25/02/2020

Artigo do mês #2 – fevereiro 2020 | Variáveis táticas associadas à recuperação da posse de bola em zonas avançadas do campo (futebol profissional)

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Javier Fernandez-Navarro, Carlos Ruiz-Ruiz, Asier Zubillaga, & Luis Fradua
Título: Tactical variables related to gaining the ball in advanced zones of the soccer pitch: Analysis of differences among elite teams and the effect of contextual variables
Revista: Frontiers in Psychology
País: Espanha
Referência:
Fernandez-Navarro, J., Ruiz-Ruiz, C., Zubillaga, A., & Fradua, L. (2020). Tactical variables related to gaining the ball in advanced zones of the soccer pitch: Analysis of differences among elite teams and the effect of contextual variables. Frontiers in Psychology, 10, 3040. doi: 10.3389/fpsyg.2019.03040 (link)

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês #2 - fevereiro 2020.

Apresentação do problema
No âmbito da análise da performance do futebol não é novidade que a maioria dos estudos tem centrado a investigação em torno do processo ofensivo, designadamente, incidindo nos comportamentos individuais e/ou coletivos conducentes à concretização do golo. Nos últimos anos, porém, a fase defensiva começou a ser alvo de análise, sobretudo, no que à caracterização dos métodos empregues por equipas de elite diz respeito. Sabe-se, por exemplo, que equipas mais bem-sucedidas tendem a recuperar a posse de bola em menos tempo após a perderem para a equipa adversária (Vogelbein et al., 2014) e que equipas visitadas (i.e., jogar em casa), equipas em desvantagem no marcador e equipas qualitativamente mais fortes tendem a recuperar a bola em zonas mais adiantadas do terreno de jogo (Almeida et al., 2014).

De facto, a caracterização dos estilos de jogo defensivo adotados pelas equipas é bastante útil para descrever e compreender as diferentes abordagens táticas em competição, bem como os seus efeitos práticos. Contudo, para que esse intento seja alcançado na plenitude, é necessário integrar diversas variáveis contextuais e de performance na mesma análise. Deste modo, tendo como referência para a avaliação tática das equipas os processos defensivos iniciados no meio-campo defensivo adversário, este estudo visou: (1) examinar os comportamentos defensivos de equipas de futebol quando recuperam a posse de bola em zonas adiantadas do campo, analisando eventuais diferenças entre elas; e, (2) avaliar o efeito de variáveis contextuais nos comportamentos defensivos.

Métodos
Amostra: consistiu em 1095 sequências de jogo defensivas iniciadas no meio-campo adversário, recolhidas de 10 jogos da La Liga espanhola, na época 2010/2011. As duas equipas participantes nos jogos foram analisadas, resultando na inclusão de 13 equipas na amostra. A unidade de análise foi a sequência de jogo defensiva, começando quando a equipa atacante (re)conquista a posse de bola no seu próprio meio-campo e finalizando quando a equipa defensora recupera a posse de bola, de acordo com os critérios estipulados pelos autores.

Procedimentos de recolha de dados: os eventos de jogo foram registados através do sistema de rastreio semiautomático Amisco Pro®. Basicamente, este sistema rastreia os movimentos da bola e de todos os jogadores ao longo do jogo, permitindo a reconstrução bidimensional desses movimentos e, posteriormente, a análise das equipas e dos jogadores. Os investigadores tiveram permissão da Amisco para recolher os dados e o estudo foi previamente aprovado pelo Comité de Ética da Universidade de Granada. A fiabilidade intra e inter-observador foi assegurada por dois operadores, obtendo bons valores de acordo para a variável categórica “resultado da sequência de jogo defensiva” (outcome of defensive pieces of play: jogada perigosa concedida; bola recuperada na zona transversal 1; bola recuperada na zona 2; bola recuperada na zona 3; bola recuperada na zona 4; bola recuperada na zona 5; bola recuperada na zona 6; ver figura 2) e para as variáveis contínuas “distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” (distance from least advanced outfield defender to his goal line), “distância entre o jogador em posse de bola para o defensor mais próximo” (distance between the player in possession of the ball to the nearest defender), “comprimento do passe” (pass length), “número de passes” (pass number) e “duração” (duration). As variáveis contextuais utilizadas foram as seguintes: “localização do jogo” (match location: casa ou fora); “resultado corrente do jogo” (match status: a vencer, empatado ou a perder); “qualidade da oposição” (quality of opposition: aferido em função da classificação final: 1.º - 6.º lugar, 7.º - 13.º lugar ou 14.º - 20.º lugar); “período do jogo” (match period: 1-15 minutos, 16-30 minutos, 30-45 minutos mais tempo adicional, 46-60 minutos, 61-75 minutos ou 75-90 minutos mais tempo adicional).

Figura 2. Modo de animação do sistema Amisco Pro, com as 6 zonas transversais representadas (adaptado de Fernandez-Navarro et al., 2020).

Análise estatística: (1) tabelas de contingência considerando as variáveis de performance e contextuais definidas e as diversas equipas incluídas na amostra, com verificação dos valores de p e as respetivas dimensões de efeito consoante o tipo de teste utilizado (variáveis contínuas ou categóricas); (2) análise de cluster para agrupar as variáveis defensivas em grupos passíveis de descrever diferentes estilos de jogo defensivo. Em todas as análises foi adotado um nível de significância de 5% (p ≤ 0.05).

Principais resultados
Os autores mostraram a existência de diferenças significativas entre as equipas observadas nas zonas de recuperação de bola. O FC Barcelona foi a equipa que demonstrou maior probabilidade, em relação à média, de recuperar a bola em zonas mais adiantadas do campo (figura 3), o que comprova que este é um indicador de performance que discrimina as equipas mais bem-sucedidas.

Figura 3. Imagem de marca - o FC Barcelona da atualidade a impor pressão defensiva em zonas adiantadas do terreno de jogo.

As variáveis contextuais “resultado corrente do jogo” e “qualidade da oposição” estabeleceram uma relação significativa com o “resultado da sequência de jogo defensiva”, embora o mesmo não tivesse sido constatado para as variáveis “localização do jogo” e “período do jogo”. Em vantagem no marcador, as equipas recuperaram mais vezes a posse de bola na zona 1, enquanto que, com um resultado desfavorável, recuperaram menos vezes a bola nas zonas 1 e 2 e mais vezes na zona 5 (mais próxima da baliza adversária). Por outro lado, quanto maior for a qualidade da equipa oponente, menor é a probabilidade de recuperar a bola em zonas do campo mais avançadas. Verificaram-se diferenças significativas entre as equipas em todas as variáveis de performance contínuas, à exceção da variável “comprimento do passe”, que especifica o comprimento do último passe executado pela equipa adversária (em processo ofensivo) antes de perder a posse de bola para a equipa em análise (em processo defensivo).

A análise de cluster determinou a formação de 4 grupos em função das variáveis de performance e contextuais investigadas (figura 4):
·      Cluster 1 – bloco defensivo próximo da própria baliza (“duração” e “número de passes” elevados e “distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” reduzida);
·      Cluster 2 – bloco intermédio recorrendo a menor pressão defensiva sobre os jogadores atacantes (“comprimento de passe” e “distância entre o jogador em posse de bola para o defensor mais próximo” elevados, e “duração”, “número de passes” e “distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” intermédios);
·      Cluster 3 – bloco intermédio pressupondo pressão intensiva mais frequente sobre os jogadores atacantes (“duração”, “número de passes” e “distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” intermédios, e “comprimento de passe” e “distância entre o jogador em posse de bola para o defensor mais próximo” reduzidos);
·      Cluster 4 – pressão defensiva alta exercida em zonas avançadas do terreno de jogo (“distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” elevada, e “duração”, “número de passes”, “comprimento do passe” e “distância entre o jogador em posse de bola para o defensor mais próximo” reduzidos).

Figura 4. Percentagem de sequências de jogo defensivas iniciadas no meio-campo adversário pelas diferentes equipas, em função dos clusters apurados (Fernandez-Navarro et al., 2020). 

A contribuição relativa das variáveis para a formação de cada cluster permitiu identificar a importância de cada preditor (predictor importance – PI) nesta análise. Eis a importância de cada uma das variáveis preditivas, por ordem decrescente: “duração” da sequência ofensiva adversária (PI = 1.00); “número de passes” permitidos à equipa adversária (PI = 0.88); “distância do defensor menos adiantado para a sua linha de golo” (PI = 0.65); “comprimento do passe” (PI = 0.59); “distância entre o jogador em posse de bola para o defensor mais próximo” (PI = 0.25). A importância relativa das variáveis contextuais para a análise de cluster foi muito baixa (PI ≤ 0.02).

Implicações práticas
Os treinadores de equipas profissionais devem utilizar esta forma de aglutinar variáveis para a aferir o perfil da sua equipa e/ou dos adversários, no que concerne ao comportamento defensivo, para melhor preparar o coletivo para as vicissitudes da competição. Contudo, aquando da análise do desempenho em jogo competitivo, as equipas técnicas devem atentar ao facto de variáveis contextuais poderem afetar os comportamentos defensivos individuais e coletivos.

Conclusão
A análise de diversas variáveis defensivas revelou que as equipas empregam diferentes comportamentos táticos defensivos em competição, desde pressão alta a um bloco baixo próximo da sua baliza. O “resultado corrente do jogo” e a “qualidade da oposição” foram variáveis contextuais que influenciaram as sequências de jogo defensivas iniciadas no meio-campo adversário. Estes resultados contribuem para um melhor entendimento da variabilidade dos comportamentos defensivos das equipas no decurso de um jogo de futebol.


P.S.:
1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;
2-  A leitura deste texto não dispensa a leitura integral do artigo em questão;
3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada no Frontiers in Psychology.

05/02/2020

As velas ardem até ao fim (1942)

Foi o primeiro livro que li do autor húngaro Sándor Márai (1900-1989). Primeiro, achei que a obra, no seu todo, fazia jus a um autêntico ensaio filosófico sobre a amizade. Numa instância posterior, e com uma reflexão mais cuidada, refiz a minha ideia inicial para algo menos redutor: é um autêntico ensaio filosófico sobre a vida (figura 1).

Figura 1. Capa do livro "As velas ardem até ao fim", publicado em Portugal pela editora Dom Quixote.

“Não é verdade que o destino entre cego na nossa vida, não. O destino entra pela porta que nós mesmos abrimos, convidando-o a passar.” (p. 125)

“Acontece que o momento traz consigo uma possibilidade e isso tem um tempo exacto – e se o momento passou, de repente já não podes fazer nada.” (p. 144)

Qualquer semelhança com as incidências de um jogo desportivo coletivo será pura coincidência? A vida não é mais que uma questão de linhas de passe.

29/01/2020

Artigo do mês #1 – janeiro 2020 | Uma análise longitudinal e transversal do efeito da idade relativa no futebol jovem

Com o novo ano e a nova década chega, também, uma rúbrica que há muito havia ponderado: “o artigo do mês”. Por falta de disponibilidade não concretizei a intenção mais cedo, mas, a partir desta data, será uma realidade todos os meses aqui no Linha de Passe.

Em concreto, trata-se de uma breve síntese de um artigo científico selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Robin C. Jackson & Gavin Comber
Título: Hill on a mountaintop: A longitudinal and cross-sectional analysis of the relative age effect in competitive youth football
Revista: Journal of Sports Sciences
País: Inglaterra
Referência:
Jackson, R. C., & Comber, G. (2020). Hill on a mountaintop: A longitudinal and cross-sectional analysis of the relative age effect in competitive youth football. Journal of Sports Sciences. doi: 10.1080/02640414.2019.1706830 (link)

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês #1 - janeiro 2020.

Apresentação do problema
O efeito da idade relativa (relative age effect, em inglês) é um fenómeno de assimetria na distribuição das idades cronológicas dos participantes de um dado escalão etário, no desempenho de uma atividade num contexto ou domínio específico. Caracteriza-se por uma representação elevada de indivíduos nascidos no início do período de seleção (geralmente, no primeiro trimestre), comparativamente a outros indivíduos nascidos no segundo semestre desse período, em particular, no último trimestre. Os jovens que nascem primeiro tendem a ser, por imperativo da natureza, mais altos e a possuir mais massa corporal do que outros que nascem mais tarde, embora sejam do mesmo grupo etário, criando uma pressão seletiva adicional nos mais novos no que à demonstração de atributos positivos diz respeito. Este tópico tem sido bastante investigado nas últimas décadas, em diversas áreas de intervenção, sendo o desporto infantojuvenil um dos principais alvos de pesquisa (figura 2).

Figura 2. O efeito da idade relativa é um fenómeno presente no desporto infantojuvenil. 
(foto da autoria de Manuel Pereira)

No futebol de formação, a dimensão do efeito do efeito da idade relativa tem sido amplamente estudada; porém, os investigadores não identificaram inequivocamente a sua origem, estando, atualmente, enquadrada no momento de seleção da criança/jovem para uma academia de futebol. Assim, o primeiro propósito desta investigação foi comparar a magnitude do efeito da idade relativa na entrada para uma academia de um clube da Premier League inglesa, com o tamanho desse efeito em crianças Sub-8 a competir numa liga regional que serve de base de recrutamento para academias profissionais de futebol.

A análise da distribuição das datas de nascimento em equipas profissionais sugere que o efeito da idade relativa atenue em faixas etárias mais avançadas. Estudos anteriores evidenciaram, no entanto, que o efeito da idade relativa persiste em equipas de futebol juniores, entre os Sub-15 e os Sub-18, sendo mais robusto em convocatórias para as seleções nacionais do que em equipas Sub-12 e Sub-14 ao nível dos clubes (Helsen et al., 2005). Portanto, falta alguma evidência científica que comprove a reversão do efeito da idade relativa no futebol de formação. O segundo propósito da investigação foi conduzir uma comparação longitudinal das taxas de retenção de indivíduos nascidos mais cedo e mais tarde no período de seleção (semestre 1 vs. semestre 2), numa academia profissional de futebol.

Ao nível do futebol mais básico – grassroots –, de índole regional/distrital, apenas um estudo comparou o efeito da idade relativa nos diferentes escalões etários (Helsen et al., 1998). Os resultados revelaram uma sobrerrepresentação de jogadores mais velhos (nascidos no primeiro trimestre do período de seleção) no grupo entre os 12 e os 16 anos de idade, mas não no grupo entre os 6 e os 10 anos de idade. No artigo em análise, os autores procuraram realizar uma comparação transversal mais abrangente do efeito da idade relativa no futebol regional, envolvendo quase 11000 jogadores de 12 escalões etários, dos Sub-7 aos Sub-18.

Métodos
Participantes: uma academia de categoria 1 da Premier League inglesa acedeu participar no estudo, facultando as datas de nascimento de 191 jogadores recrutados entre 2007 e 2012. Adicionalmente, a mesma academia forneceu uma lista com as datas de nascimento de 10857 crianças/jovens, do escalão Sub-7 ao Sub-18, a competir numa liga regional que serve de base de recrutamento para o clube. O anonimato e a proteção dos dados de todos os participantes foram assegurados no tratamento e na análise dos dados.

Procedimentos: através das datas de nascimento, os jogadores foram enquadrados em quartis (trimestres) ou metades anuais (semestres), em função da data de corte para inclusão na liga regional (no caso, 31 de agosto). Foram empregues diferentes testes estatísticos, que não interessa detalhar neste âmbito, para: (1) comparar as distribuições amostrais dos Sub-9 da academia e dos Sub-8 da liga regional, e de cada uma delas com a população geral de Inglaterra e do País de Gales, resultante dos censos efetuados nesses países; e, (2) para examinar o efeito da data de nascimento na progressão dos jogadores dentro da academia, entre os escalões Sub-9 e Sub-15.

Principais resultados
Comparando os Sub-8 da liga regional com a população geral verificou-se que, apesar de a diferença não ser significativa, o efeito apresentou uma dimensão pequena. O rácio de probabilidade Q1:Q4 (i.e., de se selecionar um indivíduo do primeiro quartil em relação a outro do quarto e último quartil) foi 1.4. No entanto, o mesmo rácio para jogadores Sub-9 da academia foi 8.6, sendo que as diferenças apuradas em relação à população geral e aos Sub-8 da liga regional obtiveram significância estatística. Na academia selecionada houve uma clara sobrerrepresentação de jogadores nascidos no quartil 1 (Q1) e uma sub-representação de jogadores nascidos no quartil 4 (Q4), ou seja, o efeito da idade relativa foi mais pronunciado no contexto da academia de um clube profissional (figura 3).

Figura 3. Distribuição das datas de nascimento dos jogadores Sub-9 da academia (preto) e dos Sub-8 da liga regional (cinzento).
(Jackson & Comber, 2020)

A assimetria nos quartis de nascimento – favorecendo os indivíduos nascidos nos quartis Q1 e Q2 –, foi consistentemente observada em todos os escalões etários da liga regional, excetuando nos Sub-18. A dimensão do efeito foi mais elevada nos escalões Sub-7 e Sub-15, alcançando valores considerados como médios.

Em relação às taxas de retenção na academia ao longo do tempo, não houve evidência de uma reversão do efeito da idade relativa. Deste modo, a probabilidade de retenção de indivíduos nascidos no segundo semestre foi menor comparativamente às taxas de retenção de indivíduos nascidos no primeiro semestre do período de seleção.

Implicações práticas
Os dados apresentados demonstram que o efeito da idade relativa é mais acentuado na seleção para academias de clubes profissionais, quando comparado com o que sucede a nível regional (grassroots). Os resultados demonstram que os scouts (olheiros) tendem a confundir o talento com atributos associados à idade cronológica. Por isso, é essencial que, nos momentos de observação de eventuais talentos ou jovens promessas, os treinadores/scouts devam estar conscientes da idade do jogador em relação aos seus pares. A utilização de identificadores (e.g., braçadeiras de cores distintas ou camisolas com os números dos quartis afetos à data de nascimento: de 1 a 4) é uma solução já avançada por alguns clubes/academias. Outra solução viável é promover eventos (torneios, jogos, treinos de captação, etc.) de acordo com o quartil de nascimento, sendo organizados, por exemplo, de três em três meses, começando por jogadores do Q1, depois do Q2 e assim sucessivamente. Esta medida permite mitigar, de alguma forma, as diferenças maturacionais existentes entre crianças/jovens nascidas no mesmo período/ano de seleção.

Conclusão
Os autores concluem o artigo manifestando incredibilidade pelo facto de, após mais de três décadas de pesquisa sistemática sobre o efeito da idade relativa no futebol (e noutros desportos), o efeito persistir e permanecer tão forte nos dias que hoje correm. Neste trabalho foi enfatizado o papel da pressão seletiva como provável moderador do tamanho do efeito da idade relativa no futebol infantojuvenil, ficando patente um efeito mais saliente na academia de categoria 1 de um clube da Premier League, relativamente a uma liga regional britânica. No cômputo geral, os jogadores nascidos no segundo semestre do período de seleção (Q3 e Q4) têm uma montanha muito mais íngreme para escalar no seu percurso rumo à concretização do sonho de se tornarem profissionais de futebol. Esse declive não se esgota no ato de seleção para uma academia de futebol, pois ainda se deparam com a dificuldade acrescida – a tal colina no topo da montanha que consta no título do artigo –, de se manterem na academia à medida que se vão aproximando do dito “sonho”.


P.S.:
1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;
2-  A leitura deste texto não dispensa a leitura integral do artigo em questão;
3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada no Journal of Sports Sciences.

24/01/2020

Ver ou não ver? Vendo, executar ou não executar? Detalhes que decidem jogos no futebol de elite

Cheguei tarde a casa do trabalho. Aos 75 minutos do jogo Wolverhampton Wanderers FC x Liverpool FC, a contar para a jornada 24 da presente edição da FA Premier League, o 1-1 era o resultado em vigor. O jogo estava completamento em aberto, pois ambas as equipas procuravam o golo que lhes atribuiria a vantagem no marcador e, muito possivelmente, a vitória. Os detalhes acabaram mesmo por marcar a diferença entre o atual sétimo classificado da prova e o líder, também campeão europeu e mundial de clubes.

Primeiro, aos 80 minutos, Diogo Jota – havia entrado aos 77’, substituindo Pedro Neto –, não identificou uma affordance (oportunidade de ação), ou se a percebeu não executou em conformidade, que colocaria Adama Traoré em posição privilegiada para desfazer a igualdade (figura 1). Em vez disso, optou por passar a Raúl Jiménez e a bola foi intercetada, sobrando para o guarda-redes Alisson. Embora a hipótese de fadiga seja posta de parte no imediato, o facto de ter entrado há pouco tempo pode justificar, parcialmente, a decisão tomada. Não é fácil entrar em jogos com elevado ritmo na plenitude e o avançado português tem demonstrado competências não condizentes com este episódio específico.

Figura 1. Oportunidade de ação não aproveitada por Diogo Jota para isolar Adama Traoré.
(p.f., clique para aumentar)

Quatro minutos depois, porém, numa sequência ofensiva produzida pelo Liverpool FC, o capitão Henderson teve a perceção de uma linha de passe para Roberto Firmino que, não originando propriamente uma ocasião flagrante, poderia augurar uma eventual situação de finalização. Henderson, ao primeiro toque, executou o passe para Firmino que, com a qualidade individual que o caracteriza, fez o 1-2 para os reds (figura 2).

Figura 2. O momento do passe de Henderson para Firmino. O acoplamento perceção-ação mais adequado para o contexto de jogo em causa.
(p.f., clique para  aumentar)

Vejamos as duas sequências ofensivas e as respetivas consequências.



Affordances capture the action specific relations that exist between the skills/capacities of an individual performer and the action relevant properties of a task (…).

Araújo & Davids (2016)

A qualidade de um jogador também se revela nas suas capacidades percetivas para identificar (as melhores) oportunidades de ação e, reconhecendo-as, atuar em em função das propriedades do envolvimento. Quando tal sucede, o êxito estará sempre mais próximo de ser uma realidade. Segundo a imprensa, a equipa de Nuno Espírito Santo realizou um jogo bem conseguido diante de um Liverpool FC fortíssimo. Sim, poderia ter ganho se Diogo Jota estivesse mais afinado para as fontes de informação relevantes do contexto de jogo naquele octogésimo minuto. Não esteve o Diogo, mas esteve o Henderson que, salvo as devidas diferenças nos lances, foi mais eficaz no acoplamento perceção-ação e contribuiu determinantemente para o triunfo da sua equipa.

Acredito piamente que o atual sucesso desportivo do Liverpool FC tem muito de coletivo, de processos, de coordenação interpessoal na sua génese, mas é inegável a importância do input qualitativo que a individualidade pode adicionar ao coletivo na decisão de jogos de futebol de elite. São aqueles pequenos detalhes que diferenciam o líder e o sétimo classificado da liga.

A qualidade individual. Se não tens, os jogadores não veem ou, se veem, não executam com precisão. É, portanto, uma virtude que os treinadores deveriam desfrutar quando têm e lamentar quando não têm. Regra geral, parece que pouco se estimula desde tenra idade, ao invés de princípios, de organização e de modelos. O resto – as consequências –, julgo que todos temos uma ideia.


Referência
Araújo, D., & Davids, K. (2016). Team synergies in sport: theory and measures. Frontiers in Psychology, 7, 1449. doi: 10.3389/fpsyg.2016.01449

03/01/2020

O ataque posicional, o ataque rápido e o contra-ataque no futebol: o que são e como se diferenciam?

Há algum tempo escrevi um artigo no portal Futebol de Formação (ver aqui), a propósito da barafunda terminológica que subsistia no futebol português. Cerca de dois anos volvidos, nada mudou e a confusão persiste. O mote para o primeiro texto de 2020 (e da década) foi dado num dos últimos jogos domésticos de 2019 quando, na rádio, um comentador aludiu a um “contra-ataque rápido” de uma das equipas que quase resultava em golo.

Pois bem, se há conceitos que são amplamente deturpados no nosso futebol, os métodos de jogo são dos mais marginalizados. Confundem-se com os momentos de transição de fase (defesa-ataque e ataque-defesa), através das famigeradas “transições rápidas”. Baralha-se o método de jogo posicional com a fase de organização ofensiva (ataque), como se o ataque rápido e o contra-ataque não fossem métodos legítimos para atacar a baliza adversária e marcar golo. Abusa-se de uma redundância impregnada de ingenuidade, ou ignorância para os menos sensíveis, para caracterizá-los: um contra-ataque é, por força das circunstâncias contextuais provisórias, rápido; jamais poderia ser lento, senão a equipa adversária disporia de tempo suficiente para se reorganizar e a hipótese de contra-atacar esfumar-se-ia.

Para não me alongar num texto meramente explicativo, que não visa mais do que clarificar algumas noções básicas do futebol e que constam na literatura desde o século transato, irei reportar-me apenas aos métodos do jogo ofensivo: ataque posicional, ataque rápido e contra-ataque. Então, o que são métodos de jogo? De acordo com Castelo (2004), são formas de organização que visam a coordenação (sincronização) eficaz dos jogadores da equipa, de modo a criar condições favoráveis para a concretização dos objetivos ofensivos do coletivo que, regra geral, são consentâneos com o objetivo do jogo: o golo. O estudo e a preparação da equipa para a competição pressupõem a otimização do deslocamento dos jogadores e da circulação da bola no espaço de jogo, a partir de uma estrutura tática preestabelecida, tendo em consideração as valências e as fraquezas da equipa oponente (figura 1).

Figura 1. Exemplo de princípios subjacentes ao método de ataque posicional (jogo apoiado) do FC Barcelona.

Portanto, o ataque posicional, o ataque rápido e o contra-ataque são métodos do jogo ofensivo com características distintas, dotados de dinâmicas organizadas e que visam alcançar objetivos análogos, sendo o golo o intento primordial. Contudo, como se diferenciam?

1.  Ataque posicional
O ataque posicional, também designado de “ataque organizado”, o que me parece ser incorreto porque parte da suposição que os outros métodos ofensivos carecem de organização, é o mais apreciado pela maioria dos treinadores por esse mundo fora. O jogo apoiado é característico deste método, normalmente envolvendo um número elevado de jogadores da equipa, que recorrem ao passe curto e a combinações táticas (diretas e indiretas) para explorar diversos espaços de jogo (nos três corredores e nos três setores). O processo ofensivo é relativamente longo, paciente e visa criar desequilíbrios momentâneos na organização defensiva adversária para atacar a baliza adversária em condições vantajosas. Embora as equipas tendam a explorar a largura do campo, permanecendo mais dispersas no eixo transversal, a proximidade intersetorial dos jogadores garante que o conjunto permaneça equilibrado face a eventuais perdas da posse de bola (transições defensivas).


2.  Ataque rápido
O ataque rápido é um método de jogo ofensivo que reúne propriedades do ataque posicional e do contra-ataque. Como o próprio nome sugere, é rápido, com durações inferiores ao ataque posicional e, geralmente, idênticas ou ligeiramente superiores ao contra-ataque. Preconiza a utilização máxima de 6 jogadores no processo ofensivo, sendo o mesmo elaborado através de uma miscelânea de passes em profundidade e em largura, ainda que o objetivo consista em chegar rapidamente à baliza contrária. Diferencia-se, sobretudo, do contra-ataque por pressupor uma oposição minimamente organizada da estrutura defensiva adversária, embora, por vezes, não seja fácil diferenciá-los, pois a interpretação do “minimamente organizada” é tão complexa quanto subjetiva, dependendo, fundamentalmente, da avaliação que é feita do controlo do espaço defensivo e do balanço entre relações numéricas.


3.  Contra-ataque
O contra-ataque é um método de jogo ofensivo predominantemente associado a equipas de menor dimensão ou com menos competências técnico-táticas. No entanto, independentemente da qualidade das equipas, uma grande percentagem de golos é obtida através deste método, em especial nos últimos 15 minutos, quando se diz que “o jogo está partido”. É categorizado como um método de curta duração, em que uma equipa explora a profundidade do campo, no intuito de chegar o mais rapidamente possível à baliza oponente, aproveitando o desequilíbrio defensivo circunstancial da outra equipa. Por isso, envolve a realização de um número reduzido de passes, geralmente em progressão (eixo longitudinal) e com elevada velocidade de deslocamento dos jogadores e da bola no terreno de jogo.


Num estudo publicado em 2018, no Journal of Strength and Conditioning Research, Sarmento e colegas propuseram uma metodologia para diferenciar estes três métodos de jogo em análise (tabela 1).

Tabela 1. Diferenciação dos tipos de métodos de jogo ofensivo no futebol (adaptado de Sarmento et al., 2018).

A amostra compreendeu 1684 sequências ofensivas, retiradas de 68 jogos disputados nas ligas espanhola (La Liga), italiana (Série A), alemã (Bundesliga), inglesa (Premier League) e na UEFA Champions League, nas épocas 2013/2014 e 2014/2015. Curiosamente, ou talvez não, os métodos ofensivos contra-ataque e ataque rápido aumentaram o sucesso das sequências ofensivas em 40%, quando comparados com o ataque posicional. O aumento de 1 segundo na duração de sequência ofensiva e a realização de um passe extra resultaram em decréscimos de 2% e 7%, respetivamente, na probabilidade da sequência ofensiva ser concluída com êxito (Sarmento et al., 2018).

Em suma, o ataque posicional não é a única forma organizada de se alcançar o golo no futebol. Os outros métodos ofensivos são tão ou mais efetivos e, desta maneira, devem ser alvo de preparação sistemática ao longo do processo de treino. As noções que penso que importam reter deste texto são as seguintes: (1) identificar e analisar os diferentes métodos de jogo ofensivo é crucial para preparar e otimizar os desempenhos individuais e coletivo, tendo em consideração as forças e as fraquezas da própria equipa e dos adversários, bem como as oportunidades geradas pelo contexto situacional; (2) saber diferenciar cada um dos métodos descritos é útil para que haja uma comunicação clara e coerente no seio de uma entidade coletiva (equipa ou clube), sem que se suscitem interpretações dúbias ou erradas; (3) o meio mais eficaz para lidar com a imprevisibilidade do jogo é estar preparado para atuar em função do contexto, pelo que estimular e fomentar a variabilidade organizacional da equipa em posse de bola – ataque posicional, ataque rápido e contra-ataque – é apetrechá-la com soluções práticas para a resolução dos problemas que emergem da dinâmica relacional que se estabelece com os diversos opositores.


Referências
Castelo, J. (2004). Futebol – Organização dinâmica do jogo. Cruz Quebrada: FMH Edições.
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