenções dos treinadores ao escolherem determinadas práticas (Roca & Ford, 2020; Williams & Hodges, 2023). Para tal, é necessário investigar não apenas as estruturas de treino, mas também os fatores que influenciam as decisões dos treinadores (Partington & Cushion, 2013; Ford & Whelan, 2016). O presente estudo combinou entrevistas pós-sessão com observação sistemática para examinar o “como” e o “porquê” da seleção das estruturas de treino no futebol infantojuvenil de base, ao contrário de estudos anteriores que realizaram entrevistas após blocos de sessões (Ford & Whelan, 2016). 

Tradicionalmente, os treinadores de futebol iniciam as sessões com atividades de exercício, culminando com jogos de posse de bola ou jogos reduzidos/condicionados (Williams & Hodges, 2005; Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013; O’Connor et al., 2018). A razão hipotética para este design é que, para adquirir habilidades, a dificuldade do jogo deve ser reduzida, removendo adversários e/ou companheiros de equipa para praticar competências motoras com a bola (passe, receção, drible, remate, etc.). A ideia é que, uma vez dominada a habilidade, os jogadores possam aplicá-la em atividades de jogo contra adversários (Ford et al., 2010). Apesar disso, esta justificação raramente foi avaliada diretamente com os treinadores. Neste contexto, foi empregue uma abordagem de métodos mistos, combinando observações sistemáticas com entrevistas reflexivas realizadas em campo após as sessões, por forma a examinar as atividades de treino e a sua sequência ao longo da sessão, tal como implementadas por treinadores de futebol de formação de base.

 

Métodos

Participantes: 12 treinadores de futebol masculino, a trabalhar com grupos de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes na área de Londres. Os critérios de inclusão foram: treinar atualmente no nível de base; trabalhar com crianças com menos de 11 anos; ter experiência relevante em treino de jovens; e possuir pelo menos uma qualificação FA Nível 1. A média de idades foi de 31 ± 8 anos, com 7 ± 5 anos de experiência de treino e possuíam qualificações desde o FA Nível 1 até à Licença UEFA B. Para manter o anonimato, foram usados pseudónimos e os clubes específicos não foram mencionados. 

Procedimentos: o procedimento de cada sessão consistiu na observação sistemática das atividades e numa breve entrevista de campo com cada treinador, realizada após a sessão.

 

·     Observação sistemática

Foram gravadas 35 sessões de treino de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes durante 3 meses, utilizando uma câmara digital, e a meio da semana, para evitar treinos específicos de preparação ou reflexões pós-jogo (Roca & Ford, 2020). As atividades de treino foram classificadas com base num sistema refinado que divide as atividades em tomada de decisão ativa e não ativa. A tomada de decisão ativa envolve atividades que simulam situações de jogo com decisões baseadas nos movimentos de adversários e colegas de equipa (e.g., jogos reduzidos, posse de bola), enquanto a não ativa inclui práticas sem oposição realista (ex.: técnica, habilidades motoras). Uma terceira categoria abrange transições e pausas (tabela 1).

 

Tabela 1. Categorias e definições das atividades relacionadas com a prática de futebol utilizadas no estudo (refinado de Roca & Ford, 2020).

 

·     Entrevistas

Além da observação sistemática, cada treinador participou numa breve entrevista pós-sessão para refletir sobre o treino. Todos os treinadores foram questionados sobre o objetivo das suas sessões, com a pergunta aberta “qual foi o objetivo do treino de hoje?”, sendo feitas perguntas adicionais caso necessário (Robinson 2023). A observação sistemática gerou dados quantitativos, enquanto as entrevistas forneceram uma análise mais profunda sobre as intenções dos treinadores (Ford et al. 2010; Partington & Cushion 2013). A duração média das entrevistas foi de 5 ± 2 minutos.

 

·     Rigor metodológico

A fiabilidade inter e intra-observador foi avaliada em 4 sessões de treino, com concordância de 91,7% e 94,5%, respetivamente, excedendo o limite crítico de 85% recomendado por van der Mars (1989). A percentagem de concordância foi usada em vez de Kappa de Cohen, com base nas recomendações de McHugh (2012). Para as entrevistas, utilizou-se amostragem intencional com critérios específicos, como treinar atualmente grupos de Sub-9 a Sub-11 no nível de base, para garantir a adequação dos participantes observados.


Análise dos dados: a análise foi subdividida em observação sistemática e entrevistas.

 

·     Dados da observação sistemática

Os dados foram normalizados, calculando-se a percentagem de tempo em que os jogadores participaram nas categorias de tomada de decisão ativa e não ativa. As sessões foram divididas em duas metades iguais para analisar a organização sequencial. Devido à interdependência entre atividades, foi realizado um teste t para comparar a percentagem de tempo dedicado à tomada de decisão ativa entre a primeira e a segunda metade da sessão. Foram calculadas estatísticas descritivas e o tamanho de efeito de Cohen’s d para as subatividades em cada categoria. O nível de significância foi definido em p < 0.05 (Field, 2018; Ford et al., 2010).

 

·     Dados das entrevistas

Os dados das entrevistas foram analisados utilizando uma combinação de métodos indutivos e dedutivos de análise temática (Braun & Clarke, 2021). A análise temática reflexiva, em duas fases, organizou os dados em atividades de tomada de decisão ativa e não ativa (Braun & Clarke, 2019). Os temas secundários foram desenvolvidos indutivamente para identificar os objetivos das sessões de treino. Os coautores atuaram como “amigos críticos”, ajudando a verificar e refinar os temas durante a análise dos dados (Smith & McGannon, 2018).

 

Principais resultados

 

·     Observação sistemática

As 35 sessões de treino de futebol tiveram uma duração média de 86 minutos. Globalmente, as atividades de tomada de decisão ativa representaram 41% da sessão, as de tomada de decisão não ativa somaram 42%, e os restantes 17% foram atribuídos a atividades de transição. 

Observou-se uma diferença significativa no tempo dedicado às atividades de decisão ativa entre as duas metades da sessão (figura 3): a segunda metade da sessão apresentou mais tempo em atividades de decisão ativa (66%) do que a primeira metade (16%). Em contrapartida, a primeira metade registou mais atividades de decisão não ativa (64%) do que a segunda metade (19%). Com exceção de 2 treinadores, os restantes propuseram entre 30% e 50% de atividades com tomada de decisão ativa nas sessões.

 

Figura 3. Médias e desvios-padrão da percentagem de tempo dedicado a atividades com tomada de decisão ativa e não ativa durante a primeira e a segunda metade da sessão de treino (Roca et al., 2024).

 

Atividades de Tomada de Decisão Ativa

O tempo dedicado a jogos reduzidos e condicionados (25%) foi significativamente superior ao das outras subatividades de decisão ativa (3 a 5%). Observou-se que a maior parte do tempo em jogos reduzidos e condicionados ocorreu na segunda metade da sessão (43%).

 

Atividades de Tomada de Decisão Não Ativa

O tempo das atividades de decisão não ativa, incluindo exercícios de preparação física, treino técnico isolado e exercícios baseados em habilidades, variou entre 11% e 16% da duração total da sessão. Estas atividades concentraram-se sobretudo na primeira metade da sessão, representando 64% do tempo desse bloco inicial.

 

·     Entrevistas 

A figura 4 apresenta o mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para as sessões de treino. Os objetivos dos treinadores foram codificados em 2 temas de ordem superior: tomada de decisão ativa e tomada de decisão não ativa.

 

Figura 4. Mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para as sessões de treino.

 

Atividade de Tomada de Decisão Ativa

A tomada de decisão ativa foi definida como atividades em pequenos grupos ou equipas, como jogos reduzidos e condicionados. Os treinadores usaram estas atividades para melhorar o desempenho em situações de 1v1. Como explicou o Treinador 6:

 

O próximo exercício foi 1v1 e 2v2, para ver se os jogadores conseguem ser mais rápidos com a bola e decidir se avançam sozinhos ou em combinação com um colega.

 

Também foram utilizados jogos condicionados para desenvolver o jogo de posse de bola, como destacou o Treinador 3:

 

A segunda atividade foi um jogo condicionado com limitações para encorajar os jogadores a jogar desde trás e tentar criar oportunidades de golo.

 

No final das sessões, geralmente, os treinadores recorriam a jogos reduzidos para aplicar as habilidades praticadas, como reflete o Treinador 9: “Terminámos com um jogo reduzido para incorporar todas as habilidades aprendidas no jogo”. Este tipo de atividades procura simular cenários reais de jogo, ajudando os jogadores a desenvolver as habilidades treinadas no início da sessão.

 

Aplicações práticas

Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas que podem ser aproveitadas pelos treinadores para melhorar a eficácia dos treinos e o desenvolvimento de habilidades nas crianças. Estas recomendações visam otimizar o design das atividades de treino, ajustando o nível de dificuldade e, sobretudo, incentivando a tomada de decisão ativa.

 

1. Ampliar a exposição a atividades com tomada de decisão ativa para maximizar a transferência de habilidades: sempre que possível, os treinadores devem incluir atividades que exijam tomada de decisão ativa, envolvendo oposição, como jogos reduzidos/condicionados e jogos pré-desportivos. Estas atividades permitem que os jogadores pratiquem habilidades em contextos semelhantes ao jogo real, facilitando a aplicação das competências adquiridas em situações competitivas. Para jogadores menos experientes, sugere-se uma introdução gradual de oponentes, ajustando a complexidade da tarefa para evitar sobrecarga e garantir um ambiente de aprendizagem eficaz. 

2. Estruturar a sessão de treino para facilitar a aquisição técnica: a exemplo dos treinadores participantes no estudo, as sessões podem iniciar com atividades com tomada de decisão não ativa, como exercícios técnicos sem oposição, para que os jogadores adquiram habilidades motoras sem a pressão de adversários. Ao longo da sessão, gradualmente introduzir atividades com tomada de decisão ativa, como jogos reduzidos, permitindo que as ações técnicas sejam aplicadas em cenários mais próximos ao jogo real. Esta sequência evita a sobrecarga mental e favorece a retenção da técnica em contextos competitivos. 

3. Incorporar abordagens baseadas em evidências na conceção das atividades de treino: para incentivar o uso de práticas eficazes, recomenda-se que os treinadores explorem versões simplificadas de abordagens teórico-científicas, como o modelo baseado no desafio (Hodges & Lohse, 2022) e a abordagem baseada nos constrangimentos (Renshaw et al., 2010). Estas metodologias permitem ajustar a dificuldade das atividades às capacidades das crianças, mantendo a tomada de decisão ativa. Seria ideal que as entidades formadoras incluíssem exemplos práticos destas abordagens nos cursos de formação de treinadores, oferecendo ferramentas que estimulem a aquisição de habilidades e a sua transferência para o jogo. A colaboração entre especialistas em desenvolvimento e aprendizagem motora e formadores de treinadores é fundamental para tornar estas metodologias mais acessíveis e aplicáveis no treino de futebol de base.

 

Conclusão

Este estudo investigou as atividades de treino utilizadas por treinadores de futebol infantojuvenil em Inglaterra, bem como as suas intenções. Os autores verificaram que os treinadores dedicam tempos semelhantes a atividades que envolvem tomada de decisão ativa e não ativa, com o restante tempo alocado a transições entre atividades. Foi identificado um padrão claro de sequência nas sessões, começando com atividades com tomada de decisão não ativa na primeira metade e passando para atividades de decisão ativa na segunda, seguindo uma abordagem tradicional no treino de jovens jogadores. Os treinadores enfatizaram que as práticas de decisão não ativa são essenciais para o desenvolvimento da “técnica”, que poderá ser aplicada no jogo, embora esta perceção possa divergir do entendimento científico atual.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.