28/08/2023

Artigo do mês #44 – agosto 2023 | Tempo útil de jogo influencia os parâmetros técnico-táticos e físicos no futebol

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Tojo, Ó., Spyrou, K., Teixeira, J., Pereira, P., & Ribeiro, J.

País: Portugal

Data de publicação: 8-agosto-2023

Título: Effective playing time affects technical-tactical and physical parameters in football

Referência: Tojo, Ó., Spyrou, K., Teixeira, J., Pereira, P., & Ribeiro, J. (2023). Effective playing time affects technical-tactical and physical parameters in football. Frontiers in Sports and Active Living, 5, 1229595. https://doi.org/ 10.3389/fspor.2023.1229595

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 44 – agosto de 2023.

 

Apresentação do problema

O jogo de futebol tem sido descrito como um sistema altamente dinâmico, complexo, auto-organizado, instável e imprevisível, no qual os treinadores e os jogadores tentam manter a estabilidade das suas organizações ofensiva e defensiva, enquanto procuram desorganizar a estrutura adversária (Davids et al., 2013; Garganta, 2009). Contudo, há uma série de fatores contextuais, como a localização do jogo, o ranking das equipas, o nível de prática, o resultado corrente do jogo e os estilos de jogo, que pode influenciar os comportamentos individuais e coletivos (Eccles et al., 2009; Gómez et al., 2013; Sarmento et al., 2014), exigindo uma adaptação constante dos jogadores a essas mudanças e que se reflete nas ações técnico-táticas executadas e nos padrões que emergem em competição (Vilar et al., 2012). 

As interrupções no futebol são uma característica do jogo e contribuem para que a sua natureza prime pela intermitência (Siegle & Lames, 2012; Zhao & Liu, 2022). Recentemente, o tempo efetivo (ou útil) de jogo tem sido discutido com preocupação pelos diversos agentes envolvidos no futebol (Altmann et al., 2023; Rey et al., 2022), já que, embora os jogos oficiais durem mais de 90 minutos, as várias interrupções (i.e., substituições, faltas, lesões, golos e bolas fora de jogo), podem afetar negativamente o tempo útil de jogo (Linke et al., 2018). Por exemplo, foi evidenciado que o tempo efetivo de jogo na liga portuguesa foi em média ~49 minutos do tempo total de jogo (i.e., 90 minutos), o que é consistentemente mais baixo comparativamente a outras ligas europeias (i.e., Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália) e à UEFA Champions League (Portugal Football Observatory, 2022; ver figura 2). O tempo útil de jogo também foi equacionado numa outra investigação (Castellano et al., 2022). Ao distinguir as duas principais fases do jogo (ou seja, com e sem a posse de bola), e normalizando a distância total para metros por minuto (m/min), estes investigadores constataram que as equipas correm mais sem posse de bola, e o tempo efetivo de jogo e a quantidade de posse de bola influenciaram o desempenho de corrida dos jogadores.

 

Figura 2. Tempo útil de jogo no contexto europeu – Portugal e a Europa (fonte: https://portugalfootballobservatory.fpf.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

No que diz respeito às exigências físicas, jogadores profissionais a atuar na Bundesliga alemã percorreram em média 10% mais de distância total, realizaram 13% mais acelerações e sprintaram 7% a 10% menos em partidas oficiais com um tempo útil de jogo longo (>65 minutos), em comparação com um tempo útil mais curto (<50 minutos) (Altmann et al., 2023). Além disso, jogadores profissionais do Championship, em Inglaterra, apresentaram menores exigências físicas, comparando o jogo completo e o período apenas com a bola em jogo (Mernagh et al., 2021). O tempo útil de jogo foi ainda ponderado em função de várias variáveis contextuais, como o nível da equipa, o resultado corrente e a localização do jogo. A distância total aumentou em jogos caseiros, quando a equipa estava em desvantagem no marcador e quando defrontou adversários mais fortes (Castellano et al., 2011). No entanto, é necessária mais investigação sobre os efeitos do tempo efetivo de jogo em parâmetros físicos e técnico-táticos no jogo de futebol. 

O futsal e o basquetebol são desportos coletivos que são uma referência relativamente ao tempo útil de jogo, uma vez que o tempo é parado quando a bola está fora. Esta pode ser uma alteração interessante para o futebol que, como foi referido, é particularmente sensível a diversas variáveis contextuais. Portanto, este estudo teve como objetivo explorar as diferenças causadas por duas condições de jogo – (1) 45 minutos de jogo sem interrupção do cronómetro quando a bola estava fora (T45) e (2) 30 minutos de jogo com paragem do cronómetro sempre que a bola estava fora (T30) – em variáveis relacionadas com o tempo de jogo (i.e., tempo total, efetivo e interrompido), parâmetros técnico-táticos (posse de bola e remates à baliza), métricas de carga externa e outros eventos do jogo (i.e., assistência médica, pontapés de baliza, cantos, lançamentos laterais, pontapés de saída e faltas). Os autores colocaram a hipótese de que o protocolo T30 apresentaria valores mais altos nas variáveis relacionadas ao tempo, nos parâmetros técnico-táticos e nas métricas de carga externa, em comparação com o T45.

 

Métodos

Desenho experimental: foram recolhidos dados de 6 jogos particulares (“amigáveis”). Os jogos foram aleatoriamente divididos em uma parte de 45 minutos (T45: 45 minutos de jogo sem paragem do cronómetro com a bola fora), ou uma parte de 30 minutos efetivos (T30: o cronómetro foi parado sempre que a bola não estava em jogo). Neste estudo foi analisado um total de 6 partes em cada condição experimentar (T45 e T30). Os jogos foram geridos por árbitros oficiais (i.e., 1 árbitro e 2 assistentes), porém, com um responsável externo para cronometrar o tempo de jogo. Entre cada parte houve um intervalo de 15 minutos. Os jogos foram realizados no final da época 2021/2022. 

Participantes: participaram na experiência 179 jogadores de futebol amadores do género masculino, altamente treinados (idade: 27.9 9 ± 5.1 anos), provenientes de 12 equipas a competir nas 4.ª e 5.ª divisões de Portugal. Todos os jogadores tinham mais de 18 anos e treinavam 3–4 vezes por semana, com um jogo oficial. Os guarda-redes foram excluídos do estudo devido às diferentes exigências físicas e técnico-táticas inerentes à respetiva posição. Os participantes assinaram o consentimento informado e o estudo foi aprovado pelo Comité de Ética da Portugal Football School. 

Procedimentos: os jogos foram gravados com uma câmara digital de 35-megapixeis (Canon XA15Hd, Japão), colocada acima do terreno de jogo para filmá-lo integralmente ao longo dos períodos considerados. Os jogos foram analisados e codificados através do software LongoMatch (Barcelona, Espanha), utilizando 3 categorias de variáveis: (1) a relacionada com o tempo, (2) os eventos relacionados com as paragens do jogo e (3) variáveis técnico-táticas ofensivas (Tabela 1).

  

Tabela 1. Variáveis do estudo, em função de cada categoria: tempo, eventos de jogo associados às paragens e variáveis técnico-táticas ofensivas (Tojo et al., 2023).


Os jogadores usaram unidades de GPS (APEX, STATSports, Irlanda do Norte), com uma frequência amostral de 10 Hz. Contudo, só foram incluídos os dados dos jogadores que disputaram as partidas por completo. As métricas de carga externa incluíram as distâncias total, em corrida de velocidade moderada (14.4–19.8 km/h), em corrida de alta velocidade (19.8–25.2 km/h), em sprint (>25.2 km/h), as atividades em alta velocidade (distância percorrida em velocidade alta e sprint), o número de sprints, o número de acelerações (>3 m/s2) e o número de desacelerações (<−3 m/s2) (Gualtieri et al., 2023; Rago et al., 2019). 

Análise estatística: foi utilizado o pacote estatístico jamovi (versão 2.3; https://www.jamovi.org) para o efeito. A estatística descritiva consistiu na apresentação da média e do desvio-padrão para todas as variáveis. Para averiguar as diferenças entre as condições T45 e T30 nas variáveis de carga externa foi utilizado o modelo linear misto, tendo em consideração medidas individuais repetidas. De modo a analisar as diferenças entre as ações e o tempo médio de paragem, entre as condições T45 e T30, foi empregue um modelo linear geral. Recorreu-se ao teste de proporção para uma amostra para comparar as variáveis técnico-táticas ofensivas entre as duas condições experimentais. As dimensões de efeito inerentes ao d de Cohen foram interpretadas da seguinte forma: <0.2 = trivial; 0.2 = pequeno; 0.5 = moderado; 0.8 = grande (Cohen, 1988). O nível de significância estabelecido foi de 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados

 

·     Variáveis relacionadas com o tempo

A condição T30 apresentou valores significativamente mais elevados no tempo total (49:30 vs. 45:00; efeito grande), tempo efetivo (28:70 vs. 26:80; efeito moderado) e tempo parado (20:60 vs. 18:20; efeito pequeno), comparativamente à condição T45.

 

·     Eventos relacionados com as paragens do jogo

A única variável que registou diferenças significativas entre T30 e T45 foi o pontapé de baliza, com valores mais elevados na condição T30 (00:46 vs. 00:30; efeito grande). Porém, embora para as outras variáveis não tenham sido evidenciadas diferenças estatisticamente significativas, os valores médios das paragens para assistência médica e para substituições foram mais elevados na condição T30: 01:32 vs. 00:59 (efeito moderado) e 01:50 vs. 00:22 (efeito grande).

 

·     Variáveis técnico-táticas ofensivas

Mais uma vez, foi na condição T30 (vs. T45) que foram detetados valores significativamente mais elevados, no caso, na posse de bola total (n = 703, 54.4% vs. n = 590, 45.6%) e na posse de bola no terço ofensivo (n = 276, 55.3% vs. n = 223, 44.7%). No que respeita à posse dentro da área de penálti e aos números de remates à baliza dentro e fora da área de penálti, não houve diferenças significativas entre as duas condições experimentais.

 

·     Variáveis de carga externa

Relativamente à condição T45, na T30 os jogadores percorreram significativamente maiores distâncias totais (4899 vs. 4481m; efeito moderado), em corrida de velocidade moderada (607 vs. 557m; efeito pequeno), em corrida de alta velocidade (202 vs. 170m; efeito pequeno) e em atividades de alta velocidade (284 vs. 245m; efeito pequeno). Os números médios de acelerações (27 vs. 24; efeito pequeno) e de desacelerações (31 vs. 28; efeito pequeno) também foram significativamente mais elevados na condição T30.

 

Aplicações práticas

Acima de tudo, este estudo indica que as entidades que tutelam o futebol internacional devem considerar seriamente a possibilidade de se cronometrar o tempo da bola em jogo no futebol, tal como sucede no futsal. Aumentar o tempo útil de jogo tem consequências nas exigências físicas e nas ações técnico-táticas que são executadas em competição. Em particular, há a destacar o aumento do número de atividades técnico-táticas no terço ofensivo do campo e o aumento da carga externa, sobretudo, da distância total percorrida e do número de ações em alta velocidade (> 19.8 km/h), de acelerações e de desacelerações. 

Na perspetiva dos adeptos e dos fãs de futebol, parar o cronometro quando a bola está fora parece ser uma estratégia que aumenta o interesse do jogo. Além de proporcionar a disputa do jogo pelo jogo durante mais tempo, tende a reduzir substancialmente situações indesejadas (e eticamente condenáveis), como é, por exemplo, a simulação de lesões. Esta medida poderá ser especialmente indicada para ligas com reduzido tempo útil de jogo, como são principais ligas portuguesas (Liga Portugal Betclic e Liga Portugal 2 SABSEG), com valores médios de tempo efetivo a rondar os 50%.

 

Conclusão

Comparando com o protocolo sem parar o cronómetro quando a bola está fora (T45), a condição T30 (com paragens do cronómetro quando a bola está fora) revelou tempos total, útil e parado mais longos. Os jogadores tiveram significativamente mais posse de bola e ações no terço ofensivo do campo, percorrendo maiores distâncias total, a velocidade moderada, a velocidade alta e registando-se mais acelerações e desacelerações. As evidências sugerem que o tempo útil de jogo pode influenciar substancialmente as componentes técnico-tática e física do jogo de futebol. Por isso, as organizações internacionais que tutelam o futebol devem ponderar a implementação do tempo cronometrado nos jogos, pois parece trazer mais benefícios do que desvantagens no que se refere ao interesse da modalidade.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Sports and Active Living.

17/08/2023

German Journal of Exercise and Sport Research (2023) | Desempenho defensivo no futebol de elite: Uma revisão sistemática

O dia de hoje, 17 de agosto de 2023, encerra um trabalho desenvolvido ao longo de vários anos. No âmbito do seu projeto de doutoramento, o Rui Freitas liderou uma abrangente revisão sistemática sobre o desempenho defensivo no futebol de elite (figura 1) – uma temática que muito me apraz –, e que, na prática, resultou na segunda publicação derivada da sua tese, sob a orientação da Professora Anna Volossovitch (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa). Além da minha modesta colaboração, contamos também com a contribuição da Professora Veronica Vleck (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, BIOLAD, Universidade de Lisboa).

 

Figura 1. Informações editoriais da revisão sistemática publicada no German Journal of Exercise and Sport Research.

 

Em primeira instância, seria injusto não enaltecer a perseverança, a determinação e a ética de trabalho incansável do Rui – irrepreensível na condução e na gestão de todo um processo que de acessível pouco ou nada teve. Para compreender o esforço subjacente a este artigo, seria necessário vivenciar cada etapa do estudo, cada submissão, cada revisão, cada troca de informação entre os autores. Tamanha dedicação merece, sem dúvida, ser celebrada! 

Em segundo lugar, saliento que não se trata de uma revisão sistemática qualquer. Não estou com isto a procurar ser pretensioso. Apesar de ser um dos coautores, seria injusto assumir que tive a mesma cota parte de responsabilidade no produto final que o Rui ou a Professora Anna. Não há comparação! Contudo, julgo-me apto a reconhecer quando há algo de extraordinário numa peça de cariz científico. Em particular, esta revisão sistemática incluiu 119 estudos, publicados entre 2010 e 2023, envolvendo 20 competições de futebol, tanto nacionais quanto internacionais. Pode-se imaginar quantas revisões sistemáticas incluem 119 estudos ou mais? 

E, para responder à incontornável objeção de que “quantidade não é sinónimo de qualidade”, convido-vos a ler o artigo na íntegra. Como referem os britânicos, there is a lot of food for thought. Que o abstract possa servir como aperitivo (Figura 2).

 

Figura 2. Abstract da revisão sistemática publicada no German Journal of Exercise and Sport Research.

 

No final do dia, um pouco mais de conhecimento não ocupa espaço e pode ajudar a tornar a prática no terreno mais eficaz. Espero que seja útil!

 

Reference

Freitas, R., Volossovitch, A., Almeida, C. H., & Vleck, V. (2023). Elite-level defensive performance in football: a systematic review. German Journal of Exercise and Sport Research, 1–13. Advance online publication. https://doi.org/10.1007/s12662-023-00900-y

28/07/2023

Artigo do mês #43 – julho 2023 | Adaptabilidade funcional no estilo de jogo: Uma determinante chave da performance no futebol competitivo

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: He, Q., Araújo, D., Davids, K., Kee, Y. H. & Komar, J.

País: Singapura

Data de publicação: 30-maio-2023

Título: Functional adaptability in playing style: A key determinant of competitive football performance

Referência: He, Q., Araújo, D., Davids, K., Kee, Y. H. & Komar, J. (2023). Functional adaptability in playing style: A key determinant of competitive football performance. Adaptative Behavior, 1–14. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/10597123231178942

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 43 – julho de 2023.

 

Apresentação do problema

No futebol de competição, as equipas têm de adaptar, rápida e continuamente, os seus comportamentos táticos coletivos para responder de forma eficaz aos constrangimentos contextuais em constante mutação, como as opções estratégico-táticas adversárias, o resultado do jogo, a localização do jogo ou o tempo em falta para o término da partida (Gómez et al., 2018; Lago, 2009; Lago-Ballesteros et al., 2012). Estes comportamentos táticos que emergem no decurso das cerca de 120 sequências ofensivas em cada jogo (Tenga et al., 2010a) e ao longo de 34–38 semanas competitivas em cada época são frequentemente descritos como estilos de jogo da equipa, ou os “padrões de jogo característicos demonstrados pela equipa durante os jogos (…) regularmente repetidos em contextos situacionais específicos” (Hewitt et al., 2016). 

Segundo a abordagem da dinâmica ecológica, as equipas são vistas como sistemas coletivos complexos que (re)organizam os seus comportamentos táticos através de interações e trocas de informação contínuas com o contexto de desempenho (Vilar et al., 2012). Assim, descrever uma equipa em função de um único estilo de jogo (e.g., contra-ataque ou ataque posicional) pouco contribui para compreender as características de uma equipa de alto nível. Para o efeito, o recurso a indicadores de resultado (i.e., vitória ou derrota no jogo) e de performance em jogo (e.g., remates realizados, golos) pode revelar uma associação estreita com a capacidade das equipas em explorar efetivamente os constrangimentos ambientais e da tarefa em permanente mudança durante o jogo competitivo. Uma associação positiva sugere a produção de uma resposta coletiva funcional (Seifert et al., 2016). Esta capacidade de gerar e executar um vasto conjunto de comportamentos funcionais e orientados para o objetivo em diferentes contextos tem sido identificada como uma imagem de marca da perícia no desporto, sendo amplamente referida como “flexibilidade comportamental” (Johnson, 1961; Ranganathan et al., 2020), embora seja conceptualmente conhecida como system degeneracy (Seifert et al., 2016) (figura 2).

 

Figura 2. O dispositivo tático é uma componente (estrutural) inerente à adoção de diversos estilos de jogo, mas que emergem, essencialmente, através da modificação de nuances comportamentais. O alemão Julian Nagelsmann é um caso de reconhecido sucesso na implementação da flexibilidade no estilo de jogo (fonte: https://theathletic.com/4344068/2023/03/25/julian-nagelsmann-future-club-tottenham-psg-real-madrid-chelsea/; imagem não publicada pelos autores).

 

Porém, sob dinâmicas competitivas específicas, os jogadores peritos necessitam de gravitar em direção à “reatividade comportamental”, ou seja, são acionadas determinadas tendências coordenativas para responder a alterações específicas nos constrangimentos ambientais e da tarefa. Pelo contrário, os experts também podem exibir comportamentos de imposição em certas situações, que se caracterizam pela propensão para impor um conjunto predeterminado de ações estratégico-táticas, independentemente do desenrolar das circunstâncias situacionais. Importa entender que as interações comportamentais de um perito não são completamente reativas, nem completamente impostas, pois o comportamento intencional é orientado pela deteção de informação para atingir o(s) objetivo(s) proposto(s). Ainda assim, no futebol, talvez devido a limitações técnico-táticas dos jogadores ou da filosofia dos treinadores, as equipas aplicam muitas vezes estratégias que impõem certos estilos de jogo, desconsiderando as dinâmicas de jogo em curso (Cordes et al., 2012). 

Neste estudo, as respostas comportamentais das equipas (i.e., ações realizadas no jogo) são consideradas como um reflexo do estilo de jogo, surgindo a partir das adaptações (ou falhas de adaptação) que ocorrem ao longo do evento competitivo. O termo adaptabilidade do estilo de jogo é, portanto, utilizado para coletivamente descrever a flexibilidade, a reatividade e a imposição dos comportamentos táticos da equipa em resposta às diferentes dinâmicas competitivas que ocorrem ao longo da temporada. Para expandir o conhecimento existente nesta área, em que o foco tem sido colocado na análise das adaptações no estilo de jogo em cada partida, o presente estudo examinou a adaptabilidade das equipas no decurso de uma época (i.e., adaptabilidade funcional entre jogos), bem como a sua relação com diversos indicadores de performance. A questão de pesquisa foi: Qual é a associação entre a adaptabilidade do estilo de jogo da equipa (i.e., flexibilidade, reatividade e imposição do estilo de jogo) e os indicadores de performance em jogo numa época competitiva? Os autores adiantaram duas hipóteses: (1) equipas que apresentam maior flexibilidade no estilo de jogo ao longo da época alcançam melhores resultados nos indicadores de performance em jogo; (2) uma maior tendência tática de imposição ou reatividade nos estilos de jogo está negativamente associada aos indicadores de performance analisados.

 

Métodos

Amostra: para determinar o estilo de jogo das equipas em cada partida, foram recolhidos dados de todos os jogos disputados nas principais ligas masculinas europeias (Premier League inglesa, LaLiga espanhola, Serie A italiana, Bundesliga alemã e Ligue 1 francesa), entre as épocas 2014/2015 e 2019/2020. Os dados foram recolhidos do website Whoscored (www.whoscored.com), que previamente retira os dados da empresa Opta Sports. A base de dados incluiu 31 ações de jogo pertencentes a 3 categorias distintas que especificam 3 fases fundamentais do jogo (Wade, 1988): ataque (e.g., remates a partir de contra-ataque/ataque rápido, remates a partir de esquemas táticos/bola paradas), defesa (e.g., interceções, alívios, cruzamentos bloqueados na zona defensiva) e posse (e.g., toques na bola, passes no terço defensivo, passes penetrantes). Devido à falta de homogeneidade na variância das ações de jogo na base de dados, as características de cada variável foram  dimensionadas para a variância unitária. Os algoritmos de aprendizagem de máquina (machine learning) podem não funcionar de forma ideal quando os dados não apresentam uma distribuição normal (Pedregosa et al., 2011). 

Análise de cluster: a análise de cluster (ou de agrupamento) utilizou uma abordagem não supervisionada de machine learning. Esta abordagem agrupa pontos de dados semelhantes, resultando na formação de diferentes grupos que, no caso, representam os diferentes estilos de jogo das equipas. O algoritmo do Modelo de Mistura Gaussiano Expectation-Maximization (GMM) foi usado na análise de agrupamento. O número de clusters (k) para o GMM deve ser introduzido na construção do modelo. No entanto, como o número total de clusters (ou seja, estilos de jogo) não é conhecido, foi necessário um processo de seleção de modelo para obter um k estatisticamente “ótimo”. Para isso, a análise de cluster foi realizada 14 vezes, com diferentes valores de k a variar entre 2 e 15. O valor “ótimo” de k foi determinado pelo modelo com melhor ajustamento aos dados, avaliado através dos critérios de informação de Akaike (AIC) e Bayesiano (BIC) (Huang et al., 2017). 

Adaptabilidade do estilo de jogo: as equipas foram agrupadas em diferentes estilos de jogo para determinar os respetivos níveis de flexibilidade, reatividade e imposição em cada jogo. A adaptabilidade dos estilos de jogo das equipas foi examinada por cada temporada, de modo a minimizar a influência de perturbações externas e internas (e.g., constituição do plantel ou mudança de equipa técnica). O coeficiente de não similaridade (coefficient of unalikeability – COA), que mede a variância para variáveis categóricas (Kader & Perry, 2007), foi utilizado para calcular a flexibilidade, reatividade e imposição do estilo de jogo. O COA gera um coeficiente numa escala de 0 (todas as observações são idênticas) a 1 (todas as observações são diferentes). 

  • Flexibilidade: para determinar a flexibilidade do estilo de jogo da equipa, calculou-se o COA de todos os estilos de jogo utilizados ao longo da temporada. Um valor de COA mais próximo de 1 indica que a equipa utiliza uma maior variedade de estilos de jogo ao longo da época. Na computação da flexibilidade, os pares de estilos de jogo referem-se ao estilo de jogo utilizado pela equipa em comparação com o de outra semana (e.g., estilo de jogo da semana 1 vs. semana 2; estilo de jogo da semana 1 vs. semana 3).

  • Reatividade: de forma a obter a reatividade do estilo de jogo da equipa, calculou-se o COA dos estilos de jogo utilizados em relação a cada estilo de jogo dos oponentes ao longo da temporada. A reatividade foi obtida invertendo o valor do COA (1 – COA). A reatividade geral do estilo de jogo da equipa foi calculada como a soma das pontuações ponderadas de reatividade. Portanto, um valor mais próximo de 1 indica uma maior reatividade nos estilos de jogo utilizados contra cada estilo de jogo da oposição (ou seja, maior consistência nas respostas do estilo de jogo ao enfrentar um estilo de jogo específico). Na computação da reatividade, os pares de estilos de jogo referem-se aos estilos de jogo da equipa utilizados ao enfrentar um certo estilo de jogo da equipa adversária (e.g., assumindo que o estilo de jogo A foi enfrentado nas semanas 1, 3 e 7: estilo de jogo da semana 1 vs. semana 3; estilo de jogo da semana 1 vs. semana 7).

  • Imposição: a imposição do estilo de jogo das equipas foi determinada através do cálculo do COA dos estilos de jogo enfrentados pela equipa ao longo da temporada aquando do recurso a um dado estilo de jogo. Um valor mais próximo de 1 indicou maior imposição nos estilos de jogo utilizados contra cada estilo de jogo dos oponentes (ou seja, a equipa recorre a um estilo de jogo predefinido, mesmo ao enfrentar uma grande diversidade de estilos de jogo adversários). Na computação da imposição, foram considerados os pares dos estilos de jogo usados pelo adversário face a um dado estilo de jogo da equipa (e.g., assumindo que o estilo de jogo A foi usado nas semanas 1, 3 e 7: estilo de jogo da oposição da semana 1 vs. semana 3; estilo de jogo da oposição da semana 1 vs. semana 7).

  • Indicadores de performance em jogo: recorreu-se a 4 eventos de jogo como indicadores de desempenho: (1) remates executados na área de penálti do adversário; (2) remates permitidos na própria área de penálti; (3) golos marcados; (4) golos sofridos. Estes indicadores foram normalizados pelo número de jogos disputados na época e foram selecionados porque representam eventos críticos no futebol. Além disso, o número de vitórias em cada temporada também foi usado como um indicador de desempenho, uma vez que reflete o sucesso geral da equipa.

 

Análise estatística: o Coeficiente de Correlação de Spearman foi utilizado para calcular a associação entre a flexibilidade, reatividade e imposição do estilo de jogo e os 4 indicadores de desempenho em jogo. O nível de significância foi definido em 0.05 e as dimensões de efeito do Coeficiente de Correlação foram categorizadas como fracas (<0.3), moderadas (0.3–0.6) e fortes (>0.6) (Lipsey & Wilson, 1993). O pré-processamento dos dados e a análise de cluster foram realizados mediante a biblioteca scikit-learn (versão 0.24.2), enquanto o cálculo dos Coeficientes de Correlação de Spearman foram executados através do módulo SciPy-stats (versão 1.6.3), tudo isto dentro do ambiente Python (versão 3.8).

 

Principais resultados

 

·     Agrupamento dos estilos de jogo

Os valores de AIC e BIC foram mais reduzidos no modelo com k = 12 clusters, o que indica que as ações de jogo permitiram diferenciar 12 estilos de jogo no modelo com melhor ajustamento ao conjunto de dados. Assim, as ações executadas em jogo possibilitaram identificar os seguintes estilos de jogo (clusters): 1 – “Posse elevada, alta pressão”; 2 – “Equipa equilibrada, ataque através de bolas paradas”; 3 – “Alta pressão, foco na criação de oportunidades de golo”; 4 – “equipa equilibrada”; 5 – “equipa equilibrada, defender para contra-atacar”; 6 – “estratégia defensiva, com posse diminuta”;  7 – “jogo direto”; 8 – “contra-ataque”; 9 – “dominante na posse, preponderância ofensiva”; 10 – “foco na posse, construção de jogo”; 11 – “equipa equilibrada, foco no jogo corrido e na bola parada”; 12 – “bolas paradas ofensivas”.

 

·     Adaptabilidade dos estilos de jogo e indicadores de performance

A flexibilidade do estilo de jogo teve uma correlação positiva e significativa com o número de vitórias, embora com uma dimensão de efeito pequena. Foram ainda evidenciadas correlações moderadamente positivas (e significativas) entre a flexibilidade do estilo de jogo e o número de golos marcados e o número de remates executados na área de penálti. Ao invés, a flexibilidade do estilo de jogo estabeleceu correlações negativas, de pequena dimensão, com o número de golos sofridos e o número de remates permitidos na área de penálti (figura 3).

 

Figura 3. Relação entre a adaptabilidade do estilo de jogo e indicadores de performance em jogo. Legenda: Flexibility: flexibilidade; Imposition: imposição; Reactivity: reatividade; Wins: vitórias; Goals scored: golos marcados; Goals conceded: golos sofridos; Shots in penalty box: remates na área de penálti; Shots conceded in penalty box: remates permitidos na área de penálti (He et al., 2023).

 

Em relação à imposição do estilo de jogo, os resultados demonstraram o seguinte: (1) correlações negativas de pequena dimensão com o número de vitórias e de golos marcados (p < 0.001 e p < 0.01, respetivamente), e (2) correlações positivas e significativas, de pequena dimensão, com o número de golos concedidos e o número de remates permitidos no interior da própria área de penálti. A reatividade do estilo de jogo demonstrou correlação negativa e significativa, de pequena dimensão, com o número de vitórias e com o número de golos concretizados. Houve, também, uma correlação negativa moderada com o número de remates realizados na área de penálti adversária. Pelo contrário, foram identificadas correlações moderadamente positivas, ainda que significado estatístico (p < 0.001), com os números de golos concedidos e remates permitidos na própria área de penálti. 

Em suma, a flexibilidade do estilo de jogo esteve positivamente associada aos indicadores de performance ofensivos e defensivos. Em sentido inverso, a imposição e a reatividade do estilo de jogo estiveram negativamente associados com os indicadores de performance em jogo suprarreferidos.

 

Aplicações práticas

O estudo sugere que as equipas com maior flexibilidade no estilo de jogo, ou seja, que apresentam uma ampla variedade de estilos durante a temporada, tendem a vencer mais jogos e registam melhores indicadores de desempenho ofensivo e defensivo. Assim, os treinadores devem preparar a suas equipas para gerar respostas diversificadas ao nível do estilo de jogo, pois a velocidade e a variedade com que mudam de estilo tornam as ações dos jogadores e o movimento da bola mais imprevisíveis, o que proporciona uma vantagem tática face ao comportamento da equipa adversária. 

Além disso, as equipas capazes de exibir uma ampla gama de estilos de jogo são mais difíceis de analisar e de se preparar, devido à incerteza que advém dos estilos de jogo que poderão utilizar ou se alterarão (ou não) – e quando? – durante uma partida. Ao defrontar equipas altamente flexíveis, os treinadores precisam de trabalhar as suas equipas para enfrentar inúmeros estilos de jogo, o que restringe o tempo disponível para preparar convenientemente a equipa para responder de forma eficaz a uma ou outra forma de jogar. No entanto, apesar de todas estas vantagens inerentes à flexibilidade do estilo de jogo, na prática não é tão simples fomentar esta flexibilidade estratégico-tática. Tal requer tempo para treinar formas distintas de jogar, para que cada jogador compreenda os detalhes de cada estilo e reconheça as oportunidades contextuais que norteiam a tomada de decisão (i.e., quando e para que estilo de jogo mudar?). 

Embora a associação entre flexibilidade dos estilos de jogo e os indicadores de desempenho tenha sido significativa, as dimensões de efeito variaram de pequena e moderada. Portanto, é crucial reconhecer a natureza altamente dinâmica e em constante mudança do futebol, e ter cautela para não empolar o papel da flexibilidade no estilo de jogo. De facto, o desempenho competitivo é o produto de vários fatores que transcendem a capacidade das equipas em modificarem o modo como atuam. 

Os resultados deste estudo também sugerem que abordagens predominantemente impositivas (independente da dinâmica evolutiva do jogo) ou reativas (dependente ou seguindo a dinâmica evolutiva do jogo) são prejudiciais para a obtenção de sucesso em competição. Porém, o estudo contempla a possibilidade de se registarem indicadores efetivos de desempenho como consequência da capacidade individual e coletiva em alternar funcionalmente estilos impositivos e reativos de jogo. Por exemplo, sabe-se que equipas de elite beneficiam ao impor um estilo de posse dominante frente a equipas mais fracas (Bloomfield et al., 2005; Fernandez-Navarro et al., 2019). Em outros contextos, como quando o resultado no marcador é favorável, reagir ao aumento da preponderância ofensiva dos oponentes, recuando no terreno para, a seguir, lançar contra-ataque ou ataques rápidos tem sido associado a melhores indicadores de desempenho (Lago, 2009; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Os treinadores devem estimular, através de situações de jogo representativas nas sessões de treino, a capacidade dos jogadores em alternar funcionalmente entre estilos de jogo impositivos e reativos, manipulando, clínica e pontualmente, os constrangimentos da tarefa e ambientais emergentes.

 

Conclusão

O presente estudo sugere que a adaptabilidade funcional nos estilos de jogo exibidos está significativamente associada aos indicadores de desempenho em competição. Verificou-se uma associação positiva entre a capacidade das equipas em variarem os seus estilos de jogo ao longo da temporada e o desempenho coletivo. Especificamente, equipas suscetíveis de apresentar uma ampla variedade de respostas de estilo de jogo tendem a exibir indicadores de desempenho ofensivo e defensivo mais bem-sucedidos, e, em última instância, vencem mais partidas. Por outro lado, as evidências indicam que abordagens predominantemente impositivas ou reativas comprometem o desempenho coletivo e a obtenção de sucesso em competição. Apesar de os resultados do estudo apontarem direções promissoras para investigações futuras, é imperativo não sobrestimar o papel da flexibilidade no estilo de jogo na melhoria da performance individual e coletivo através do processo de treino. Afinal, o sucesso competitivo resulta da interação complexa de um número quase ilimitado de fatores.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Adaptative Behavior.

30/06/2023

Artigo do mês #42 – junho 2023 | Comparação da carga de treino entre formatos reduzidos, médios e grandes de jogo no futebol profissional

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

- 42 -

Autores: Beato, M., Vicens-Bordas, J., Peña, J., & Costin, A. J.

País: Inglaterra

Data de publicação: 5-maio-2023

Título: Training load comparison between small, medium, and large-sided games in professional football

Referência: Beato, M., Vicens-Bordas, J., Peña, J., & Costin, A. J. (2023). Training load comparison between small, medium, and large-sided games in professional football. Frontiers in Sports and Active Living, 5, 1165242. https://doi.org/10.3389/fspor.2023.1165242

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 42 – junho de 2023.

 

Apresentação do problema

O treino de futebol tem como intento desenvolver a capacidade física e as competências táticas e técnicas dos jogadores para que possam render nos jogos formais (Bradley et al., 2013). Nos últimos anos, as atividades de jogo – que têm sido categorizados em reduzidas (small-sided games; SSG), médias (medium-sided games; MSG) e grandes (large-sided games; LSG) – são frequentemente propostas pelos treinadores para melhorar as capacidades e as competências suprarreferidas (Gualtieri et al., 2023). Do ponto de vista da condição física, os jogos reduzidos podem melhorar as potências aeróbia e anaeróbia, e as capacidades de aceleração e desaceleração (Kelly et a., 2013; Moran et al., 2019). Ainda assim, estes meios de treino não são propícios para replicar as exigências de sprint e de corrida de alta velocidade observadas em competição (Dello Iacono et al., 2023; Hill-Haas et al., 2011). 

Numa perspetiva de gestão do treino, estudos prévios mostraram que as atividades de jogo podem ser manipuladas através da alteração das dimensões do espaço de modo a obter diferentes áreas relativas por jogador (Christopher et al., 2016; Hill-Haas et al., 2011). Por exemplo, a corrida de alta velocidade aumenta em jogos com áreas relativas por jogador mais elevadas, embora sejam proporcionadas mais acelerações e desacelerações em jogos com áreas relativas por jogador mais reduzidas (Beato et al., 2021; Riboli et al., 2020; Silva et al., 2022). No futebol, no decurso de um microciclo semanal de treino são selecionados jogos específicos para cada dia, de maneira a fornecer aos jogadores o estímulo físico desejado (Buchheit et al., 2018; Paul & Nassis, 2015). 

Os formatos reduzidos de jogo incluem o 2v2, o 3v3 e o 4v4, os formatos médios o 5v5, o 6v6 e o 7v7, e os formatos grandes o 8v8, o 9v9 e o 10v10 (Dello Iacono et al., 2023). Não obstante haver um vasto corpo de investigação sobre as múltiplas valências dos jogos reduzidos, sabe-se que as exigências de aceleração e de desaceleração, bem como as distâncias de sprint e de corrida de alta velocidade, variam bastante entre os estudos (Silva et al., 2022). No entanto, a informação disponível proveniente da análise detalhada de jogos em formatos reduzidos (i.e., 2v2) até formatos maiores (i.e., 10v10), no seio de uma equipa de futebol, é praticamente inexistente. Por sua vez, também é conhecido que a posição dos jogadores influencia as exigências de carga externa em jogos oficiais (Bush et al., 2015). As posições exteriores induzem maiores distâncias de corrida de alta velocidade que as registadas para defesas centrais e pontas de lança. As posições centrais tendem a requerer um maior número de acelerações e desacelerações relativamente às posições periféricas (Bangsbo et al., 2006). Este também pode ser o caso em situações de jogo reduzido, mas ainda não está claro que jogos potenciam as exigências físicas próprias de cada posição de jogo. 

A quantificação da carga de treino é usualmente obtida através de medidas da carga interna (e.g., frequência cardíaca – FC; perceção subjetiva de esforço – PSE) e da carga externa (e.g., distâncias, velocidades, acelerações/desacelerações) (Anderson et al., 2016; Gualtieri et al., 2020). Em particular, enquanto a avaliação da PSE é barata, fácil de executar e está positivamente correlacionada com parâmetros fisiológicos, como a FC e o lactato sanguíneo (Impellizzeri et al., 2004), as medidas da carga externa são captadas por sistemas de navegação global por satélite e são ainda fiáveis para caracterizar o esforço produzido em treino e em competição (Beato et al., 2018; Kelly et al., 2020). Uma vez que a diferença das cargas interna e externa entre os diversos formatos de jogo, tal como os efeitos da posição de jogo nesses parâmetros, não estão bem definidos, é necessário recolher mais dados sobre o assunto. Assim, em primeira instância, o propósito do estudo visou verificar se (1) os parâmetros de carga interna e externa foram distintos entre os diversos formatos de jogo (SSG, MSG e LSG) e (2) a posição de jogo afetou esses mesmos parâmetros. Em última instância, os autores procuraram clarificar se a carga interna e a carga externa diferiram entre os tipos de jogo (de 2v2 a 10v10) disputados por jogadores profissionais de futebol do género masculino.

 

Métodos

Participantes: 25 jogadores profissionais (idade: 27 ± 9 anos; massa corporal: 78 ± 14 kg) pertencentes ao mesmo clube na época 2022/2023. Os critérios de inclusão passaram por não haver doenças ou lesões que impedissem os jogadores de participar no treino e em competição. Os dados dos guarda-redes foram excluídos da análise, pelo que só foram considerados os dados dos jogadores de campo. O tamanho da amostra foi estimado através de G*power para uma ANOVA de uma via com efeito fixo, que indicou que seria necessário um total de 159 pontos de observação para detetar um efeito pequeno, com uma potência de 80% e um nível alfa de 5%. A amostra do estudo incluiu 780 pontos de observação individuais, com uma potência real acima de 95%, o que permitiu reduzir a probabilidade de erros tipo II (falsos negativos). 

Design experimental: os jogos foram categorizados em 3 formatos: reduzido (SSG: 2v2, 3v3 e 4v4; n = 145), médio (MSG: 5v5, 6v6 e 7v7; n = 431) e grande (LSG: 8v8 e 10v10; n = 204). As dimensões dos diversos jogos foram arbitrariamente classificadas em pequenas (<99 m2/jogador), médias (de 100 a 199 m2/jogador), grandes (de 200 a 289 m2/jogador) e dimensões regulares (>290 m2/jogador), que corresponde ao tamanho do campo mínimo permitido pela FIFA (100x64m) para um jogo oficial de Futebol de 11 a nível profissional. Neste estudo, o campo utilizado media 108x72m, o equivalente a 353.4 m2/jogador (incluindo guarda-redes). A tabela 1 especifica as características dos jogos propostos nas sessões de treino, incluindo balizas e guarda-redes. Foram colocadas bolas à volta do campo para assegurar reposições rápida da bola em jogo. Os treinadores puderam encorajar os seus jogadores para aumentar a intensidade do esforço. Apenas os dados dos jogadores que concluíram os exercícios foram incluídos na análise subsequente. Os jogadores foram distribuídos por 5 categorias em função da posição de jogo: defesas centrais (center backs – CD); defesas laterais (fullbacks – FB); médios-centro (center midfielders – CM); médios ofensivos (attacking midfielders – AM); pontas de lança (strikers – ST).

 

Tabela 1. Características dos jogos em função da relação numérica, da área relativa por jogador e das dimensões espaciais.


Variáveis de carga interna e externa: a carga interna dos jogadores foi expressa em unidades arbitrárias, sendo obtida através de uma escala previamente validada: Borg CR10 (escala adaptada de Borg de 1 a 10). Cada jogador comunicou a sua perceção subjetiva de esforço imediatamente após o término de cada jogo. Os dados de carga externa foram recolhidos através de unidades Apex da STATSports, a uma frequência de 10 Hz. Esta tecnologia de sistema de navegação global por satélite (i.e., sistemas de posição global e GLONASS) recorre a múltiplos sistemas de rastreamento por satélite para obter informação posicional precisa e fiável (Beato et al., 2018). As métricas de carga externa foram quantificadas e reportadas em frequências por minuto, considerando eventuais diferenças no tempo de exposição dos jogadores nos jogos. As variáveis registadas foram a distância percorrida (m/min), a distância em corrida de alta velocidade (>19.8 km/h), a distância em sprint (>25.2 km/h) e o número de acelerações de alta intensidade (>3 m/s2) e de desacelerações (<−3 m/s2) (Beato et al., 2021). 

Análise estatística: as estatísticas descritivas foram indicadas como médias ± desvios-padrão. O teste Shapiro-Wilk foi usado para verificar a assunção de normalidade dos dados. Inicialmente, foi aplicado um modelo linear misto, com o método Satterthwaite (estimação dos graus de liberdade com base nos resultados analíticos), para avaliar se existiram diferenças entre os formatos (SSG, MSG e LSG; efeitos fixos) e as posições dos jogadores (efeitos fixos) para as diversas variáveis dependentes. Os jogadores foram inseridos como efeitos aleatórios. Na segunda análise, foi calculado um novo modelo linear misto para os diversos jogos (de 2v2 a 10v10; efeitos fixos), com os jogadores como efeitos aleatórios. Em presença de diferenças significativas, foi ainda executada uma estimação de médias marginais (contrastes) com a correção de Holm para comparações múltiplas. Os intervalos de confiança a 95% estimados foram indicados em caixas de bigodes (e.g., figuras 2 e 3). As dimensões de efeito foram calculadas a partir do valor do teste estatístico (t) e dos graus de liberdade (df) dos contrastes, e interpretados segundo o princípio do d de Cohen: trivial < 0.2, pequena 0.2–0.6, moderada 0.6– 1.2, grande 1.2–2.0 e muito grande > 2.0 (Hopkins et al., 2009). O nível de significância foi de 5% (p < 0.05) para todos os testes e as análises estatísticas foram realizadas no JASP (JASP v. 0.16.13., Amsterdão, Países Baixos).

 

Principais resultados

 

· Perceção subjetiva de esforço (PSE): a análise estatística revelou diferenças significativas entre os formatos de jogo, mas não entre as posições de jogo. Em particular, os formatos grandes e reduzidos induziram maiores cargas internas que os formatos médios de jogo (dimensões de efeito grande). O valor mais elevado foi registado no jogo reduzido 2v2 (PSE = 7.4), comparativamente aos jogos médios 5v5 (PSE = 6.3), 6v6 (PSE = 4.8) e 7v7 (PSE = 6.1), mas sem diferença significativa para o jogo grande 10v10 (PSE = 7.3).

 

· Distância percorrida: a distância percorrida por minuto foi superior nos formatos grandes de jogo, sendo o 8v8 e o 10v10 as situações mais exigentes neste domínio. Para termos uma noção mais concreta, a distância percorrida por minuto foi mais elevada no 10v10 (111.4 m/min), cerca do dobro do observado no 2v2 (56.1 m/min). Por sua vez, os formatos médios de jogo proporcionaram que os jogadores percorressem distâncias mais elevadas (101.3 m/min) em relação aos jogos mais reduzidos (65.6 m/min). A posição de jogo não afetou a distância percorrida pelos jogadores.

 

·  Distância percorrida em corrida de alta velocidade: os formatos grandes de jogo 8v8 e 10v10 foram os que mais exigiram em termos de distância percorrida acima dos 19.8 Km/h, com valores médios de 5.5 m/min e 3.3 m/min, respetivamente, o que foi significativamente diferente do constatado para qualquer formato reduzido de jogo. Os defesas laterais e os pontas de lança percorreram distâncias em corrida de alta velocidade (4.1 m/min e 4.0 m/min, respetivamente) significativamente superiores aos defesas centrais (1.9 m/min) nos diversos formatos de jogo. A diferença entre pontas de lança e médios-centro (2.2 m/min) também foi significativa (figura 2).

 

Figura 2. Comparação da distância percorrida em alta velocidade entre formatos (SSG – small-sided games; MSG – medium-sided games; LSG – large-sided games) e posições de jogo (CD – central defender; FB – fullback; CM – central midfielder; AM – attacking midfielder; ST – striker) (Beato et al., 2023).

 

· Distância percorrida em sprint: os formatos grandes de jogo são, na generalidade, mais apropriados para a ocorrência de sprints e dificilmente tal acontecesse nos formatos mais reduzidos. No estudo, praticamente só foram encontrados valores de corrida em sprint nos formatos grandes (0.9 m/min), ao invés do verificado nos formatos médios e reduzidos de jogo (0.1 m/min). O 10v10 foi o único formato que fomentou intensidades médias superiores a 1 m/min. A posição de jogo influenciou a distância percorrida em sprint. Os defesas laterais (0.7 m/min) superaram os médios ofensivos, os defesas centrais e os médios-centro, mas obtiveram valores comparáveis aos pontas de lança (0.5 m/min) (figura 3).

 

Figura 3. Comparação da distância percorrida em sprint entre formatos (SSG – small-sided games; MSG – medium-sided games; LSG – large-sided games) e posições de jogo (CD – central defender; FB – fullback; CM – central midfielder; AM – attacking midfielder; ST – striker) (Beato et al., 2023).

 

·  Acelerações: o número de acelerações foi significativamente superior nos formatos médios de jogo, em comparação quer com os formatos grandes (dimensão de efeito grande), quer com os formatos reduzidos de jogo (dimensão de efeito pequena). Os jogos médios 5v5 e 6v6 foram os que mais incitaram a capacidade de aceleração. Por outro lado, o número de acelerações não diferiu entre as diferentes posições de jogo. Independentemente do seu papel na equipa, os jogadores experienciaram exigências mecânicas idênticas ao nível da aceleração.

 

·  Desacelerações: a tendência foi similar à verificada para as acelerações – os formatos médios de jogo proporcionaram um número significativamente mais elevado de desacelerações do que os formatos grandes (dimensão de efeito grande) e os formatos reduzidos de jogo (dimensão de efeito moderada). Uma vez mais, os jogos 5v5 e 6v6 foram os que mais propiciaram desacelerações intensas (“travagens”). Nesta variável de carga externa, os pontas de lança efetuaram significativamente mais desacelerações (1.8 m/min) que os defesas centrais (1.5 m/min) e os defesas laterais (1.6 m/min).

 

Aplicações práticas

Os profissionais do treino são incentivados a utilizar escalas de perceção subjetiva de esforço (PSE), pois trata-se de um instrumento barato e de fácil utilização para avaliar e controlar a carga percebida em situações de jogo. Contudo, não é possível saber se as diferenças verificadas se devem ao aumento da distância percorrida ou do número de acelerações executadas pelos jogadores. O mais indicado é recorrer a parâmetros de carga interna e externa para obter uma caracterização adequada das exigências suscitadas pelos diferentes formatos de jogo. Convém também relembrar que a PSE não é uma medida pura de intensidade e é afetada pela duração da atividade. Os treinadores devem equacionar este fator ao comparar formatos de jogo com durações distintas. De qualquer modo, para aumentar o esforço percebido pelos jogadores, os técnicos devem estruturar atividades de jogo muito reduzidas (e.g., 2v2) ou, ao invés, similares à situação de jogo formal (e.g., 10v10). 

Para alcançar distâncias decentes em corrida de alta velocidade ou em sprint, é absolutamente necessário estruturar jogos em espaços grandes (>200 m2/jogador) ou com dimensões próximas das regulamentadas para o jogo oficial (>290 m2/jogador). Caso o microciclo seja maioritariamente composto por formatos reduzidos e médios de jogo, é muito provável que os jogadores profissionais precisem de exercícios complementares de corrida (e.g., treino intervalado de sprint linear ou curvilíneo) para cobrir as distâncias de sprint consideradas ótimas para competir e prevenir o aparecimento de lesões musculares. 

Além disso, muito embora os jogos que simulam ou replicam as relações numéricas e as dimensões regulamentares – neste estudo, o 10v10 com 353.4 m2/jogador – constituam um potente estímulo para o desenvolvimento da capacidade física dos jogadores, podem não ser suficientes para que se atinja a dose mínima indicada para produzir adaptações satisfatórias para os jogos competitivos. Saliente-se que o 10v10 foi o único jogo que fomentou o desenvolvimento de ações de sprint em situação contextualizada, mas seria necessário propor outro tipo de exercício para atingir a preparação ideal. 

Ao contrário do que é frequentemente aceite entre os treinadores de futebol, os formatos mais reduzidos de jogo (i.e., 2v2, 3v3 e 4v4) não parecem ser os melhores para sobrecarregar os jogadores no que a acelerações e a desacelerações diz respeito. Os formatos médios de jogo (5v5 e 6v6; 67–140 m2/jogador) são mais indicados e possibilitam ainda que se desenvolvam comportamentos tático-técnicos em contextos dotados de maior dificuldade e complexidade. 

Os treinadores podem recorrer a diversos formatos de jogo para estimular os seus jogadores, em função da sua posição e do seu papel na equipa. A perceção subjetiva de esforço e a distância percorrida não foram influenciadas pelas posições dos jogadores, porém, as distâncias percorridas em corrida de alta velocidade e em sprint, bem como o número de desacelerações, foram. Estes resultados são interessantes, mas, por exemplo, em termos de desacelerações, a magnitude das diferenças observadas foi bastante reduzida. Caso os treinadores, os preparadores físicos e os analistas de desempenho pretendam otimizar a preparação de cada jogador, face às missões táticas que é suposto que cumpram em competição, devem ter estas evidências em consideração no design de jogos para incorporar no microciclo de treino.

 

Conclusão

O estudo mostrou que ps parâmetros da carga interna (i.e., PSE) e de carga externa (e.g., acelerações e distância percorrida em sprint) diferiram entre os formatos de jogo propostos (reduzidos, médios e grandes) a jogadores profissionais de futebol. Alguns formatos foram mais propícios para estimular determinadas variáveis da carga física imposta aos participantes: (1) a distância percorrida por minuto foi maior nos formatos grandes, comparando com os formatos reduzidos e médios de jogo; (2) a distância em sprint foi superior nos formatos grandes em relação aos formatos mais reduzidos; (3) o número de acelerações e desacelerações foi mais elevado nos formatos médios (vs. formatos reduzidos e grandes). Adicionalmente, algumas variáveis da carga externa (e.g., distância em corrida de alta velocidade e desacelerações) foram sensíveis às posições dos jogadores. Por exemplo, as distâncias percorridas em corrida de alta velocidade e em sprint foram superiores nos pontas de lança relativamente aos defesas laterais e aos defesas centrais. Os treinadores devem estar cientes das exigências de carga interna e de carga externa dos jogos que propõem aos seus jogadores, bem como saber se as suas posições de jogo afetam (ou não) esses parâmetros de carga, pois essa informação é crítica para um planeamento apropriado da carga de treino. Finalmente, a análise dos parâmetros de carga dos diversos formatos de jogo propostos (de 2v2 a 10v10) revelou que (1) a situação mais exigente para a distância percorrida por minuto foi o 8v8; (2) o 10v10 foi a atividade que determinou maiores distâncias em corrida de alta intensidade e em sprint; (3) o 5v5 e o 6v6 foram os jogos mais propícios para provocar acelerações e desacelerações. Na prática, estes resultados podem auxiliar os treinadores a ponderar e selecionar jogos mais apropriados para incorporar num dado microciclo de treino.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Sports and Active Living.