27/01/2022

Artigo do mês #25 – janeiro 2022 | Efeitos da mudança do treinador principal, no decurso da época, no desempenho coletivo no futebol sénior: evidências da Premier League, Bundesliga e La Liga

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Zart, S., & Güllich, A.

País: Alemanha

Data de publicação: 3-janeiro-2022

Título: In-season head-coach changes have positive short- and long-term effects on team performance in men’s soccer – evidence from the Premier League, Bundesliga, and La Liga

Revista: Journal of Sports Sciences

Referência: Zart, S., & Güllich, A. (2022). In-season head-coach changes have positive short- and long-term effects on team performance in men’s soccer – evidence from the Premier League, Bundesliga, and La Liga. Journal of Sports Sciences. https://doi.org/10.1080/02640414.2021.2014688

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 25 – janeiro de 2022.

 

Apresentação do problema

As mudanças de treinador principal, em pleno curso da época, são comuns no futebol profissional masculino. Por exemplo, nas 5 principais ligas europeias (Premier League inglesa, Ligue 1 francesa, Bundesliga alemã, Serie A italiana e La Liga espanhola), ocorreram 548 mudanças de treinadores nas últimas 10 épocas. No decurso da época, os despedimentos são tipicamente ocasionados por uma série de resultados menos conseguidos relativamente às expectativas da direção/administração dos clubes (Frick et al., 2010; Rocaboy & Pavlik, 2020). 

Este tópico tem sido extensivamente investigado no futebol profissional; entre 1997 e 2021, cerca de 40 estudos examinaram as performances coletivas antes e depois da mudança de treinador principal (figura 2). Os estudos referiram diversas hipóteses teóricas:


1)  A hipótese do “senso comum” (Grusky, 1963) defende que o treinador despedido é o responsável pela fase negativa da equipa. O novo treinador introduz novos impulsos e estratégias que conduzem a uma melhoria sustentada da performance a longo prazo.

2)  A hipótese do “bode expiatório” (Gamson & Scotch, 1964) também sugere que o treinador destituído é o responsável pelo decréscimo de rendimento da equipa. A direção/administração do clube substitui o treinador para transmitir que há consequências, embora a performance da equipa permaneça inalterada.

3)  A hipótese do “círculo vicioso” (Audas et al., 2002; Grusky, 1960) propõe que o sub-rendimento reside em problemas estruturais do clube, ao invés de ser responsabilidade do treinador principal e que a sua substituição não melhora os resultados da equipa.

4)  A hipótese da “reversão média” (Audas et al., 2002; Gamson & Scotch, 1964) implica que os resultados de uma equipa variam – em partes – em função de uma componente aleatória. A componente aleatória é reversível e um período de sub-rendimento é, provavelmente, seguido de um período de bons resultados, independentemente de haver ou não mudança do treinador principal.

 

Figura 2. Mudanças de treinador durante a época desportiva: o exemplo de Ole Gunnar Solskjær no Manchester United FC, em 2021/2022 (fonte: marca.com; imagem não publicada pelos autores).

 

A evidência científica existente tem originado conclusões contraditórias. Dezasseis estudos reportaram efeitos positivos da mudança de treinador principal na performance da equipa em plena época, incluindo 12 de curto prazo (i.e., 1–6 jornadas) e 10 de longo prazo (> 6 jornadas); 11 estudos demonstraram não haver quaisquer efeitos (5 no curto e 8 no longo prazo); e 13 estudos revelaram a existência de efeitos negativos (6 no curto e 10 no longo prazo). No entanto, a heterogeneidade destas constatações pode estar parcialmente relacionada com a diversidade de abordagens metodológicas propostas nestes estudos. 

O presente estudo procurou circunscrever os problemas metodológicos previamente encontrados ao focar-se exclusivamente em mudanças de treinador principal no decurso de épocas recentes (2010–2019); envolvendo 3 das ligas domésticas mais conceituadas internacionalmente; combinando um design emparelhado (pré-pós) e um design de comparação de pares com grupo de controlo, tendo em consideração a performance das equipas de controlo e o seu percurso ao longo do tempo na mesma época; analisando as performances pré e pós-mudança de treinador principal numa época; distinguindo os desempenhos pré e pós-mudança de treinador a curto, médio e longo prazo; excluindo os resultados obtidos por treinadores interinos provisórios; e usando como indicador de performance os pontos conquistados por uma equipa em relação aos pontos esperados por jogo, equacionando a qualidade da equipa adversária e a localização do jogo (casa ou fora). 

As hipóteses teóricas discutidas na literatura implicam diferentes previsões a respeito do desenvolvimento da performance da equipa ao longo do tempo:


·      A hipótese “senso comum” vaticina que a mudança de treinador é seguida de uma melhoria sustentada da performance a longo prazo, sendo que a melhoria suplanta o registo da equipa imediatamente antes da mudança de treinador e o nível de desempenho num período prévio mais longo;

·      As hipóteses “bode expiatório” e “círculo vicioso” anteveem que a equipa mantém o sub-rendimento que havia manifestado antes da mudança de treinador principal;

·      A hipótese da “reversão média” prevê o retorno ao nível inicial independentemente de haver ou não mudança de treinador principal.

 

Como complemento a estas hipóteses, os autores sugeriram uma nova hipótese com base na opinião pessoal de 6 treinadores da Bundesliga alemã: a insatisfação dos jogadores com o treinador principal aumenta gradualmente (e.g., liderança autoritária, regime de controlo excessivo da vida privada dos jogadores, discordância com o papel na equipa ou com o tempo de jogo, etc.) e, em certo ponto, leva à redução do compromisso de diversos jogadores ou ao incumprimento de indicações estratégico-táticas, determinando que o treinador principal seja um fator supressor da performance coletiva. A mudança de treinador principal pode remover imediatamente este fator de limitação da performance, originando a hipótese de “alívio do fator supressor gerado pelo treinador principal”. Esta nova hipótese supõe que a mudança de treinador principal acarreta um alívio imediato da carga negativa sobre os jogadores, determinando uma melhoria subsequente do rendimento coletivo.

 

Métodos

Amostra: os dados foram retirados de dois websites públicos: kicker.de e transfermarket.com, considerando todos os jogos disputados, entre as épocas 2010/2011 e 2018/2019, na Premier League inglesa, Bundesliga alemã e La Liga espanhola (futebol masculino). Neste período, ocorreram 149 mudanças de treinador principal com a época competitiva em curso: 46 na Premier League, 41 na Bundesliga e 62 na La Liga. A frequência total de mudança de treinador principal variou entre as 11 e as 19 por época. 

Procedimentos: para todos os jogos da amostra, os autores recolheram as classificações das equipas visitada e visitante, o diferencial classificativo entre elas e o resultado do jogo. A informação relativa às primeiras 4 jornadas foi excluída, uma vez que estas jornadas não representam de forma fiável a qualidade real das equipas, por força de inúmeros fatores aleatórios que causam “ruído” nos resultados. A amostra envolveu, assim, 8550 jogos. O diferencial corrente de classificação entre as equipas em confronto permitiu a estimação dos pontos esperados para as equipas visitada e visitante em cada jornada (tabela 1). A performance foi medida como o quociente de pontos alcançados/pontos esperados para cada jogo.

 

Tabela 1. Média de pontos alcançados em jogos em casa (home) e fora (away), dependendo do diferencial de classificação de uma equipa em relação ao adversário em cada jornada. Amostra: n = 8550 jogos disputados da 5.ª jornada em diante na Premier League inglesa, Bundesliga alemã e La Liga espanhola, entre as épocas 2010/2011 e 2018/2019. 16+ = 16 ou mais posições de diferença (Zart & Güllich, 2022).


Análise estatística: as análises foram realizadas no software SPSS 26. A estatística descritiva incluiu frequências absolutas, médias e desvios-padrão. As diferenças intra-equipa (pré vs. pós-mudança de treinador principal) foram avaliadas através de testes t para amostras emparelhadas. As interações entre os fatores “grupo” (mudança de treinador vs. controlo) e “tempo” (medidas repetidas) foram verificadas através de uma ANOVA para medidas repetidas. Em caso de violação das assunções de aplicabilidade de testes paramétricos, foram aplicados testes não paramétricos equivalentes. O nível de significância foi estabelecido para p < 0.05 e as dimensões de efeito foram reportadas em valores de Cohen’s d, ou de eta ao quadrado parcial (η2p).

 

Principais resultados

 

·      Análise 1

A figura 3 exibe o desenvolvimento da performance das equipas que tiveram mudança(s) de treinador principal ao longo da época. Esta análise contempla duas variantes: por jornada (painel A) e por blocos de 4 jornadas (painel B).

 

Figura 3. Performance média antes e depois da mudança de treinador principal. Painel A: análise por jornada. Painel B: análise por blocos de 4 jornadas. Quadrados brancos: período de observação J-8 a J+8 (n = 149); quadrados cinzentos: período de observação J-12 a J+12 (n = 86); quadrados pretos: período de observação J-16 a J+16 (n = 39). Valores de p indicam diferenças significativas na performance intra-equipa pré vs. pós-mudança de treinador principal (Zart & Güllich, 2022).

 

Em média, o despedimento do treinador principal foi precedido de um período de sub-rendimento das equipas, com um colapso evidente do desempenho coletivo nas duas jornadas que antecederam a mudança de treinador. Após esta mudança, as performances das equipas sofreram uma melhoria imediata na primeira jornada com o novo treinador, mantendo-se acima do nível observado imediatamente antes do despedimento, ao longo das 16 jornadas subsequentes (longo prazo). A performance pós-mudança de treinador também excedeu o nível de desempenho inicial das equipas, isto é, no período entre a 12.ª e a 5.ª jornada pré-mudança. Assim, o desempenho agregado nas 8, 12 e 16 jornadas pós-mudança de treinador excedeu o desempenho agregado nas 8, 12 e 16 jornadas pré-mudança.

 

·      Análise 2

Os resultados da segunda análise estão expressos na figura 4.

 

Figura 4. Performance média antes e depois da mudança de treinador principal (quadrados pretos: grupo de equipas com mudança de treinador; quadrados cinzentos: grupo de equipas de controlo). Painel A: posição classificativa por jornada. Painel B: performance média por jornada. Painel C: performance média por blocos de 4 jornadas. Valores de p indicam diferenças significativas na performance intra-equipa pré vs. pós-mudança de treinador principal. Valores de p das interações indicam diferenças significativas entre grupos (mudança de treinador vs. controlo), em relação à alteração da performance ao longo do tempo (i.e., interação grupo x medida repetida) (Zart & Güllich, 2022).

 

O grupo de equipas com mudança de treinador e o grupo de equipas de controlo tiveram níveis e trajetórias equivalentes nas classificações (painel A) e performances (painéis B e C) ao longo das 8 jornadas prévias à mudança de treinador. Contudo, o desenvolvimento do desempenho pré vs. pós no grupo com mudança de treinador principal diferiu significativamente do grupo das equipas de controlo. Em suma, as evidências sugerem que a mudança de treinador principal acarreta efeitos positivos nas performances das equipas a curto, médio e longo prazo.

 

Discussão

As evidências deste estudo permitiram uma avaliação diferenciada das hipóteses teóricas discutidas na literatura:


·      As hipóteses “bode expiatório” (Gamson & Scotch, 1964) e “círculo vicioso” (Grusky, 1960) não foram confirmadas, uma vez que o desempenho pós-mudança de treinador principal melhorou com a entrada do novo treinador.

·      A hipótese “senso comum” (Grusky, 1963) é consistente com o efeito positivo da mudança de treinador observado a longo prazo, relativamente ao desempenho prévio da equipa (pré-mudança). Contudo, as hipóteses de “senso comum” e da “reversão média” (Audas et al., 2002; Gamson & Scotch, 1964) não foram validadas pelo aumento imediato da performance após a mudança de treinador principal, i.e., de J-1 a J+1. A hipótese da “reversão média” está em desacordo com as diferenças significativas verificadas, entre o grupo de equipas com mudança de treinador e o grupo de equipas de controlo, a respeito da evolução da performance competitiva.

·      Os resultados apresentados são consistentes com a nova hipótese adiantada: “alívio do fator supressor gerado pelo treinador principal”. Segundo esta, a mudança de treinador principal surge associada a um alívio imediato do fator limitador provocado pelo antigo treinador nos jogadores, que, direta ou indiretamente, os faria jogar abaixo das suas capacidades atuais de desempenho e/ou gorar instruções de cariz estratégico-tático.

 

Aplicações práticas

Quando uma fase de sub-rendimento coletivo surge associada ao treinador principal como fator limitador da performance, com uma manifestação observável – ainda que ligeira ou situacional –, de decréscimo do desempenho de vários jogadores, uma mudança de treinador implicará, muito provavelmente, uma melhoria subsequente do rendimento da equipa. 

A existência de um projeto desportivo bem formulado e a utilização de diversos meios/métodos no recrutamento do treinador/equipa técnica são aspetos fulcrais para precaver a mudança de treinador. Neste contexto, o alinhamento do clube e da sua estrutura diretiva/administrativa com a equipa técnica é essencial para a manutenção da estabilidade interna, encaminhando qualquer equipa profissional para a concretização de múltiplos objetivos estabelecidos a curto, médio e longo prazo.

 

Conclusão

Este estudo investigou os efeitos da mudança de treinador principal, no decurso da época, na performance posterior da equipa nas principais ligas masculinas de futebol em Inglaterra, Alemanha e Espanha. Os efeitos observados não podem ser atribuídos a potenciais variáveis de confusão, já que a qualidade das equipas, a localização do jogo, a intervenção de treinadores interinos e as variações temporais ao nível dos planteis e dos orçamentos foram devidamente controladas. Além disso, a variação aleatória da performance coletiva foi acautelada através de dois tipos de análise: jornada a jornada e em blocos de 4 jornadas. Em suma, as evidências sugerem que a mudança de treinador principal produz efeitos positivos a curto, médio e longo prazo, ao mais alto nível do futebol profissional. As hipóteses teóricas discutidas na literatura – “senso comum”, “bode expiatório”, “círculo vicioso” e “reversão média” – são parcialmente inconsistentes em relação aos resultados apresentados. Apesar disso, os dados suportam na íntegra a nova hipótese ora proposta: o alívio do fator supressor provocado pelo (antigo) treinador principal na performance da equipa.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

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