24/02/2023

Artigo do mês #38 – fevereiro 2023 | Aquecimento para o Campeonato do Mundo de 2022 no Catar: A evolução da marcação do golo nos últimos 14 Campeonatos do Mundo da FIFA (1966–2018)

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Mićović, B., Leontijević, B., Dopsaj, M., Janković, A., Milanović, Z., & Garcia Ramos, A.

País: Sérvia

Data de publicação: 4-janeiro-2023

Título: The Qatar 2022 World Cup warm-up: Football goal-scoring evolution in the last 14 FIFA World Cups (1966–2018)

Referência: Mićović, B., Leontijević, B., Dopsaj, M., Janković, A., Milanović, Z., & Garcia Ramos, A. (2023). The Qatar 2022 World Cup warm-up: Football goal-scoring evolution in the last 14 FIFA World Cups (1966–2018). Frontiers in Psychology, 13, 954876. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.954876

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 38 – fevereiro de 2023.

 

Apresentação do problema

No futebol, a performance é determinada por uma interação complexa de fatores técnicos, táticos, físicos e mentais (Drust et al., 2007). Deste modo, é necessário examinar os comportamentos competitivos em detalhe para extrair informação relevante sobre a performance individual (jogadores) ou coletiva (equipas). Para este efeito, a metodologia observacional permite recolher dados de múltiplas variáveis que interagem em contextos competitivos (Anguera & Hérnandez-Mendo, 2015), constituindo, também, uma ferramenta flexível, já que os profissionais podem adaptar os procedimentos de recolha de informação às suas necessidades (Ortega-Toro et al., 2019). 

O golo, sendo o elemento crucial para determinar o resultado de um jogo de futebol, tem sido um dos aspetos mais investigados no âmbito da análise do jogo (Armatas & Yiannakos, 2010; Vergonis et al., 2019; Wallace & Norton, 2014). No entanto, além de a maioria dos estudos se limitar a uma competição específica, tanto a nível nacional, como a nível internacional (e.g., Cebi et al., 2016; Kubayi, 2020), há poucos dados sobre como o futebol jogado tem evoluído ao longo de várias décadas. Sabe-se que a evolução do futebol tem resultado em alterações nas exigências físicas, técnicas e táticas do jogo. Por exemplo, entre as finais dos Campeonatos do Mundo da FIFA de 1966 e 2010, foi observada uma redução do espaço efetivo de jogo e aumentos significativos da velocidade da bola e do número de passes executados por minuto (15% e 35%, respetivamente) (Wallace & Norton, 2014). As questões que ora se colocam é se, e como, todas estas mudanças têm afetado as ações de concretização do golo nas últimas décadas, em particular, a marcação de golos em fases finais de Campeonatos do Mundo, uma prova-chave para compreender como o futebol evolui. 

O olhar sobre algumas das investigações mais recentes sobre a marcação do golo em campeonatos profissionais permitiu concluir o seguinte:

·     75,9% dos golos na UEFA Champions League 2016/2017 foram marcados de bola corrida (González-Ródenas et al., 2021);

·     20–30% dos golos são concretizados através de bola parada (Armatas & Yiannakos, 2010; Njororai, 2013; González-Ródenas et al., 2019);

·     63,9%, 23,1% e 13% dos golos foram marcados a partir de posses de bola iniciadas nos terços ofensivo, intermédio e defensivo do campo, respetivamente (Vergonis et al., 2019);

·     50,5% dos golos foram marcados após 2 ou menos passes, 19% dos golos após 3–4 passes e 31,1% na sequência de 5 ou mais passes (Kubayi, 2020);

·     69,9% das ações de golo surgiram depois de passes curtos (<30 metros) (Kubayi, 2020);

·     As ações que originaram golo resultaram de comportamentos coletivos em 51,6% das ocasiões, enquanto 10,5% das ações de finalização foram construídas através de jogadas individuais (figura 2) (González-Ródenas et al., 2021).

 

Figura 2. Golo de Diego Maradona após jogada individual, diante da Inglaterra, nos quartos-de-final do Mundial do México, em 1986 (imagem não publicada pelos autores; créditos: © Action Images).

 

Até à data, raros foram os estudos que analisaram a marcação do golo em múltiplos Campeonatos do Mundo da FIFA consecutivos; porém, entre outros aspetos, é sabido que a maioria dos golos se marca no período entre os 76 minutos e o final da partida (Armatas et al., 2007; Leite, 2013; Kubayi & Toriola, 2019). Do ponto de vista tático-técnico, Kubayi e Toriola (2019) examinaram, também, o modo como foram concretizados os golos em 5 Campeonatos do Mundo consecutivos (1998–2014). Estes autores apuraram, por exemplo, que a maior parte dos golos foram concretizados dentro da área de penálti (53,6%), seguido de dentro da área de baliza (23,8%). Contudo, no cômputo geral, há uma escassez gritante de análises longitudinais que permitam, por um lado, estabelecer perspetivas paralelas entre diferentes períodos da história do futebol e, por outro lado, compreender como as ações determinantes das situações de golo têm evoluído no decurso dessa mesma história. 

Portanto, o objetivo do estudo consistiu em identificar padrões das ações ofensivas que originaram golos em 14 Campeonatos do Mundo da FIFA consecutivos (1966–2018), incluindo a análise do período do golo e das ações técnicas e dos aspetos táticos prévios à sua concretização. Os autores colocaram a hipótese de que o período e as zonas do golo, bem como as características individuais dos jogadores, se alterariam ao longo da história dos Mundiais de futebol.

 

Métodos

Amostra: 1881 golos marcados em 732 partidas disputadas em 14 Campeonatos do Mundo da FIFA consecutivos, entre 1966 e 2018. Os golos marcados nos desempates através de pontapés de penálti não foram incluídos. 

Procedimentos de recolha de dados: todos os registos de vídeo para a análise foram obtidos no website https://footballia.net. Os clips de cada golo foram analisados através do software iMovie, de forma independente, por 4 observadores experientes (3 doutorados em Ciências do Desporto e 1 doutorando, com, pelo menos, 7 anos de experiência como analistas de futebol). Os tempos de jogo aquando da marcação dos golos foram retirados do sítio oficial da FIFA (https://www.fifa.com). Na tabela 1 constam as definições operacionais propostas para o estudo.

 

Tabela 1. Definições operacionais e categorias das variáveis dependentes analisadas no estudo (adaptado de Mićović et al., 2023).


Fiabilidade: todas as variáveis foram testadas para verificar a fiabilidade intra e interobservador. Foram aleatoriamente analisados 244 dos 1881 golos (13%) que compuseram a amostra. Os valores de Kappa de Cohen para a testagem intraobservador variaram entre 0.82 (marcação de golo de bola corrida) e 1.00 (ação que origina o golo), o que demonstra um elevado nível de acordo para todas as variáveis de performance. Foi, ainda, calculado o Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC) para avaliar a fiabilidade interobservador, revelando, também, valores muito elevados (ICC = 0.966, com intervalo de confiança de 95% entre 0.933 e 1.00). 

Análise estatística: todas as variáveis foram inseridas numa folha do Microsoft Excel® para o Mac 2011 e, posteriormente, as análises foram realizadas com o software IBM® SPSS Statistics (v. 19.0). Os autores recorreram ao teste do Qui-quadrado para identificar diferenças significativas na frequência/timing dos golos marcados e calcularam os valores de Cramer’s V para apurar as respetivas dimensões de efeito, em função dos seguintes valores de corte (pequeno = 0.10; médio = 0.30; grande = 0.50; Cohen, 1988). No intuito de examinar a tendência de alterações nas variáveis investigadas, em função da edição do Campeonato do Mundo (variável independente), foi empregue uma análise de regressão linear. O nível de significância foi definido em 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados

A média mais alta de golos por jogo foi registada no Mundial de 1970, no México (2,97), enquanto o inverso foi observado no Mundial de 1990, em Itália (2,21). Marcaram-se mais golos nas segundas partes dos jogos (56,3%), sendo que, nas primeiras partes e nos prolongamentos, as percentagens situaram-se nos 41,1% e nos 2,6%, respetivamente. 

A distribuição de golos pelos períodos de 15-min dos jogos não diferiu significativamente ao longo do tempo, i.e., em função das diversas edições do Campeonato do Mundo da FIFA. Na generalidade, foram concretizados mais tentos no último período do tempo regulamentar (76–90’+; 22,7%). Quanto à distribuição das zonas de marcação de golo, também não foi verificada a existência de diferenças significativas relativamente às diversas edições da prova. Foram marcados mais golos na área de penálti (54,7%), seguindo-se a área de baliza (21,3%), fora da área de penálti (15,6%) e da marca de grande penalidade (8,9%). 

As variáveis “ação que origina o golo” e a “parte do corpo usada para marcar golo” obtiveram associações significativas com a edição do Campeonato do Mundo da FIFA, mas com dimensões de efeito pequenas. Se, por um lado, a finalização a 1 toque foi dominante na concretização do golo (62,5%), comparativamente a 2 toques (19,2%) e mais de 2 toques (18,3%), por outro lado, a evolução do jogo tem ditado um aumento significativo da finalização ao primeiro toque, com o respetivo decréscimo do número de finalizações após 2 ou mais toques sobre a bola. No que respeita à parte do corpo utilizada para finalizar, a maioria das ações foi executada com o membro inferior direito (51,6%), seguida do membro inferior esquerdo (28%), do cabeceamento (17,8%) e de autogolo (2,6%). Contudo, tem-se verificado um decréscimo da utilização do membro inferior direito e um aumento do recurso ao membro inferior esquerdo e, sobretudo, à ação de cabeceamento. A variação do número de autogolos foi errática, mas aumentou bruscamente no último Mundial da amostra: Rússia 2018. 

Em golos de bola corrida, o fator tempo não produziu diferenças significativas no tipo da penúltima ação executada previamente ao golo, quer em circunstâncias coletivas (tipo de passe), quer em ações estritamente individuais. Em contextos de jogada dinâmica, 55,8% dos golos foram concretizados após passe de um companheiro de equipa e 44,2% como resultado de jogadas individuais. O grosso dos golos obtidos através de ações coletivas adveio de passes de rotura (46,6%), seguindo-se de cruzamentos (39,1%) e de passes recuados (14,3%). Nas ações individuais que originaram golo, destacou-se a categoria “recolha de bola perdida” (39,7%), comparando com “remate de longe” (33,4%), “drible” (19,6%) e “condução de bola” (7,3%). 

Um total de 70,5% dos golos foram obtidos através de jogada corrida, contrastando com os 29,5% de golos marcados em situações fixas do jogo (bolas paradas). A análise de regressão linear demonstrou uma influência significativa do fator tempo (i.e., sucessão dos 14 Mundiais analisados) nos diferentes tipos de jogada (figura 3) e na penúltima ação prévia ao golo (figura 4). No período entre 1966 e 2018, por cada Campeonato do Mundo da FIFA, a frequência de golos marcados através de bola parada aumentou 0,27% e os golos obtidos após jogadas coletivas sofreu um incremento de 0,28%. Ao invés, a preponderância de golos de bola corrida e de golos criados através de jogadas individuais tem vindo a diminuir progressivamente.

 

Figura 3. Análise de regressão da frequência de golos marcados através dos diferentes tipos de jogada (bola corrida – cinzento vs. bola parada – preto), ao longo dos 14 Mundiais analisados (Mićović et al., 2023).

 

Figura 4. Análise de regressão da frequência do tipo da penúltima ação prévia ao golo (ação coletiva – cinzento vs. ação individual – preto), ao longo dos 14 Mundiais analisados (Mićović et al., 2023).

 

Aplicações práticas

O estudo reforça que a maioria dos golos no futebol de elite são marcados no último período do tempo regulamentar, ou seja, entre o 76.º minuto e o final do jogo. É um período marcado pela acumulação de fadiga física e mental, o que tende a ocasionar mais erros tático-técnicos. Por outro lado, é, também, uma fase do jogo em que as equipas tendem a adotar estratégias mais arriscadas, sobretudo, se as circunstâncias associadas ao resultado forem desfavoráveis. É, por isso, fundamental que o processo de treino considere o trabalho tático-técnico em contextos de fadiga acumulada e vise a otimização de estratégias (ofensivas e defensivas) eficazes, tanto na persecução do golo, como na manutenção do equilíbrio defensivo. 

Os resultados indicam que a parte do corpo mais frequentemente utilizada nas ações de finalização para golo (i.e., membro inferior direito) nos Campeonatos do Mundo da FIFA tem vindo a perder preponderância. Desde as etapas de formação de base, recomenda-se que os praticantes pratiquem sistematicamente métodos de treino associados à finalização, mas nos quais a variabilidade e a diversidade de ações surjam ampliadas (utilização dos 2 membros inferiores, cabeceamentos, área de penálti, área de baliza, fora da área, etc.). Além disso, a frequência dos golos concretizados através de penálti tem vindo a aumentar, ao que não estará alheio a introdução do Video Assistant Referee (VAR). As grandes penalidades são treináveis e não são um mero resultado do acaso, pelo que, no planeamento do microciclo semanal, deve ser dedicado algum tempo para refinar a eficácia dos jogadores de campo e dos guarda-redes nestes eventos específicos do jogo. 

Por força da diminuição progressiva do espaço efetivo de jogo, como consequência de organizações defensivas mais coordenadas e dinâmicas, não é estranho que a finalização ao primeiro toque tenha vindo a adquirir importância ao longo da história dos Mundiais de futebol. Não há tempo para 1 ou 2 toques a mais! Na conceção de tarefas de treino, este aspeto é vital: o tempo que os atacantes dispõem para finalizar é muito limitado. Assim, contextualizar o espaço e as características da oposição nas tarefas propostas pode ser determinante para encorajar a antecipação, a prontidão e a precisão dos jogadores nas ações de remate ou de cabeceamento. 

O acréscimo da relevância de ações coletivas prévias à marcação de golo surge na mesma linha de raciocínio do ponto anterior. A crescente qualidade defensiva das equipas, com a redução do espaço intersetorial e uma maior concentração de jogadores no corredor da bola, implica que as ações individuais sejam anuladas mais frequentemente. O recurso a passes de rotura para quebrar linhas defensivas adiantadas é, neste âmbito, um tipo de ação coletiva sugestivo para criar situações de finalização no futebol de elite. Do ponto de vista individual, embora o drible seja uma ação atrativa e muito apreciada pelos espetadores, os dados não indicaram ser um comportamento determinante para a obtenção de um número substancial de golos na competição. De qualquer modo, a capacidade de ultrapassar adversários diretos e de perturbar organizações defensivas compactas deve ser valorizada e incentivada no processo de treino, em particular, desde tenra idade. 

A quantidade de golos através de esquemas táticos (bolas paradas) tem vindo a aumentar na história recente dos Mundiais de futebol, ao invés do que sucede com os golos obtidos através de jogada corrida. A título ilustrativo, no Mundial 2018 cerca de 40% dos golos foram obtidos de bola parada. As perguntas que se impõem são: será que a composição dos microciclos das seleções nacionais, nas semanas prévias ao Campeonato do Mundo, está ajustada a esta tendência evolutiva do jogo? Quanto tempo é (ou deve ser) dedicado a aprimorar pontapés de canto, pontapés-livres, lançamentos laterais e penáltis ofensivos? As respostas a estas questões constituem, por si só, a aplicação prática.

 

Conclusão

Este estudo evidenciou que algumas das variáveis analisadas demonstraram consistência ao longo dos Campeonatos do Mundo da FIFA disputados entre 1966 e 2018: “período do jogo” (marcaram-se mais golos no último período do tempo regulamentar: 76–90’+), “zona de concretização do golo” (mais golos dentro da área de penálti) e “ação que originou golo” (mais golos marcados ao primeiro toque). As características individuais essenciais para alcançar o golo nos Mundiais também permaneceram constantes e incluíram a recolha de bola perdida e o remate de longe. 

Por sua vez, os resultados do estudo revelaram que as alterações nas dimensões física, tática e técnica, ao longo do tempo, causaram uma modificação nas determinantes comportamentais associadas às situações de concretização de golo, em particular, no “tipo de jogada” e na “penúltima ação”. Nos 14 Mundiais examinados, comprovou-se a existência de uma tendência crescente de golos marcados através de bolas paradas e de ações ofensivas coletivas. O acréscimo da qualidade defensiva das equipas, com uma redução significativa da área de jogo efetiva dos oponentes, pode explicar em parte as tendências evolutivas assinaladas.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Psychology.

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