Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes
critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com
revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
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Autores: Roca, A., Pocock, C., & Ford, P. R.
País: Inglaterra
Data de publicação: 4-setembro-2024
Título: Exploring decision-making
practices during coaching sessions in grassroots youth soccer: a mixed-methods
study
Referência: Roca, A., Pocock, C.,
& Ford, P. R. (2024). Exploring
decision-making practices during coaching sessions in grassroots youth soccer:
a mixed-methods study. Science and Medicine in
Football, 1–8. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2399011
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 58 – outubro de
2024.
Apresentação do problema
Uma questão fundamental que tem captado a atenção de
investigadores e profissionais é a otimização das atividades e dos ambientes de
treino para melhorar a capacidade dos jovens jogadores em antecipar e tomar
decisões eficazes (Williams & Jackson, 2019). Os estudos sugerem que o
desenvolvimento das competências associadas à “inteligência de jogo” depende,
em grande parte, da participação em atividades cuja estrutura subjacente é
semelhante ou idêntica à do jogo (Roca et al., 2012; Miller et al., 2017;
Roberts et al., 2020; Coutinho et al., 2023). Diversas recomendações teóricas e
científicas têm sido adiantadas para otimizar estas atividades (Pinder et al.,
2011; Hodges & Lohse, 2022). Como parte desse processo, os investigadores
têm procurado compreender as estruturas de treino e a pedagogia empregue nas
sessões de treino (e.g., Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013;
O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020).
A abordagem utilizada para investigar a microestrutura
das sessões de treino baseia-se na observação sistemática, onde os
investigadores analisam e categorizam o tempo que os jogadores passam em
diferentes tipos de atividades e os comportamentos dos treinadores (e.g., Ford
et al., 2010; Partington & Cushion, 2013). As atividades dividem-se
geralmente em duas categorias: (1) atividades de jogo, onde os jogadores
interagem com adversários e colegas de equipa, como os jogos reduzidos; (2)
atividades de exercício, onde se praticam habilidades motoras com a bola sem
adversários e, por vezes, sem companheiros de equipa. Algumas definições fazem
uma distinção entre atividades com e sem tomada de decisão ativa (e.g., Roca
& Ford, 2020).
Estudos prévios no futebol (Ford et al., 2010; Partington
& Cushion, 2013) observaram que jovens jogadores passam uma parte
significativa do tempo em atividades de exercício, em vez de atividades
baseadas no jogo. Ford et al. (2010) avaliaram as atividades de treino de 25
treinadores e descobriram que os jogadores de grupos etários mais jovens
passavam 62% do tempo em exercícios. Os autores levantaram preocupações sobre
este desequilíbrio, pois argumentaram que, devido ao menor envolvimento de
processos de tomada de decisão, estas atividades poderiam prejudicar a
aquisição de habilidades e sua transferência para o jogo competitivo.
Recomendaram, então, aumentar o tempo dedicado a atividades baseadas no jogo,
mais alinhadas com as exigências do competição (Miller et al., 2017; Roberts et
al., 2020).
Em investigações mais recentes (Ford & Whelan, 2016;
O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020), verificou-se uma mudança, com
treinadores de crianças mais habilidosas a recorrerem mais frequentemente a
atividades baseadas no jogo do que a exercícios (figura 2). Ford e Whelan
(2016) analisaram 16 sessões de treino em jogadores Sub-9 a Sub-11 de academias
de elite em Inglaterra, revelando que 63% do tempo foi dedicado a atividades de
jogo, 20% a exercícios e 17% em transições. Na Austrália, O’Connor et al.
(2018) descobriram que, em 40 sessões de treino com jogadores Sub-11 a Sub-13 mais
evoluídos, 45% do tempo foi dedicado a atividades de jogo e 20% a exercícios. Contudo,
para jogadores principiantes ou de base, as atividades de jogo podem ser mais
desafiantes, o que suscita a questão de se estas tarefas são apropriadas para
esta população (Larkin et al., 2022).
Figura 2. Crianças a praticar atividades com tomada de decisão
ativa, no caso jogos reduzidos (imagem não publicada pelos autores).
Embora a investigação sobre a microestrutura das
atividades de treino tenha proporcionado alguma compreensão sobre as estruturas
específicas que os treinadores utilizam, é crucial entender as intenções dos
treinadores ao escolherem determinadas práticas (Roca & Ford, 2020;
Williams & Hodges, 2023). Para tal, é necessário investigar não apenas as
estruturas de treino, mas também os fatores que influenciam as decisões dos
treinadores (Partington & Cushion, 2013; Ford & Whelan, 2016). O presente
estudo combinou entrevistas pós-sessão com observação sistemática para examinar
o “como” e o “porquê” da seleção das estruturas de treino no futebol infantojuvenil
de base, ao contrário de estudos anteriores que realizaram entrevistas após
blocos de sessões (Ford & Whelan, 2016).
Tradicionalmente, os treinadores de futebol iniciam as
sessões com atividades de exercício, culminando com jogos de posse de bola ou jogos
reduzidos/condicionados (Williams & Hodges, 2005; Ford et al., 2010;
Partington & Cushion, 2013; O’Connor et al., 2018). A razão hipotética para
este design é que, para adquirir habilidades, a dificuldade do jogo deve ser
reduzida, removendo adversários e/ou companheiros de equipa para praticar
competências motoras com a bola (passe, receção, drible, remate, etc.). A ideia
é que, uma vez dominada a habilidade, os jogadores possam aplicá-la em
atividades de jogo contra adversários (Ford et al., 2010). Apesar disso, esta
justificação raramente foi avaliada diretamente com os treinadores. Neste
contexto, foi empregue uma abordagem de métodos mistos, combinando observações
sistemáticas com entrevistas reflexivas realizadas em campo após as sessões, por
forma a examinar as atividades de treino e a sua sequência ao longo da sessão,
tal como implementadas por treinadores de futebol de formação de base.
Métodos
Participantes: 12 treinadores de futebol masculino, a trabalhar com
grupos de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes na área de Londres. Os critérios de
inclusão foram: treinar atualmente no nível de base; trabalhar com crianças com
menos de 11 anos; ter experiência relevante em treino de jovens; e possuir pelo
menos uma qualificação FA Nível 1. A média de idades foi de 31 ± 8 anos, com 7
± 5 anos de experiência de treino e possuíam qualificações desde o FA Nível 1
até à Licença UEFA B. Para manter o anonimato, foram usados pseudónimos e os
clubes específicos não foram mencionados.
Procedimentos: o procedimento de cada sessão consistiu na observação
sistemática das atividades e numa breve entrevista de campo com cada treinador,
realizada após a sessão.
· Observação sistemática
Foram gravadas 35 sessões
de treino de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes durante 3 meses, utilizando uma câmara
digital, e a meio da semana, para evitar treinos específicos de preparação ou
reflexões pós-jogo (Roca & Ford, 2020). As atividades de treino foram
classificadas com base num sistema refinado que divide as atividades em tomada
de decisão ativa e não ativa. A tomada de decisão ativa envolve atividades que
simulam situações de jogo com decisões baseadas nos movimentos de adversários e
colegas de equipa (e.g., jogos reduzidos, posse de bola), enquanto a não ativa
inclui práticas sem oposição realista (ex.: técnica, habilidades motoras). Uma
terceira categoria abrange transições e pausas (tabela 1).
Tabela 1.
Categorias e definições das atividades relacionadas com a prática de futebol
utilizadas no estudo (refinado de Roca & Ford, 2020).
· Entrevistas
Além da observação
sistemática, cada treinador participou numa breve entrevista pós-sessão para
refletir sobre o treino. Todos os treinadores foram questionados sobre o
objetivo das suas sessões, com a pergunta aberta “qual foi o objetivo do treino
de hoje?”, sendo feitas perguntas adicionais caso necessário (Robinson 2023). A
observação sistemática gerou dados quantitativos, enquanto as entrevistas
forneceram uma análise mais profunda sobre as intenções dos treinadores (Ford
et al. 2010; Partington & Cushion 2013). A duração média das entrevistas
foi de 5 ± 2 minutos.
· Rigor metodológico
A fiabilidade inter e
intra-observador foi avaliada em 4 sessões de treino, com concordância de 91,7%
e 94,5%, respetivamente, excedendo o limite crítico de 85% recomendado por van
der Mars (1989). A percentagem de concordância foi usada em vez de Kappa de
Cohen, com base nas recomendações de McHugh (2012). Para as entrevistas,
utilizou-se amostragem intencional com critérios específicos, como treinar
atualmente grupos de Sub-9 a Sub-11 no nível de base, para garantir a adequação
dos participantes observados.
Análise dos dados: a
análise foi subdividida em observação sistemática e entrevistas.
· Dados da observação sistemática
Os dados foram
normalizados, calculando-se a percentagem de tempo em que os jogadores
participaram nas categorias de tomada de decisão ativa e não ativa. As sessões
foram divididas em duas metades iguais para analisar a organização sequencial.
Devido à interdependência entre atividades, foi realizado um teste t para
comparar a percentagem de tempo dedicado à tomada de decisão ativa entre a
primeira e a segunda metade da sessão. Foram calculadas estatísticas
descritivas e o tamanho de efeito de Cohen’s d para as subatividades em
cada categoria. O nível de significância foi definido em p < 0.05
(Field, 2018; Ford et al., 2010).
· Dados das entrevistas
Os dados das entrevistas
foram analisados utilizando uma combinação de métodos indutivos e dedutivos de
análise temática (Braun & Clarke, 2021). A análise temática reflexiva, em
duas fases, organizou os dados em atividades de tomada de decisão ativa e não
ativa (Braun & Clarke, 2019). Os temas secundários foram desenvolvidos
indutivamente para identificar os objetivos das sessões de treino. Os coautores
atuaram como “amigos críticos”, ajudando a verificar e refinar os temas durante
a análise dos dados (Smith & McGannon, 2018).
Principais resultados
· Observação sistemática
As 35 sessões de treino de
futebol tiveram uma duração média de 86 minutos. Globalmente, as atividades de
tomada de decisão ativa representaram 41% da sessão, as de tomada de decisão
não ativa somaram 42%, e os restantes 17% foram atribuídos a atividades de
transição.
Observou-se uma diferença
significativa no tempo dedicado às atividades de decisão ativa entre as duas
metades da sessão (figura 3): a segunda metade da sessão apresentou mais tempo
em atividades de decisão ativa (66%) do que a primeira metade (16%). Em contrapartida,
a primeira metade registou mais atividades de decisão não ativa (64%) do que a
segunda metade (19%). Com exceção de 2 treinadores, os restantes propuseram
entre 30% e 50% de atividades com tomada de decisão ativa nas sessões.
Figura 3. Médias e desvios-padrão da percentagem de tempo dedicado
a atividades com tomada de decisão ativa e não ativa durante a primeira e a
segunda metade da sessão de treino (Roca et al., 2024).
Atividades de Tomada de Decisão
Ativa
O tempo dedicado a jogos
reduzidos e condicionados (25%) foi significativamente superior ao das outras
subatividades de decisão ativa (3 a 5%). Observou-se que a maior parte do tempo
em jogos reduzidos e condicionados ocorreu na segunda metade da sessão (43%).
Atividades de Tomada de Decisão
Não Ativa
O tempo das atividades de
decisão não ativa, incluindo exercícios de preparação física, treino técnico
isolado e exercícios baseados em habilidades, variou entre 11% e 16% da duração
total da sessão. Estas atividades concentraram-se sobretudo na primeira metade
da sessão, representando 64% do tempo desse bloco inicial.
·
Entrevistas
A figura 4 apresenta o
mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para as sessões de treino.
Os objetivos dos treinadores foram codificados em 2 temas de ordem superior:
tomada de decisão ativa e tomada de decisão não ativa.
Figura 4. Mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para
as sessões de treino.
Atividade de Tomada de
Decisão Ativa
A tomada de decisão ativa
foi definida como atividades em pequenos grupos ou equipas, como jogos
reduzidos e condicionados. Os treinadores usaram estas atividades para melhorar
o desempenho em situações de 1v1. Como explicou o Treinador 6:
O próximo exercício foi 1v1 e 2v2, para ver se os
jogadores conseguem ser mais rápidos com a bola e decidir se avançam sozinhos
ou em combinação com um colega.
Também foram utilizados
jogos condicionados para desenvolver o jogo de posse de bola, como destacou o
Treinador 3:
A segunda atividade foi um jogo condicionado com
limitações para encorajar os jogadores a jogar desde trás e tentar criar
oportunidades de golo.
No final das sessões,
geralmente, os treinadores recorriam a jogos reduzidos para aplicar as
habilidades praticadas, como reflete o Treinador 9: “Terminámos com um jogo
reduzido para incorporar todas as habilidades aprendidas no jogo”. Este tipo de
atividades procura simular cenários reais de jogo, ajudando os jogadores a
desenvolver as habilidades treinadas no início da sessão.
Aplicações práticas
Com base nos resultados
obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas que podem ser aproveitadas
pelos treinadores para melhorar a eficácia dos treinos e o desenvolvimento de
habilidades nas crianças. Estas recomendações visam otimizar o design das
atividades de treino, ajustando o nível de dificuldade e, sobretudo,
incentivando a tomada de decisão ativa.
1. Ampliar a exposição a atividades com tomada de decisão
ativa para maximizar a transferência de habilidades: sempre que possível, os treinadores devem incluir
atividades que exijam tomada de decisão ativa, envolvendo oposição, como jogos
reduzidos/condicionados e jogos pré-desportivos. Estas atividades permitem que
os jogadores pratiquem habilidades em contextos semelhantes ao jogo real,
facilitando a aplicação das competências adquiridas em situações competitivas.
Para jogadores menos experientes, sugere-se uma introdução gradual de
oponentes, ajustando a complexidade da tarefa para evitar sobrecarga e garantir
um ambiente de aprendizagem eficaz.
2. Estruturar a sessão de treino para facilitar a
aquisição técnica: a exemplo dos treinadores participantes no estudo, as
sessões podem iniciar com atividades com tomada de decisão não ativa, como
exercícios técnicos sem oposição, para que os jogadores adquiram habilidades
motoras sem a pressão de adversários. Ao longo da sessão, gradualmente
introduzir atividades com tomada de decisão ativa, como jogos reduzidos,
permitindo que as ações técnicas sejam aplicadas em cenários mais próximos ao
jogo real. Esta sequência evita a sobrecarga mental e favorece a retenção da técnica
em contextos competitivos.
3. Incorporar abordagens baseadas em evidências na
conceção das atividades de treino: para incentivar o uso de práticas
eficazes, recomenda-se que os treinadores explorem versões simplificadas de
abordagens teórico-científicas, como o modelo baseado no desafio (Hodges &
Lohse, 2022) e a abordagem baseada nos constrangimentos (Renshaw et al., 2010).
Estas metodologias permitem ajustar a dificuldade das atividades às capacidades
das crianças, mantendo a tomada de decisão ativa. Seria ideal que as entidades
formadoras incluíssem exemplos práticos destas abordagens nos cursos de
formação de treinadores, oferecendo ferramentas que estimulem a aquisição de
habilidades e a sua transferência para o jogo. A colaboração entre
especialistas em desenvolvimento e aprendizagem motora e formadores de
treinadores é fundamental para tornar estas metodologias mais acessíveis e
aplicáveis no treino de futebol de base.
Conclusão
Este estudo investigou as atividades de treino utilizadas
por treinadores de futebol infantojuvenil em Inglaterra, bem como as suas
intenções. Os autores verificaram que os treinadores dedicam tempos semelhantes
a atividades que envolvem tomada de decisão ativa e não ativa, com o restante
tempo alocado a transições entre atividades. Foi identificado um padrão claro
de sequência nas sessões, começando com atividades com tomada de decisão não
ativa na primeira metade e passando para atividades de decisão ativa na
segunda, seguindo uma abordagem tradicional no treino de jovens jogadores. Os
treinadores enfatizaram que as práticas de decisão não ativa são essenciais
para o desenvolvimento da “técnica”, que poderá ser aplicada no jogo, embora esta
perceção possa divergir do entendimento científico atual.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua
portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos
autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão
original publicada na revista Science and Medicine in Football.