05/05/2020

Limitar o número de toques no exercício de treino de futebol: uma condicionante como as outras

Este texto surge na sequência de conversas e debates que tenho assistido neste período de quarentena. Se é real que esta pandemia tem sido nefasta, as medidas de confinamento implementadas também têm concedido tempo a muitas pessoas para refletir sobre as suas práticas profissionais e pessoais, e para se instruírem.

Em particular, no que respeita ao processo de treino, ou de ensino-aprendizagem, no futebol, tenho constatado que ainda subsistem muitos fundamentalismos em relação à conceção do exercício de treino: “não faço situações analíticas!”, “o uso de escadas de agilidade é proibido, só queremos futebol” ou “nunca imponho limite de toques no futebol de formação”. Se há coisa que tenho aprendido ao longo dos anos é a não adotar perspetivas extremistas, porque o futebol, como qualquer outra modalidade desportiva, não se pauta por metodologias pretas ou brancas, há que considerar toda a escala de tons cinzentos. A “prudência” é uma palavra-chave que não se coaduna com a palavra “nunca”.

Há uns anos, José Mourinho foi taxativo a afirmar que nunca promovia os designados “treinos-conjunto” (i.e., situações de jogo Gr+10v10+Gr em campo inteiro) nos seus microciclos. Ele justificou serem treinos generalistas e que não permitiam exacerbar determinados princípios de jogo que pretendia otimizar (Oliveira, Amieiro, Resende, & Barreto, 2006). Por um lado, é um ponto de vista válido, que produziu os resultados que todos conhecemos e que suporta a criação de atividades jogadas que impliquem a execução de comportamentos/ações, individuais ou coletivas, desejados pelo treinador. Por outro lado, será que as situações de jogo Gr+10v10+Gr devem ser totalmente descartadas do processo de treino? Não me parece sensato, quanto mais não seja por ser o meio que melhor representa, em termos de dificuldade e complexidade da tarefa, as condições de prática encontradas em competição. Por exemplo, pode ser utilizado para aferir o grau de cumprimento de ações e princípios previamente potenciados em exercícios que funcionem como “atractores do comportamento” (para mais detalhes, recomendo que leiam este excelente artigo de Rui Freitas).

Colocando o enfoque na limitação do número de toques (figura 1), urge compreender que uma condicionante do exercício ou um constrangimento da tarefa, para aqueles mais identificados com a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, é tão-só impor restrições aos comportamentos específicos permitidos pelas Leis do Jogo, em conformidade com a lógica interna da modalidade. Decorre que, ao limitarmos a manifestação de umas ações, estaremos a facilitar ou a enfatizar a execução de outras. Esta é uma ferramenta fulcral para o desempenho da função de treinador, devendo ser uma das suas principais preocupações adequar a tarefa proposta às necessidades e às capacidades (nível de prática) dos praticantes.

Figura 1. Exemplo de um jogo reduzido Gr+4v4+Gr (30x20m; 60 m2/jogador), com a adição da limitação do número de toques por intervenção sobre a bola.

Não fará de todo sentido impor um limite de toques a crianças Traquinas (Sub-8), cuja relação individual com a bola seja deficitária, pois o estímulo que precisam é exatamente o inverso. Segundo esta lógica, um Juvenil (Sub-16), com uma boa relação com a bola, poderá necessitar da limitação do número de toques se, aquando do momento de recuperação da posse, não dissocia o olhar do solo e progride, sistematicamente, para contextos de insucesso por desvantagem numérica. Admito que faço uso da limitação do número de toques, uma vez que defendo que a aplicação ponderada desta condicionante proporciona oportunidades de ação aos praticantes – as designadas “affordances” –, que, contrariamente, não seriam tão exploradas.

A literatura científica tem demonstrado que condicionar a intervenção de jogadores profissionais e semiprofissionais a um toque sobre a bola, comparativamente a contextos de jogo livre, tende a reduzir a eficácia da ação de passe e o número de duelos 1v1, no entanto, aumenta as exigências de movimento (distâncias percorridas em atividade de alta intensidade e sprint) e a capacidade de antecipar e ocupar espaços vazios antes dos defensores (Lemoine, Jullien, & Ahmaidi, 2005; Dellal, Chamari, Owen, Wong, Lago-Peñas, & Hill-Haas, 2011). No futebol de formação, há evidências de que jogar a dois toques por intervenção sobre a bola induz os jovens (no caso, Sub-13) a ler o jogo, tomar decisões e executar ações motoras de forma mais célere, sendo o envolvimento coletivo significativamente superior em relação ao mesmo formato de jogo disputado sem limite de toques (Almeida, Ferreira, & Volossovitch, 2012).

Acima de tudo, a introdução de quaisquer condicionantes/constrangimentos na prática deve estar associada à formulação das seguintes questões: "para quê?" (objetivo), "quando"? (parte da sessão ou microciclo) e "durante quanto tempo?" (dose/duração). É óbvio que não é profícuo passar uma sessão de treino ou um microciclo inteiro a trabalhar sobre as mesmas condições, pois produzem situações artificiais que, se subreutilizadas, criam maus hábitos (Paul, 2005; figura 2). Jogar só a dois toques/intervenção pode desenvolver um fantástico jogo de passe, porém, os jogadores não aperfeiçoam habilidades para resolver duelos 1v1. Na mesma linha de raciocínio, propor apenas jogos de dimensões reduzidas fomenta a adoção de um estilo de jogo apoiado, mas os jogadores não ficam afinados para procurar e utilizar espaços livres em profundidade, ou aptos para evidenciar uma linha defensiva coordenada no controlo do espaço em profundidade, sobretudo no futebol de 11. Tem de haver uma lógica subjacente aos objetivos definidos e à progressividade dos conteúdos, seja em qualquer nível do futebol sénior (amador, semiprofissional e profissional), como no futebol de formação.

Figura 2. Citação de Larry Paul (2005), presente no seu livro sobre o modelo de treino baseado nos jogos reduzidos.

Em suma, o processo de treino visa o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de comportamentos individuais ou coletivos, mais ou menos relevantes em função do contexto no qual estamos inseridos. Preparar um jogador para competir é dotá-lo de competências para lidar com as mais diversas circunstâncias com que se poderá deparar. Neste sentido, uma condição imposta num exercício, embora impossibilite temporariamente a execução de uma ação que o jogo pede, pode abrir graus de liberdade no futuro, contribuindo para a formação integral e/ou para o aumento do rendimento do praticante. O que importa é que o treinador encare o fenómeno de maneira a que haja adequabilidade (tarefa-praticante), representatividade (em relação ao jogo formal), coerência (objetivos, condicionantes e exercícios) e progressividade (lógica evolutiva dos conteúdos), mas não sejamos radicais: nem tanto à terra, nem tanto ao mar.


Referências
Almeida, C. H., Ferreira, A. P., & Volossovitch, A. (2012). Manipulating task constraints in small-sided soccer games: Performance analysis and practical implications. The Open Journal of Sports Sciences, 5, 174–180. doi: 10.2174/1875399X01205010193
Dellal, A., Chamari, K., Owen, A. L., Wong, D. P., Lago-Peñas, C., & Hill-Haas, S. (2011). Influence of technical instructions on the physiological and physical demands of small-sided soccer games. European Journal of Sport Science, 11(5), 341–346. doi: 10.1080/17461391.2010.521584
Lemoine, A., Jullien, H., & Ahmaidi, S. (2005). Technical and tactical analysis of one-touch playing in soccer – study of the production of information. International Journal of Performance Analysis in Sport, 5(1), 83–103. doi: 10.1080/24748668.2005.11868318
Paul, L. (2005). Playing better soccer is more fun: a complete guide to the small-sided games coaching model. Springfield, VA: Accotink Press.
Oliveira, B., Amieiro, N., Resende, N., & Barreto, R. (2006). Mourinho – Porquê tantas vitórias? Lisboa: Gradiva.

Sem comentários: