31/01/2025

Artigo do mês #61 – janeiro 2025 | Atualização sobre a evolução do Campeonato do Mundo da FIFA: futebol masculino e feminino

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Norton, K.

País: Austrália

Data de publicação: 8-dezembro-2024

Título: Update on the evolution of World Cup soccer: men and women

Referência: Norton, K, (2024). Update on the evolution of World Cup soccer: men and women. International Journal of Performance Analysis in Sport, 1–14. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24748668.2024.2436276

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 61 – janeiro de 2025.


Apresentação do problema

Raros são os estudos que analisaram a evolução dos desportos de invasão ao longo do tempo, devido à falta de tecnologias adequadas até ao início do século XXI (Norton et al., 1999; Sarmento et al., 2018). A introdução de tecnologias como sensores microeletrónicos e sistemas multicâmara revolucionou a análise do jogo no futebol e noutros desportos análogos (Bradley et al., 2016; Bush et al., 2015); porém, as mudanças a longo prazo continuam difíceis de quantificar. Neste sentido, metodologias computacionais e notacionais recentes permitiram superar algumas dessas limitações ao analisar vídeos de arquivo (Edgecomb & Norton, 2006; Wallace & Norton, 2014). Os padrões de jogo, aparentemente aleatórios a curto prazo, revelam-se quantificáveis numa análise de longo prazo (Norton, 2013). Além disso, a evolução destes desportos pode ajudar a identificar vantagens estratégico-táticas, bem como os limites das capacidades humanas. 

Documentar a evolução dos desportos pode trazer diversos benefícios, incluindo: (1) estabelecer ligações com as exigências atuais e futuras do jogo e do treino, (2) otimizar a seleção e o desenvolvimento do talento, (3) avaliar os limites da interação entre o aporte energético, a fadiga e a execução de habilidades motoras e, crucialmente, (4) aprofundar a relação entre as regras, a carga física dos jogadores e padrões de lesão. Todos estes potenciais benefícios podem ser valiosos para jogadores, clubes e organizações desportivas e, em particular, para os diretores/gestores desportivos num contexto em que os jogadores são cada vez mais ágeis, competitivos e fisicamente mais bem preparados (Hill et al., 2018; Norton & Olds, 2001). A compreensão das tendências desportivas também contribui para a definição de diretrizes que minimizam o surgimento de lesões sem comprometer a identidade do jogo. A análise de vídeos históricos e o rastreamento da bola e da estrutura do jogo permitiram identificar padrões emergentes e tendências estratégicas ao longo do tempo em diversos desportos coletivos (Norton, 2013; Norton et al., 1999; Wallace & Norton, 2014). 

A Federação Internacional de Futebol Associativo (FIFA) organiza separadamente os Mundiais de futebol masculino e feminino a cada 4 anos, sendo estes dos maiores torneios desportivos do planeta. O torneio masculino ocorre desde 1930, enquanto o feminino teve início apenas em 1991. A relativa estabilidade das regras e a disponibilidade de imagens de arquivo permitem compreender a evolução deste desporto ao mais alto nível. Estudos prévios quantificaram a evolução do Mundial masculino entre 1966 e 2010, revelando maior velocidade da bola, aumento da densidade de jogadores junto à bola e maior intensidade de jogo (Wallace & Norton, 2014). Alguns trabalhos mais recentes confirmaram estas tendências no futebol de alto rendimento (Bradley et al., 2016; Bush et al., 2015). 

O presente estudo expande a análise até 2022 no torneio masculino e, pela primeira vez, examina a evolução do Mundial feminino (1991–2023). A investigação sobre o futebol feminino é escassa, refletindo a sub-representação de jogadoras em investigações nas áreas das ciências do desporto e da medicina (Costello et al., 2014; Ryan et al., 2023). Com uma história competitiva mais curta, o futebol feminino pode estar a evoluir de forma distinta, tornando-se fundamental a análise de padrões comuns e diferenças entre ambos os géneros.

 

Métodos

Desenho do estudo: o estudo utilizou um desenho correlacional retrospetivo para analisar as gravações das finais do Mundial da FIFA (1966–2022 para o futebol masculino, 1991–2023 para o futebol feminino) e quantificar as mudanças ao longo do tempo em métricas específicas. Foram consideradas 3 grandes dimensões: estrutura do jogo, deslocamento da bola e frequência de passes (tabela 1). A análise utilizou o rastreamento computacional da bola e a cronometragem automática dos períodos de jogo e paragem, complementados por uma análise notacional dos passes efetuados (Edgecomb & Norton, 2006; Wallace & Norton, 2014). Os dados das finais masculinas entre 1966 e 2010 foram previamente publicados (Wallace & Norton, 2014), sendo agora atualizados com as 3 edições subsequentes (2014–2022). Os jogos femininos foram analisados separadamente. Normalmente, as finais do Mundial duram 90 minutos, mas, no torneio feminino, houve duas exceções: em 1991, com partes de 40 minutos e, em 1995, com a introdução experimental do “tempo técnico”, que não foi contabilizado como tempo de paragem.


Tabela 1. Variáveis utilizadas no estudo e respetivas definições operacionais (adaptado de Norton, 2024).

Metodologia de rastreamento: as variáveis relacionadas com a duração dos períodos de jogo/paragem e com o deslocamento da bola foram registadas automaticamente pelo software TrakPerformance (Wallace & Norton, 2014). O sistema rastreia visual e mecanicamente o movimento da bola num campo em miniatura e calibra a posição para calcular a distância percorrida e a velocidade. O tempo de jogo iniciou-se no começo de cada parte, sendo interrompido por eventos como livres ou saídas da bola, e retomado com o seu regresso ao campo. A análise permitiu quantificar o tempo total de jogo/paragem e as respetivas percentagens. A fiabilidade do sistema registou um erro de 5–7%. A precisão foi influenciada pela experiência do rastreador, com erro intra-avaliador de 1,8–3,0% no estudo anterior (Wallace & Norton, 2014). Para o presente estudo, a fiabilidade foi recalculada antes da recolha de dados, com erro máximo de 3,68% na duração mediana das paragens. 

Análise notacional da taxa de passes: definiu-se o passe como qualquer toque deliberado para um colega por forma a manter a posse de bola. Os passes foram contabilizados manualmente por cada parte do jogo e normalizados pelo tempo de jogo, registado via TrakPerformance (Wallace & Norton, 2014). A fiabilidade da contagem foi testada com medições duplicadas em 2 jogos. 

Análise estatística: a análise por partes do jogo permitiu avaliar tendências temporais em função de contextos competitivos e estratégicos distintos (Gollan et al., 2020; Wallace & Norton, 2014). Uma regressão linear simples foi utilizada para avaliar mudanças na estrutura do jogo, no movimento da bola e nas taxas de passes. Os jogos masculinos e femininos foram analisados separadamente, comparando-se as tendências através de um teste F para detetar diferenças entre as inclinações das linhas de regressão. As variáveis foram analisadas com testes t emparelhados para identificar as diferenças entre as partes do jogo. O nível de significância foi definido como p < 0,05.

 

Principais resultados

 

·     Estrutura do jogo

Os tempos totais de jogo e de paragem nas finais masculinas e femininas seguiram padrões semelhantes ao longo do tempo. O tempo de jogo manteve-se estável, enquanto o tempo de paragem aumentou progressivamente, com uma evolução semelhante para ambos os géneros (figura 2a). 

A duração das paragens tem aumentado ao longo das décadas, sem diferenças significativas entre as tendências do futebol masculino e feminino (figura 2b). A percentagem de tempo de jogo diminuiu de 65% para cerca de 55%, com descidas semelhantes para ambos os géneros (figura 2c).


Figura 2. Padrões de jogo e paragens nas finais do Campeonato do Mundo masculino (1966–2022) e feminino (1991–2023). O painel (a) apresenta o tempo total de jogo e o tempo de paragem em cada parte do jogo. O painel (b) ilustra a duração mediana das interrupções. O painel (c) mostra a evolução do tempo efetivo de jogo como percentagem do tempo total da partida.


Na segunda parte dos jogos, o tempo efetivo de jogo foi inferior, devido ao aumento do tempo de paragem, enquanto o tempo total de jogo permaneceu estável. O tempo de paragem foi 9% superior nos homens e 25% superior nas mulheres, comparativamente à primeira parte.

 

·     Movimento da bola

A distância total percorrida pela bola manteve-se estável nos homens e aumentou nas mulheres (figura 3a), embora o deslocamento médio tenha sido 7% superior no futebol masculino. As tendências entre géneros não diferiram significativamente. 

A velocidade média da bola aumentou significativamente em ambos os géneros (figura 3b), mas o crescimento foi mais acentuado no futebol feminino (18%), reduzindo a diferença para os homens: de uma diferença aproximada de 17% nas primeiras edições do Mundial feminino, passou-se para uma diferença atual de cerca de 8%. A distância percorrida e a velocidade da bola permaneceram constantes entre a primeira e a segunda parte, tanto nos jogos masculinos como nos femininos.


Figura 3. Movimento da bola nas finais do Campeonato do Mundo masculino (1966–2022) e feminino (1991–2023). O painel (a) representa a distância percorrida pela bola em cada parte do jogo. O painel (b) mostra a velocidade média da bola (distância percorrida por tempo de jogo) nas finais masculinas e femininas.

 

·     Taxa de passes

Esta variável registou um aumento significativo no futebol masculino e feminino (figura 4), sem diferenças na taxa de variação entre ambos os géneros. Nos homens, a taxa de passes por 100 metros de deslocamento da bola cresceu ao longo do tempo, enquanto nas mulheres manteve-se estável. A taxa de passes por unidade de distância foi semelhante entre os grupos. Já a taxa de passes por minuto de jogo diminuiu significativamente do primeiro para o segundo tempo em ambos os géneros, tal como a taxa de passes por 100 metros percorridos pela bola.


Figura 4. Variação na média das taxas de passe por minuto de jogo nas finais do Campeonato do Mundo masculino (1966–2022) e feminino (1991–2023).

 

Aplicações práticas

A evolução do futebol, tanto no género masculino como feminino, tem demonstrado um aumento da intensidade de jogo, da velocidade da bola e das taxas de passe. Estes padrões reforçam a necessidade de adaptação por parte de treinadores e equipas técnicas para otimizar o desempenho, mitigar riscos e rentabilizar as vantagens competitivas. A duração crescente das paragens de jogo permite maior recuperação fisiológica, mas também influencia a organização estratégico-tática e a tomada de decisão. Para além disso, o aumento da velocidade do jogo e da densidade de jogadores em zonas-chave do campo exige novas soluções estratégicas para lidar com a pressão, reduzir o tempo de reação e aumentar a eficácia das ações tático-técnicas. 

Com base nos resultados deste estudo, propõem-se 5 aplicações práticas que poderão ser equacionadas pelas equipas técnicas na preparação e gestão dos/as jogadores/as, de modo a promover uma adaptação mais eficaz às novas exigências do futebol moderno:

 

1. Ajustar a gestão do tempo de paragem para incrementar a recuperação e a organização estratégico-tática: o tempo total de paragem nos jogos tem aumentado, permitindo maior recuperação fisiológica, mas também maior organização defensiva e ofensiva. Os treinadores devem utilizar estas pausas de forma estratégica para reforçar instruções táticas, implementar jogadas de bola parada e evitar que o adversário beneficie de períodos de recuperação prolongados. Dito isto, reproduzir contextos de paragem prolongada nos treinos pode ajudar os/as jogadores/as a manter a intensidade após estas pausas, atenuando uma eventual quebra de rendimento. 

2. Desenvolver a velocidade de execução técnica e a tomada de decisão sob pressão: o aumento da velocidade da bola e da taxa de passes destaca a importância da rapidez na receção e na distribuição da bola. As sessões de treino devem conter exercícios que exijam receções de bola rápidas, controladas e orientadas, uma perceção célere do envolvimento que favoreça uma tomada de decisão mais prospetiva e a execução de passes curtos e precisos, não descurando o passe ao primeiro toque. Estas competências são fulcrais para o sucesso num jogo cada vez mais rápido, intenso e com espaços mais congestionados de jogadores. 

3. Aperfeiçoar a performance em cenários de alta densidade de jogadores: a maior intensidade de jogo e a redução do tempo para ler o jogo e tomar decisões aumentam a relevância de habilidades como dribles curtos, mudanças de direção rápidas e fintas eficazes. A integração de jogos reduzidos/condicionados no treino contribui para que os/as jogadores/as fiquem mais preparados para atuar com eficiência em áreas restritas, o que é benéfico para (1) encontrar companheiros em posições mais vantajosas, (2) executar combinações táticas progressivas, (3) aumentar a fluidez do jogo e (4) manter a posse de bola.

4. Inovar na preparação física para acompanhar a evolução do jogo e reduzir o risco de lesões: jogos com mais intensidade e velocidade são suscetíveis de aumentar a incidência de lesões com ou sem contacto. O planeamento do treino deve incluir tarefas específicas para aprimorar a resistência em contexto de alta intensidade, envolvendo aspetos como a aceleração, a desaceleração e as mudanças de direção sob pressão. A preparação física deve também focar-se na eficiência dos movimentos e na manutenção da capacidade cognitiva e técnica sob fadiga, para que os jogadores preservem um ritmo elevado ao longo dos 90 minutos.

5. Valorizar o progresso metodológico no treino face à evolução abrupta do futebol feminino: o futebol feminino tem-se desenvolvido a um ritmo acelerado, aproximando-se das exigências do jogo masculino em termos de intensidade, velocidade e dinâmica coletiva. As equipas técnicas devem adotar metodologias de treino que preparem as jogadoras para um jogo mais rápido e exigente, não somente do ponto de vista físico, mas, sobretudo, do ponto de vista percetivo, decisional e técnico. As tarefas de treino específico devem expor as jogadoras a contextos desafiantes, com menos tempo e espaço para executar as ações de jogo.

 

Conclusão

De forma geral, este estudo demonstrou que a evolução do futebol de elite tem-se mantido constante tanto no género masculino como no feminino: os movimentos e os estilos de jogo estão cada vez mais intensos. Contudo, é evidente que estes progressos não poderão continuar indefinidamente. O presente estudo, assim como investigações anteriores sobre o incremento das ações de alta intensidade e das competências táticas (Barnes et al., 2014; Bradley, 2025), sustentam a hipótese de que os elementos do jogo e as métricas associadas à intensidade continuarão a evoluir no futuro próximo, à medida que novas gerações de jogadores talentosos forem identificadas e desenvolvidas (Nassis et al., 2020).


P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Performance Analysis in Sport.

31/12/2024

Trends in Sport Sciences (Vol. 31, 2024) | Tendências temporais dos golos marcados por jogo nas principais ligas europeias: Uma análise de 3 décadas

O ano de 2024 foi marcado por um turbilhão de emoções – para mim e para a minha família. Altos e baixos constantes, marcados por tristeza, alegria, frustração, resiliência e muita, muita esperança. Ainda antes dos sobressaltos e em consequência da possível alteração da lei 11 do futebol – a famigerada lei do fora de jogo –, surgiu a ideia de estudar a evolução da média de golos por jogo das principais ligas europeias. 

Voltemos um pouco atrás: que alteração da lei do fora de jogo? Pois bem, há tempos, o ex-treinador e atual Chefe de Desenvolvimento Global do Futebol da FIFA, Arsène Wenger, propôs que a lei do fora de jogo fosse modificada. A ideia era que, se, no meio-campo ofensivo, alguma parte do corpo do atacante estivesse em linha com alguma parte do corpo do penúltimo defensor no momento do passe, este estaria em jogo. A lei 11 atual, no entanto, estipula que a parte mais adiantada do corpo do atacante (excluindo os membros superiores) deve estar, no máximo, em linha com a parte mais recuada do penúltimo defensor. 

A suposta alteração, atualmente em fase de testes, tem como objetivo, por um lado, facilitar a vida dos árbitros em campo e, por outro lado, tornar o jogo de futebol mais apelativo, ao contribuir – supõe-se – para a adoção de estilos de jogo mais ofensivos, com maior potencial para gerar golos. O processo de industrialização da modalidade, além de a querer tornar num produto diariamente consumível, visa também reforçar a questão da atratividade. Contudo, o que não consegui encontrar foi a resposta a uma questão tão simples quanto: “Como tem evoluído a média de golos por jogo nas principais ligas europeias nas últimas décadas?”. Este foi o ponto de partida para um novo artigo, publicado ontem, 30 de dezembro de 2024, na revista Trends in Sport Sciences (figura 1), que figura no quartil 3 da Scimago e apresenta um CiteScore 2023 de 1.6 na Scopus.

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo publicado na revista Trends in Sport Sciences.

 

Este trabalho envolveu a análise da média de golos marcados nas 7 principais ligas europeias de futebol (Premier League inglesa, LaLiga espanhola, Serie A italiana, Bundesliga alemã, Ligue 1 francesa, Eredivisie neerlandesa e Liga Portugal), ao longo das últimas 30 épocas (1994/1995 – 2023/2024), contabilizando-se 193.442 golos marcados em 71.499 jogos disputados neste período. A análise pretendeu responder a 3 questões-chave: (1) O número médio de golos marcados no futebol tem-se mantido estável ao longo das últimas décadas? (2) O número médio de golos por jogo nas últimas décadas difere significativamente entre as principais ligas europeias? (3) Que ligas se desviam da média europeia global?

 

1. O número médio de golos marcados no futebol tem-se mantido estável ao longo das últimas décadas?

Não, o número médio de golos marcados não se manteve estável. Identificaram-se correlações positivas e significativas entre o número de golos marcados por jogo e a época (tempo) na Premier League, Ligue 1, Bundesliga e na média global das 7 ligas. Foram observadas correlações fortes na Premier League, Ligue 1 e na média global, enquanto a correlação na Bundesliga foi moderada (figura 2). Curiosamente, em 3 das 7 ligas, o maior valor médio de golos por jogo foi registado na época mais recente da amostra (2023/2024), nomeadamente na Premier League (3,27), Bundesliga (3,22) e Liga Portugal (2,87). A média global também foi mais elevada nesta última época (2,94).

 

Figura 2. Evolução dos golos marcados por jogo nas 7 principais ligas europeias de futebol (1994/1995-2023/2024).

 

2. O número médio de golos por jogo nas últimas décadas difere significativamente entre as principais ligas europeias?

Sim, foram identificadas diferenças significativas entre as principais ligas europeias no número médio de golos por jogo. A Bundesliga (2,93) e a Eredivisie (3,07) apresentaram médias significativamente superiores às restantes ligas, com efeitos de grande dimensão. Contudo, a Eredivisie destacou-se com uma média de golos por jogo superior à da Bundesliga. Por outro lado, não se verificou uma diferença significativa entre as duas ligas com as médias de golos mais baixas: a Ligue 1 (2,46) e a Liga Portugal (2,52). Já a Premier League (2,69), a LaLiga (2,66) e a Serie A (2,67) não apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre elas, embora se tenham destacado significativamente de todas as outras.

 

3. Que ligas se desviam da média europeia global?

A Bundesliga (2,93) e a Eredivisie (3,07) apresentaram médias de golos por jogo significativamente superiores à média europeia global (2,71), com efeitos de grande dimensão. Por outro lado, a Ligue 1 (2,46) e a Liga Portugal (2,52) registaram médias significativamente inferiores, também com efeitos de grande magnitude. A Premier League, a LaLiga e a Serie A não se desviaram significativamente da média europeia.

 

Face a estas evidências, justifica-se alterar a lei 11 do futebol para aumentar a atratividade do jogo? 

O resumo original do estudo consta na Figura 3.

 

Figura 3. Abstract do estudo publicado na revista Trends in Sport Sciences.

 

De modo algum este texto ou o resumo substituem a leitura do artigo integral. Por isso, deixo-vos a referência do trabalho em baixo, cujo acesso é gratuito (open access). Acima de tudo, torço para que seja útil e interessante para a comunidade afeta ao futebol. 

Em 2025 por cá continuaremos, na tentativa de esclarecer outras curiosidades ou mitos. Boas entradas no Ano Novo para todos! 

 

Reference

Almeida, C. H. (2024). Temporal trends in goals scored per match across European soccer leagues: a three-decade analysis. Trends in Sport Sciences, 31(4), 245-254. https://doi.org/10.23829/TSS.2024.31.4-6

28/12/2024

Artigo do mês #60 – dezembro 2024 | O erro no tempo adicional no futebol está associado ao tipo de interrupção e à diferença de golos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

- 60 -

Autores: Li, Y., Weber, H., & Link, D.

País: Alemanha

Data de publicação: 2-dezembro-2024

Título: Additional time error in association football is associated with interruption type and goal difference

Referência: Li, Y., Weber, H., & Link, D. (2024). Additional time error in association football is associated with interruption type and goal difference. Science and Medicine in Football, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2435843

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 60 – dezembro de 2024.

 

Apresentação do problema

No Mundial da FIFA em 2022, os tempos adicionais foram significativamente mais longos que o habitual, frequentemente excedendo os 7 minutos e, por vezes, os 10 minutos. Segundo a OPTA, nos 2 primeiros dias do torneio, 5 partes já tinham batido recordes históricos. Este aumento deveu-se a uma ordem da FIFA para que os árbitros aplicassem com maior rigor as regras de compensação de tempo perdido. 

O International Football Association Board (IFAB) tem ajustado as regras de compensação de tempo perdido desde 1939/1940. Inicialmente vagas, estas regras foram especificadas em 1987/1988 para incluir substituições, avaliação de jogadores lesionados e perda de tempo. Em 2016/2017, foram adicionadas as paragens médicas e as sanções disciplinares, seguidas pelo VAR em 2018. Na versão 2023/2024, as celebrações de golo foram listadas como uma categoria separada (IFAB, 2023b). 

Durante o Mundial de 2022, estas regras foram aplicadas rigorosamente pela primeira vez. Registaram-se dados adicionais da partida, como o tipo, o início e o fim de todas as interrupções do jogo consideradas no cálculo do tempo adicional. A recolha desta informação foi executada pela Sportech Solutions Corp., sendo possível calcular o designado “Tempo Adicional Calculado” (Calculated Additional Time – CAT) através da soma aritmética de todas as interrupções, posteriormente sugerido ao árbitro. A Premier League adotou o mesmo mecanismo na temporada 2023/2024 (Kilpatrick, 2023). 

Na Bundesliga alemã, a Sportech Solutions Corp. recolheu o CAT durante a época 2022/2023, após o Mundial (segunda metade da temporada), utilizando o mesmo método aplicado no torneio, mas sem sugerir aos árbitros o tempo adicional a atribuir. Esta configuração ofereceu uma oportunidade única para investigar até que ponto os árbitros atribuem o tempo adicional de acordo com as regras e se estão, de alguma forma, enviesados neste processo. Para tal, foi introduzido um novo parâmetro chamado “Erro de Tempo Adicional” (Additional Time Error – ATE), definido como a diferença entre o CAT e o “Tempo Adicional Atribuído” (Awarded Additional Time – AAT) pelo árbitro. 

O tempo adicional é um elemento decisivo no futebol, representando até 12,2% dos golos marcados nas principais ligas europeias (Transfermarkt, 2024). Apesar dessa relevância, ainda não há estudos que analisem em profundidade o CAT e o ATE. Estudos anteriores sugerem que interrupções no jogo podem ser usadas como estratégia para perder tempo, levando a um tempo adicional atribuído frequentemente inferior ao necessário. Além disso, fatores como a presença do público da equipa da casa e a diferença de golos podem influenciar as decisões dos árbitros sobre o tempo adicional concedido (Augste & Cordes, 2016; Reade et al., 2022; Riedl et al., 2014). Contudo, as análises carecem de dados precisos sobre o CAT, essenciais para avaliar a aplicação rigorosa das Leis de Jogo. 

Este estudo pioneiro explora o CAT e o ATE no futebol, analisado 3 tópicos: (i) a prevalência do CAT por tipo de interrupção na Bundesliga; (ii) a relação entre CAT, tempo adicional concedido (figura 2) e ATE, verificando possíveis vieses associados ao tipo de interrupção; (iii) o impacto da diferença de golos no ATE, avaliando a influência sobre as decisões dos árbitros. Os resultados fornecem informações essenciais para as ligas e árbitros na aplicação e implementação das regras relativas ao tempo adicional no futebol.

 

Figura 2. Exemplo de tempo adicional concedido num jogo da Bundesliga (fonte: gettyimages.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Amostra: o estudo utilizou dados de todos os 153 jogos das jornadas 18–34 da temporada 2022/2023 da Bundesliga, na qual participaram 18 equipas e 25 árbitros. Cada árbitro concordou com a gravação em vídeo dos jogos e com a recolha de dados. 

Procedimentos: para cada jogo, foram analisadas todas as interrupções de jogo relevantes para o cálculo do tempo adicional, conforme as Leis de Jogo 2023/2024 (IFAB, 2023b). Os dados incluíram o tipo de interrupção (substituição, lesão, penálti, celebração de golo, sanção disciplinar, Árbitro Assistente de Vídeo (VAR), outras razões e causas múltiplas), o momento e a duração da ocorrência. A categoria “penálti” abrange a duração de discussões entre o árbitro e os jogadores, sem envolvimento do VAR. A categoria “causas múltiplas” foi usada para interrupções causadas por eventos simultâneos (e.g., lesão e substituição). Registaram-se também o “diferencial de golos da equipa da casa” (Home Goal Difference – HGD), correspondente à diferença de golos antes do tempo adicional da segunda parte, e o “Tempo Adicional Atribuído” (AAT) por período. O “Tempo Adicional Calculado” (CAT) foi obtido somando a duração das interrupções de jogo. Os dados foram recolhidos por observadores humanos profissionais e fornecidos pela Deutsche Fußball Liga. 

Análise estatística: a análise da distribuição das interrupções por tipo implicou que cada jogo constituísse uma unidade estatística. Foram reportados os valores médios absolutos (min:ss) e relativos (%) do CAT para os 8 tipos de interrupção, divididos por primeira parte, segunda parte e tempo total. A avaliação da influência do tipo de interrupção no tempo adicional atribuído (AAT) envolveu o cálculo do “Erro de Tempo Adicional” (ATE), i.e., a diferença entre o CAT e o AAT no tempo total. Regressões Lineares Múltiplas examinaram as relações entre os tipos de CAT e o AAT e o ATE. De forma a explorar se, e em que medida, a diferença de golos e a vantagem de jogar em casa influenciaram os árbitros, os jogos foram categorizados com base no diferencial de golos (HGD). O critério Goal Difference+ usou 5 categorias (>1, 1, 0, −1 e <−1), enquanto o Goal Difference# utilizou apenas duas: “Desequilibrado” (HGD > 1 ou HGD < −1) e “Equilibrado” (todos os restantes). Testes de Mann-Whitney U avaliaram o ATE em diferentes resultados dos jogos. Como jogos desequilibrados apresentaram mais golos (3,94 ± 1,74) do que os equilibrados (2,38 ± 1,46), foi feita uma análise adicional excluindo as celebrações de golos. Testes Kruskal-Wallis H identificaram o ATE em categorias de HGD, com comparações post hoc usando Dunn e ajuste de Bonferroni. A dimensão do efeito (η²) foi classificada como pequena (0,010 ≤ η² < 0,059), moderada (0,059 ≤ η² < 0,138) ou grande (η² ≥ 0,138) (Cohen, 1988). Os instrumentos utilizados foram o SPSS Statistics 25 e o Python 3.9.

 

Principais resultados

 

·     Estatística descritiva

Em média, os jogos da segunda metade da época da Bundesliga 2022/2023 apresentaram um “Tempo Adicional Calculado” (CAT) total de 9:22 ± 3:11, com um “Tempo Adicional Atribuído” (AAT) correspondente de 7:11 ± 2:27. As interrupções nos jogos (CAT = 6:23 ± 2:23) e o tempo adicional atribuído (AAT = 4:55 ± 1:52) foram significativamente mais elevados na segunda parte, comparativamente à primeira (CAT = 2:58 ± 2:09, AAT = 2:15 ± 1:28). O “Erro de Tempo Adicional” (ATE) médio foi de 2:10 ± 2:24 minutos no tempo total, com 0:42 ± 1:22 minutos na primeira parte e 1:28 ± 1:57 na segunda parte.

 

·     Prevalência do Tempo Adicional Calculado (CAT) por tipo de interrupção

Considerando o tempo total de jogo, os tipos de interrupção que mais contribuíram para o CAT foram as substituições (28,17%), as celebrações de golo (24,33%) e causas múltiplas (22,97%). Exclusivamente na primeira parte, foram as celebrações de golo (40,49%), as lesões (25,13%) e as causas múltiplas (18,76%), enquanto na segunda parte foram as substituições (41,76%), as causas múltiplas (23,75%) e as celebrações de golo (17,64%).

 

·     Relação entre o tipo de interrupção e o Tempo Adicional Atribuído (ATT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE) para o jogo inteiro

O tempo associado a lesões esteve significativamente relacionado com o AAT e o ATE. As substituições e a intervenção do VAR também afetaram significativamente o AAT, mas não tiveram impacto significativo no ATE. Por outro lado, as celebrações de golos influenciaram significativamente o ATE, mas não o AAT. Já os penáltis e as sanções disciplinares foram 2 tipos de CAT que não afetaram o AAT, embora estivessem consideravelmente associados ao ATE.

 

·     Distribuição do Erro de Tempo Adicional (ATE) em função da diferença de golos

O ATE foi significativamente maior em jogos desequilibrados (imbalanced) em comparação com jogos equilibrados (close), com um efeito de grande magnitude (Figura 3a). No teste adicional, que excluiu as celebrações de golos, o ATE manteve-se significativamente maior em jogos desequilibrados, embora com uma dimensão de efeito pequena. Os resultados também mostraram um ligeiro viés a favor da equipa da casa, uma vez que o ATE foi mais elevado quando a equipa da casa estava em vantagem (diferença de golos > 1; Figura 3b).

 

Figura 3. Erro de Tempo Adicional (ATE) agrupado por diferença de golos# (parte A) e diferença de golos+ (parte B) (golos da equipa da casa – golos da equipa visitante). ES refere-se à dimensão do efeito, e * indica diferenças significativas. O ATE em jogos desequilibrados (imbalance) foi significativamente maior do que em jogos equilibrados (close), indicando um viés dos árbitros ao alocar menos tempo adicional em jogos já decididos. Mais concretamente, a parte B mostra um ATE significativamente mais elevado quando a equipa da casa lidera por mais de 1 golo, em comparação com HGD = 1, 0 e −1. Além disso, o ATE médio foi menor quando a equipa da casa estava a perder por apenas 1 golo, o que sugere um ligeiro viés a favor dos visitados.

 

Aplicações práticas

Uma potencial melhoria na formação dos árbitros e nos processos de tomada de decisão, incluindo uma maior consciência na atribuição do tempo adicional, pode beneficiar substancialmente o jogo de futebol. Até a literatura científica demonstra que as equipas utilizam interrupções de jogo para fins estratégico-táticos (Augste & Cordes, 2016), como a perda de tempo (Morgulev & Galily, 2019). Neste contexto, o aperfeiçoamento do cálculo do tempo adicional pode garantir que os jogos tenham uma duração mais justa, desencorajando as equipas de provocarem conflitos desnecessários, forçarem lesões ou prolongarem excessivamente as celebrações de golos. Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas que poderão ser exploradas no futuro para adequar o tempo adicional mínimo concedido às incidências de cada partida:

 

1. Adotar a sugestão de Tempo Adicional Calculado (CAT) para maior justiça competitiva: a utilização do CAT sugerido por fornecedores de dados dos jogos, como a OPTA, seguindo o exemplo do Campeonato do Mundo FIFA 2022, pode assegurar que o tempo adicional reflita com maior precisão o tempo perdido durante as interrupções. Esta abordagem ajudaria a reduzir jogos com menos de 45 minutos de tempo útil e a promover maior equidade competitiva. No entanto, a implementação deve ser precedida de uma avaliação cuidadosa, tendo em conta as perceções dos adeptos, que manifestaram críticas aos tempos adicionais prolongados no último Mundial. 

2. Aperfeiçoar a formação de árbitros para contabilização justa das interrupções: os resultados mostram que o tipo de interrupção afeta o Tempo Adicional Atribuído (AAT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE). Embora as substituições e as intervenções do VAR sejam bem contabilizadas, interrupções como lesões e celebrações de golo são frequentemente subestimadas. É fundamental que os árbitros avaliem a duração e o impacto de todas as interrupções, especialmente agora que estas estão mais detalhadas nas Leis de Jogo. Os programas de formação devem enfatizar a importância de contabilizar cada interrupção com precisão, garantindo que o tempo adicional reflete fielmente os acontecimentos em campo. 

3. Sensibilizar os árbitros para decisões justas independentemente das dinâmicas situacionais: os dados sugerem que o Erro de Tempo Adicional (ATE) é maior em jogos decididos. Os árbitros tendem a atribuir menos tempo adicional nestas situações, possivelmente devido a um viés consciente ou inconsciente. Embora as Leis do Jogo (IFAB, 2023b) concedam aos árbitros poder discricionário para gerir estas situações – a designada “lei do bom senso” –, finalizar jogos desequilibrados mais cedo pode ser mal interpretado. Também foi observado que os árbitros atribuem tempos adicionais mais adequados quando a equipa da casa ainda pode empatar, o que reflete uma ligeira tendência a favor da equipa da casa. Recomenda-se que o treino dos árbitros inclua estratégias para aumentar a precisão das decisões relativas ao tempo adicional, quer em contextos de resultados desequilibrados, como ao equacionar o “fator casa”.

 

Conclusão

O estudo explorou o Tempo Adicional Calculado (CAT) e o Erro de Tempo Adicional (ATE) na Bundesliga alemã. Verificou-se que os árbitros frequentemente atribuem menos tempo adicional do que o sugerido pelas Leis de Jogo. Na alocação desse tempo, priorizam interrupções como lesões, intervenções do VAR e substituições, mas subestimam as celebrações de golo, apesar de estas contribuírem significativamente para o tempo total de interrupções. Houve uma tendência para atribuir menos tempo adicional em jogos com uma diferença de golos superior a um no final do tempo regulamentar. Por outro lado, quando a equipa da casa estava a perder por um golo, o tempo adicional foi ligeiramente mais adequado, indiciando um ligeiro viés a favor da equipa da casa. Estes resultados destacam a importância de melhorias na formação dos árbitros e nos seus processos de tomada de decisão.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

30/11/2024

Artigo do mês #59 – novembro 2024 | Sessões de treino compensatórias; será que compensam mesmo?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 59 -

Autores: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J.

País: Espanha

Data de publicação: 4-novembro-2024

Título: Compensatory training sessions, do they really compensate?

Referência: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J. (2024). Compensatory training sessions, do they really compensate? International Journal of Sports Science & Coaching, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241287914

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 59 – novembro de 2024.

 

Apresentação do problema

O conhecimento sobre as cargas externas no microciclo competitivo tem evoluído significativamente. Os estudos mostram que os jogos oficiais representam a maior parte da carga semanal, diferenciando-se claramente das sessões de treino (Kelly et al., 2020; Stevens et al., 2017). Os jogadores com menos minutos acumulam menor atividade semanal, especialmente em ações de alta velocidade e sprint, com maior impacto em semanas de alta densidade competitiva (Casamichana et al., 2022; Gualtieri et al., 2020). Assim, encontrar formas de estimular jogadores com baixa participação nos jogos oficiais tornou-se uma preocupação central para treinadores e investigadores. 

A investigação científica tem analisado as cargas externas no treino compensatório do microciclo (MD+1, ou seja, treino após o dia de jogo) para jogadores com menos minutos em competição. Martín-García et al. (2021) observaram que estas sessões atingem mais de 50% da carga do jogo em variáveis como a distância total percorrida, a potência metabólica média e as acelerações/desacelerações (>3 m/s2), mas apenas 20% na distância em alta velocidade (>19,8 km/h) e em sprint (>25,2 km/h). Calderón-Pellegrino et al. (2022) destacaram que estas sessões não replicam as exigências dos titulares, sobretudo na distância em sprint (>24,0 km/h). 

A comparação das cargas externas entre diferentes equipas dentro de uma estrutura profissional de futebol tem despertado interesse na literatura científica, mediante a análise das cargas acumuladas em sessões e microciclos por diferentes equipas (Calderón-Pellegrino et al., 2022; Martin-Garcia et al., 2018). Assim, Kavanagh et al. (2024) observaram recentemente que a carga externa semanal acumulada foi maior em semanas com 1 jogo na equipa principal em comparação com a equipa de reservas. Por outro lado, Houtmeyers et al. (2021) descreveram que, enquanto as cargas semanais a baixa velocidade foram mais elevadas nos jogadores de elite jovens, a intensidade e a variabilidade de carga tendem a aumentar quando esses jogadores transitam para o futebol profissional. A compreensão destas dinâmicas da carga externa pode favorecer a progressão dos jogadores entre equipas e facilitar a sua integração nos treinos de outras equipas do mesmo clube. 

Contudo, existe pouca informação sobre a atividade realizada pelos jogadores neste tipo de sessão (MD+1; Figura 2) e ainda menos sobre os padrões de carga entre diferentes equipas no seio do mesmo clube de futebol. Posto isto, o objetivo deste estudo foi comparar a carga externa acumulada por jogadores pertencentes a 3 equipas do mesmo clube profissional na sessão de treino compensatório, expressando-a tanto em valores absolutos como em valores relativos às exigências do jogo.

 

Figura 2. Proposta de treino compensatório (fonte: https://isspf.com; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Abordagem experimental: foram analisados 191 registos de sessões compensatórias realizadas por 3 equipas de um clube profissional na época 2019/2020. Estas sessões, executadas no dia seguinte aos jogos oficiais (MD+1), foram desenhadas para simular as exigências competitivas. Somente participaram os jogadores de campo que não foram titulares ou jogaram menos de 60 minutos no encontro anterior, com o objetivo de replicar, de forma aproximada, as cargas físicas do jogo. 

Participantes: 51 jogadores de 3 equipas de um clube profissional: equipa principal (PRO, n = 16; 24,5 ± 3,5 anos; 180,6 ± 6,7 cm; 75,1 ± 5,7 kg), equipa de reservas (RES, n = 15; 21,3 ± 1,1 anos; 179,5 ± 7,1 cm; 72,5 ± 6,4 kg) e segunda equipa de reservas (RES2, n = 20; 19,7 ± 0,9 anos; 177,9 ± 5,1 cm; 70,7 ± 6,3 kg). Os guarda-redes foram excluídos devido à especificidade da posição. A equipa PRO competiu na primeira divisão espanhola (La Liga), a RES na terceira divisão e a RES2 na quarta divisão. Os dados foram recolhidos no âmbito da avaliação diária como condição de trabalho dos jogadores. 

Variáveis: as sessões de treino compensatório foram monitorizadas com dispositivos MEMS, analisando-se 10 variáveis: duração total (min), distância total percorrida (TD, m), distâncias percorridas a velocidades moderada (TD14: >14 km/h), alta (TD18: >18 km/h), muito alta (TD21: >21 km/h) e sprint (TD24: >24 km/h), carga de aceleração (aLoad, AU), número de acelerações (>2 m/s²) e desacelerações (<-2 m/s²), e carga do jogador (Player Load – PL, AU). As variáveis foram obtidas via GPS e acelerómetros, seguindo limiares de intensidade de estudos prévios (e.g., Guridi Lopategui et al., 2021). A variável aLoad soma todas as acelerações e desacelerações positivas, refletindo as exigências totais de aceleração, independentemente da velocidade. A PL combina acelerações nos 3 planos de movimento, sendo fiável e validada para monitorizar a carga em jogadores de futebol (Casamichana et al., 2013). 

Procedimentos: a investigação foi executada na primeira metade da época 2019/2020. As 189 sessões de treino compensatório analisadas ficaram assim distribuídas pelas 3 equipas: PRO = 80, RES = 52 e RES2 = 57.  Estas sessões foram realizadas no dia seguinte ao jogo oficial, envolvendo jogadores que jogaram menos de 60 minutos. A carga externa foi monitorizada com dispositivos MEMS (Vector S7 e X7), e os dados, processados no software Catapult OpenField, garantiram elevada precisão. Para comparar com a carga dos jogos, estimaram-se os valores para os jogadores que não completaram as partidas: menos de 70 minutos baseados na média da posição e mais de 70 minutos extrapolados para 94 minutos. As cargas foram expressas em valores absolutos e relativos (%) em relação à média dos jogos oficiais. 

Análise estatística: os dados foram apresentados através de média, desvio padrão e intervalo (mínimo e máximo), em valores absolutos e relativos (em relação ao jogo). As diferenças entre as equipas foram avaliadas através de ANOVA de uma via. Também foram calculadas as dimensões de efeito mediante o d de Cohen, considerando os intervalos seguintes: trivial <0,2; pequeno >0,2; moderado >0,6; grande >1,2; e muito grande >2,0 (Hopkins et al., 2009). As análises estatísticas foram realizadas no software JASP, versão 0.18.1 para Windows, adotando-se um nível de significância de p < 0,05.

 

Principais resultados

 

· Estatísticas descritivas das variáveis de carga externa de treino nos dias compensatórios por equipa (PRO, RES e RES2)

Os dias compensatórios apresentaram diferenças significativas entre as equipas (PRO, RES e RES2) em diversas variáveis de carga externa. As principais observações incluem:

 

1. Duração (DUR): as equipes RES e RES2 apresentaram maior duração média de treino em comparação à PRO, com diferenças estatisticamente significativas;

2. Cargas absolutas (PL e aLoad): os valores de carga absoluta (PL) e carga acumulada (aLoad) foram significativamente maiores para as equipas RES e RES2 em relação à PRO;

3. Distâncias totais (TD e respetivos patamares de velocidade): a equipa RES percorreu as maiores distâncias totais (TD) e em velocidades altas (TD14 e TD18), enquanto a equipa PRO apresentou valores significativamente inferiores;

4. Acelerações e desacelerações (ACC e DEC): houve um número mais reduzido de desacelerações (DEC) nas equipas RES e RES2 em comparação à PRO, indicando padrões distintos de trabalho de intensidade entre os conjuntos;

5. Diferenças não significativas: algumas variáveis, como TD21, não apresentaram diferenças significativas entre as equipas.

 

·   Magnitude das diferenças entre as equipas para cada variável de carga externa

Os tamanhos do efeito das diferenças entre as equipas para cada uma das variáveis de treino relacionadas com os jogos demonstraram magnitudes mais pronunciadas nas variáveis associadas ao volume (DUR%, PL%, aLoad% e TD%), com a equipa PRO a apresentar consistentemente os valores mais baixos.

 

·  Valores relativos (%) da carga de treino compensatório em relação à carga do jogo oficial para cada equipa.

A Figura 3 expõe o perfil da carga dos treinos compensatórios relativamente à carga obtida nos jogos oficiais das 3 equipas. 


Figure 3. Médias e desvios padrão das variáveis relativas (%) em relação à carga de treino em dias compensatórios para cada equipa. Nota: DUR% refere-se à duração total, aLoad% é a carga total de aceleração, PL% é a carga do jogador, TD% é a distância total percorrida, TD14% é a distância percorrida a >14 km/h, TD18% é a distância percorrida a >18 km/h, TD21% é a distância percorrida a >21 km/h, TD24% é a distância percorrida a >24 km/h, e ACC% e DEC% referem-se ao número de acelerações (>2 m/s2) e desacelerações (<-2 m/s2), todas as variáveis relativas ao jogo. PRO corresponde à equipa profissional, RES à equipa de reservas e RES2 à segunda equipa de reservas. (a) indica >PRO, (b) indica >RES e (c) indica >RES2 com p < 0,05.

 

Nas variáveis DUR%, PL%, TD% e TD14%, foram encontradas diferenças significativas entre todas as equipas. Além disso, na variável ACCLoad%, as equipas RES e RES2 exibiram percentagens superiores à PRO. Para a variável TD18%, a equipa RES apresentou valores relativos superiores à RES2, que, por sua vez, exibiu valores superiores à PRO. As equipas RES e RES2 também apresentaram valores superiores à PRO na variável ACC%. Por fim, na variável DEC%, a equipa PRO demonstrou percentagens significativamente superiores à RES.

 

Aplicações práticas

A partir dos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas propícias para auxiliar os treinadores na otimização do treino compensatório, particularmente destinado a jogadores com menos minutos de competição. Estas recomendações concentram-se em estratégias para melhorar a condição física, equilibrar as cargas neuromusculares e garantir uma preparação mais consentânea com as exigências competitivas. 

1. Estimular níveis competitivos em jogadores menos utilizados: as variáveis de carga externa oscilaram entre 30–90% do observado em competição, situando-se maioritariamente entre 50–60% das exigências do jogo oficial, enquanto valores mais altos foram registados nas ações de aceleração e desaceleração. Para preparar jogadores menos utilizados, os treinadores devem integrar jogos particulares ou simulados, especialmente em equipas de reserva ou formação, onde há maior disponibilidade de jogadores. 

2. Estratégias eficientes para o treino compensatório: os jogos reduzidos/condicionados sobrecarregam a dimensão neuromuscular e subestimam aspetos como o pico de velocidade. Assim, o treino intervalado de sprint e de resistência de velocidade deve ser implementado para maximizar a condição física em cenários com menos jogadores ou tempo limitado. A exposição semanal à corrida de alta velocidade, como sprints, pode melhorar o desempenho e reduzir a incidência de lesões, sendo uma estratégia essencial para os jogadores pouco utilizados. 

3. Corrigir o desequilíbrio entre ações de aceleração e desaceleração em treinos compensatórios: as sessões de treino compensatório apresentaram uma maior frequência de acelerações em comparação com as desacelerações, tanto em número absoluto como em percentagem das exigências competitivas. Este desequilíbrio pode limitar o desenvolvimento equilibrado das capacidades neuromusculares dos jogadores. Assim, além da utilização de jogos reduzidos/condicionados para estimular acelerações, é essencial integrar exercícios como corrida intervalada com mudanças bruscas de direção e desacelerações progressivas após sprints, por forma a garantir uma preparação mais completa e alinhada com as exigências do jogo.

 

Conclusão

Este estudo comparou as cargas externas acumuladas em sessões de treino compensatório de 3 equipas de um clube profissional de futebol. As equipas de reserva apresentaram cargas absolutas e relativas superiores à equipa principal, com destaque para ações de aceleração e desaceleração. Contudo, observou-se um desequilíbrio entre acelerações e desacelerações, bem como uma sub-representação de ações em alta velocidade e sprint em relação às exigências do jogo oficial. Estes resultados sugerem que os treinos compensatórios devem ser ajustados para replicar mais fielmente as condições de competição, integrando exercícios de sprint e mudanças de direção. A aplicação prática destas evidências poderá melhorar a preparação de jogadores com menos minutos e reduzir o risco de lesões em contexto competitivo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.