25/01/2016

Uma tarde de domingo na Academia Sporting

Vinte e quatro de janeiro de 2016. Podia ser um domingo qualquer, mas era dia de eleições presidenciais e visita à Academia do Sporting CP, em Alcochete. Não foi uma estreia; há cerca de 11 anos foi-nos apresentada a academia numa reunião para estágio no clube que, para mim, nunca chegou a acontecer. A vida ditou outro rumo e o Atlético Clube de Portugal apadrinhou a minha estreia como treinador no futebol de formação.

Antes da visita à Academia Sporting com os miúdos do Portimonense SC (2003 e 2005), o dia começou com o cumprimento de um dever cívico: votar nas eleições presidenciais. Se não fui o primeiro a votar no concelho de Monchique, fui certamente um dos primeiros. À porta do quartel dos bombeiros, o casal responsável pelas sondagens à boca da urna ainda tomava o seu pequeno-almoço. Saímos de Portimão por volta das 9h, almoçámos em Grândola e entrámos na Academia às 14h15, com uma forte e animada falange de apoio; os familiares dos miúdos mobilizaram-se massivamente. Em pouco menos de meia hora, os rapazes vestiram-se, ouviram as indicações estratégico-táticas e a palavra de ordem: honra. Honrar o convite que nos foi endereçado, honrar o Portimonense e, sobretudo, honrar o trabalho efetuado desde o início da época. Sermos iguais a nós próprios e divertirmo-nos com responsabilidade. Assim foi.

Imagem. A nossa chegada à Academia Sporting.

O encontro consistiu num triangular de Futebol 7 com o Sporting CP (2004) e o GD Teixosense (2003). Duas partes de 20 minutos por jogo e um plantel de 16 jovens para gerir. Dois jogos consecutivos, praticamente sem paragens. A informalidade do evento – sem árbitros e com os próprios treinadores a gerir o tempo de jogo – tornou o encontro ainda mais sui generis. O clima de treino imbuído num regime de competição, com uma elevada dose de fair-play entre as três equipas participantes. Se no primeiro jogo vencemos a equipa de Teixoso por números expressivos, o desafio contra a rapaziada da casa foi mesmo isso: um (enorme) desafio. O jogo foi muito bem disputado pelas equipas e a palavra «problema» apareceu regularmente diante dos nossos miúdos. Para «problema» tem de surgir «solução» ou «soluções» e, no fundo, é deste modo que se evolui no futebol, ou em outra qualquer área de atividade. Ao contrário das Presidenciais 2016, o resultado final (1-1) deu origem a uma segunda volta: as grandes penalidades. Neste particular, o Sporting revelou-se mais competente e venceu-nos por 2-0.

Imagem. As equipas do Portimonense SC (2003 e 2005) na Academia Sporting.
(fonte: Pedro Simões)

Acima de tudo, fica o valor formativo da experiência e, desde logo, saliento a forma como fomos bem recebidos pelo Sporting CP. Partilhar os campos de treino com jogadores da academia, de diversas idades, que se encontravam a praticar informalmente a modalidade; utilizar balneários que, muito provavelmente, acolheram craques como Cristiano Ronaldo, João Moutinho, Nani, João Mário, entre outros, é uma oportunidade que os jovens devem mais tarde poder recordar com alegria e saudosismo. E que o sonho do futebol continue a ser, cuidadosamente, alimentado com estas ações, pois se agora assim não for, não o será seguramente quando tiverem 30 ou 40 anos.

Até sempre, Alcochete.

26/12/2015

O intervalo nos jogos desportivos coletivos: Estratégias para maximizar a performance na segunda parte

«Como maximizar a performance dos jogadores nos jogos desportivos coletivos (JDC)?»

Esta é a pergunta que todos os treinadores devem fazer continuamente ao longo das suas carreiras. As práticas mudam, os métodos e as estratégias também e compete ao treinador ir estando a par das últimas tendências e da investigação que é realizada na área das Ciências do Desporto. Se há práticas que há décadas se encontram inalteráveis são as que ocorrem durante os intervalos na maioria dos JDC (andebol, futebol, râguebi, hóquei em campo, hóquei em patins, etc.). Os jogadores recolhem aos balneários, ingerem alguns hidratos de carbono e água/bebidas isotónicas, eventualmente recebem alguns cuidados médicos e, grosso modo, ouvem as indicações estratégico-táticas e as dicas motivacionais dos treinadores.

Em 2003, quando fui voluntário no World Congress on Science and Football, na Faculdade de Motricidade Humana (Lisboa), tive a feliz oportunidade de assistir a uma apresentação do investigador das Ilhas Faroé Magni Mohr, que visava a importância de reaquecer no intervalo de um jogo de futebol. Nunca, como praticante, me tinham mandado reaquecer antes de entrarmos para a segunda parte. Recentemente, já em 2015, num artigo publicado na conceituada revista Sports Medicine, Mark Russell e colaboradores fizeram uma síntese das evidências existentes sobre o tema e propuseram algumas estratégias a implementar, no intuito de manter ou maximizar o desempenho dos jogadores nas segundas partes.

O racional teórico deste artigo de revisão reporta decréscimos em diversos aspetos da performance dos jogadores e das equipas nas etapas iniciais da segunda parte. Por exemplo, 20% dos futebolistas têm o seu período menos intenso de jogo nos 15 minutos subsequentes ao intervalo (Mohr et al., 2005). Para além disso, foi observado um aumento significativo do risco de lesão nos primeiros 20 minutos da segunda parte. Segundo os investigadores, os efeitos nocivos do intervalo no desempenho inicial dos jogadores na segunda parte devem-se a algumas alterações fisiológicas, decorrentes da natureza passiva das práticas propostas pelos treinadores. Assim, tende a verificar-se decréscimos nas temperaturas muscular e do core, alterações no equilíbrio ácido-base e na resposta glicémica.

De acordo com Russell et al. (2015), o intervalo concede uma oportunidade adicional para os treinadores otimizarem a performance da equipa na segunda parte. Contudo, para que isso suceda, não se pode restringir o tempo disponível a instruções estratégico-táticas. Tomemos em consideração o modelo proposto pelos autores (figura 1).

Figura 1. Modelo teórico de estratégias sugeridas para um intervalo de 15 minutos
(Russell et al., 2015; clique para ampliar).


Este modelo compreende um período de 2 minutos para regressar ao balneário/cabine da equipa. Os jogadores devem tentar manter a temperatura corporal e, para isso, as estratégias passivas incluem vestir casacos térmicos, colocar um cobertor sobre as pernas ou, se for possível, aclimatizar o balneário para atenuar a perda de calor corporal. Três minutos, no máximo, constituem o tempo do jogador, que pode incluir alguns cuidados médicos. Em seguida, o treinador tem 2 minutos para instruções estratégico-táticas à equipa e que pode envolver análise de vídeo. Outros 2 minutos podem ser utilizados para conceder feedbacks individuais aos jogadores. Atenção, porque a utilização de vídeos pode induzir respostas hormonais desejadas ou indesejadas. Por exemplo, mostrar a execução correta de ações do jogador/equipa estimula o aumento da concentração da testosterona; no entanto, a visualização de jogadas/ações bem sucedidas dos jogadores adversários incrementa a resposta de stress.

A 6 minutos do reinício da partida, os jogadores devem preparar o seu equipamento e consumir uma pastilha de cafeína. A cafeína é um estimulante do sistema nervoso central e, quando tomada ao intervalo, pode ser eficaz para o desempenho desportivo subsequente. Ryan et al. (2013) observaram melhorias na performance de cycling, quando uma pastilha com 300 mg de cafeína foi ministrada 5 minutos antes do exercício. Posteriormente, os autores propõem 3 minutos de reaquecimento (estratégia ativa para manutenção da temperatura corporal). O reaquecimento pode incluir exercícios de intensidade moderada (agilidade, mobilidade, jogos reduzidos/condicionados) e breves exercícios de alta intensidade para modificar favoravelmente o pole hormonal antes da segunda parte. Para terminar o reaquecimento, Russell et al. (2015) sugerem a utilização de Post-Activation Potentiation, isto é, alguns exercícios pliométricos para preparar a atividade contrátil dos músculos mais solicitados no decurso do jogo. Finalmente, o intervalo deve incorporar a ingestão de hidratos de carbono. Embora os efeitos de hidratos de carbono de diferentes índices glicémicos ainda necessitem de ser investigados, é plausível que hidratos de carbono de baixo índice glicémico prolonguem as concentrações de glucose sanguínea que, normalmente, sofrem um declínio ao longo das segundas partes das partidas.

Portanto, o intervalo deve ser encarado como uma oportunidade para aplicar estratégias específicas que visem manter ou maximizar a performance no decurso da segunda parte. Conforme foi referido pelos próprios autores, o modelo proposto procura complementar, e não substituir, os protocolos já existentes na maioria dos JDC. Ainda assim, pode ser adaptado em função da idade dos praticantes, do nível de rendimento desportivo e das condições de trabalho existentes num determinado clube.

Continuação de boas festas para todos!

Referências
Mohr, M., Krustrup, P., & Bangsbo, J. (2005). Fatigue in soccer: A brief review. Journal of Sports Sciences, 23(6), 593-599.
Russell, M., West, D. J., Harper, L. D., Cook, C. J., & Kilduff, L. P. (2015). Half-time strategies to enhance second-half performance in team-sports players: A review and recommendations. Sports Medicine, 45(3), 353-364.
Ryan, E. J., Kim, C-H., Fickes, E. J., Williamson, M., Mullher, M. D., Barkley, J. E., Gunstad, J., & Glickman, E. L. (2013). Caffeine gum and cycling performance: A timing study. Journal of Strength and Conditioning Research, 27(1), 259-264.

03/12/2015

As novas tendências do futebol contemporâneo

Recentemente, a UEFA publicou o seu relatório técnico anual referente à edição 2014/2015 da Champions League. Baseando-se em evidências factuais dos 125 jogos disputados, o grupo de observadores técnicos da UEFA indicou algumas das tendências mais notórias nas equipas de sucesso. O subtítulo «pressão, intensidade e risco» dá o mote.

Pressão defensiva. A pressão defensiva em zonas avançadas do terreno de jogo é uma característica de equipas bem-sucedidas na Champions. Pressionar alto, restringindo linhas de passe e encurtando os espaços dos adversários, para além de condicionar a construção de jogo da formação oponente, permite recuperar a posse de bola em zonas passíveis de gerar, no imediato, situações de finalização. É, portanto, um «dois em um».

Intensidade. De acordo com os dados fornecidos, em 75 das 125 partidas, o tempo real de jogo ultrapassou os 60 minutos. Por exemplo, no mundial do Brasil, em 2014, apenas 9 dos 64 jogos obtiveram registo semelhante. Segundo este relatório, «os treinadores devem estar cientes de que os jogadores necessitam de estar física e mentalmente aptos para lidar com intensidades elevadas durante períodos longos de tempo» (p. 28). A intensidade, por si só, tem muito que se lhe diga. Atentemos à Tabela 1.

Tabela 1. Distâncias médias percorridas pelas equipas da UEFA Champions League, na época 2014/2015 (UEFA, 2015; p.f., clique para ampliar).

Nove das equipas na metade superior da tabela foram eliminadas na fase de grupos, enquanto 3 das 4 semifinalistas constam na metade inferior da tabela. Como já foi alvo de análise num texto anterior deste blogue, a organização coletiva é muito mais relevante que a intensidade (física) por si.

Risco e gestão do risco no processo ofensivo. Os observadores aludem à importância da subida dos laterais nos respetivos corredores (largura e profundidade) para criar desequilíbrios ofensivos no terço defensivo contrário. No entanto, a gestão do risco é essencial e, por isso, os poucos jogadores utilizados para (re)equilibrar defensivamente (3 ou 4) devem ser competentes na leitura do jogo, na ocupação do espaço e eficazes nas suas ações, no intuito de evitar transições ofensivas nefastas para a sua baliza.

A crescente preponderância das transições. 20.6% dos golos concretizados em situações de «bola corrida» decorreram de transições rápidas. Este paradigma foi também evidente na equipa vencedora: o FC Barcelona. O sucesso da equipa já não dependente exclusivamente da sua habilidade para controlar a posse de bola e aproveitar as desconcentrações do conjunto oponente; as saídas em transições rápidas para, posteriormente, utilizar as valências ofensivas dos seus atacantes no 1v1, é uma nova tendência (variável) a adicionar na equação do sucesso dos catalães.

O conceito de «flexibilidade tática». Atualmente, as equipas são capazes de alterar a sua estrutura/matriz organizativa, durante o jogo ou competição, no intuito de surpreender as equipas adversárias. De acordo com os observadores, apenas um terço das equipas participantes mantiveram o seu sistema de jogo ao longo da sua campanha.

Os guarda-redes modernos são autênticos líberos. A clássica tarefa de defender a baliza já não é o único pressuposto para classificar um guarda-redes contemporâneo como bem-sucedido. Não é por acaso que os observadores técnicos da UEFA utilizam o termo «sweeper-keeper» (guarda-redes líbero). A tendência atual é para os guarda-redes participarem na etapa de construção do processo ofensivo (veja-se, por exemplo, os expoentes máximos da escola alemã: Neuer e ter Stegen). A competência a jogar com os pés, em construção, a intervir nas saídas de zonas de pressão defensiva adversária com critério, i.e., fazendo com que a sua equipa dê seguimento ao processo ofensivo, é um aspeto chave do futebol contemporâneo. Ademais, em processo defensivo, e com a linha defensiva cada vez mais avançada no espaço de jogo, os guarda-redes também têm de jogar mais afastados da linha de golo. A leitura de jogo, a capacidade de antecipação e a qualidade técnica com os pés, são particularidades cruciais nestes líberos modernos. 

A elevadíssima precisão do passe. O vencedor da competição, à semelhança do Bayern Munique, obteve 90% de passes precisos. A ação que estabelece redes de comunicação ofensiva entre companheiros de equipa, quando executada corretamente em diversos contextos ou fases do jogo, determina o sucesso. Neste particular, é ainda destacado o papel do «playmaker» (vulgo jogador 10), considerado como uma espécie cada vez mais rara no futebol atual.

Referência
Union of European Football Associations. (2015). UEFA Champions League – Season review 2014/2015. Retirado de:
http://www.uefa.org/MultimediaFiles/Download/uefaorg/General/02/27/33/33/2273333_DOWNLOAD.pdf

19/11/2015

A atual seleção brasileira: O paradigma de um «gigante adormecido»

Por questões demográficas, sociais e culturais, o Brasil sempre foi e ainda será – especulo eu – o maior «viveiro» de jovens talentos de futebol do mundo. Na sequência desse fator, a equipa nacional brasileira está no topo das seleções com mais títulos à escala planetária: penta-campeã mundial (1958, 1962, 1970, 1994 e 2002), 8 vezes campeã da Copa América (1919, 1922, 1949, 1989, 1997, 1999, 2004 e 2007) e vencedora da Taça das Confederações por 4 vezes (1997, 2005, 2009 e 2013). Porém, se retirarmos a Taça das Confederações da FIFA, a competição mais recente e menos importante das supramencionadas, significa que há quase uma década que a principal seleção brasileira não vence uma grande competição internacional.

Para além disso, apesar dos recentes resultados positivos (Argentina 1 x 1 Brasil e Brasil 3 x 0 Peru) a contar para a fase de qualificação do Campeonato Mundial de 2018, a realizar na Rússia, o tom de contestação ao técnico Dunga tem aumentado de intensidade. Alegadamente, os adeptos do «escrete» nutrem a mesma opinião que eu: tendo em consideração os jogadores ao dispor do selecionador, a qualidade de jogo do coletivo é fraca. O ex-craque Ronaldinho chegou mesmo a afirmar que só vê a seleção quem não tem nada de melhor para fazer. Mesmo assim, o apuramento para o Mundial 2018 não deverá ficar comprometido, tal não é quantidade de opções com enorme qualidade individual.

Imagem: Seleção brasileira 2015 (fonte: www.radiorainhadapaz.com.br).

A atual seleção brasileira é, arrisco-me a afirmar, a prova viva de que um conjunto excelente de jogadores não faz necessariamente uma equipa excecional (o todo é mais do que mera soma das partes). A maioria dos jogadores selecionados jogam nas melhores equipas das principais ligas europeias e, por isso, a suposta falta de «cultura tática» é, quanto a mim, uma ideia bastante redutora. Na antevisão do jogo contra o Peru, Daniel Alves colocou, indiretamente, o dedo na ferida: «O plano de jogo desde o primeiro momento é não sermos tão espectadores na partida, porque pode ser que as coisas não fluam (…)».

A fazer zapping na televisão apanhei algumas imagens de um treino do Brasil e, desconhecendo os objetivos da sessão, perguntei-me o que estavam a fazer. Não consegui perceber se o objetivo do jogo reduzido/condicionado era induzir a criação de situações de finalização, melhorar os processos de circulação de bola ou se era mesmo um jogo de casados contra solteiros, mas com jogadores de nível mundial. Não me conformei e procurei essas imagens na internet, mas não fui bem-sucedido. Contudo, encontrei estas:


Aos 01:35 do vídeo, o «central» Dunga abre no lateral direito, este toca novamente no selecionador que oferece a bola ao adversário Felipe Luís. O lateral esquerdo toca no meio em Luiz Gustavo (?) que, com companheiros soltos e estáticos no corredor central, procura mudar o corredor de jogo para Willian, colocando a bola diretamente para fora (!). O que me parece é que o problema não é a qualidade individual, nem tão pouco a «cultura tática» dos jogadores. De acordo com as imagens que tive oportunidade de observar, e ressalvo que isso pode não traduzir o que se passa noutros treinos, o modo como se operacionaliza e gere o processo de aquisição/aperfeiçoamento de princípios que norteiam a organização (intrassetorial, intersetorial e geral) da equipa é que aparenta ser negligenciado. Quando assim é num grupo de jogadores que apenas se reúne esporadicamente, é muito menos provável que «as coisas fluam», como adverte Daniel Alves. Duvido que o jogador do Barcelona (e os outros) não tenha uma ideia do que é necessário para que as coisas possam fluir. Ele próprio admitiu que «a filosofia no Barça é diferente».

Assim, a correta operacionalização do treino dota um conjunto de jogadores de referências/princípios estruturais e funcionais. Esses princípios, quando bem interpretados pelos jogadores, concedem qualidade ofensiva e defensiva ao jogo coletivo. Descurando o processo que reforça as ligações e confere sentido ao «todo», sobra «a mera soma das partes» e a dependência dos génios individuais. Contra uma Alemanha, por exemplo, um «gigante adormecido» pode não ser suficiente para evitar o descalabro.

05/11/2015

Messi vs. Ronaldo: O caso das grandes penalidades na UEFA Champions League

A grande penalidade é um evento muito peculiar num jogo de futebol, uma vez que a comum interação entre 22 jogadores é temporariamente reduzida a um confronto direto entre o jogador que marca o penalti e o guarda-redes adversário. No âmbito de uma investigação em curso, decidi comparar alguns dados relativos à marcação de grandes penalidades por Lionel Messi (Barcelona) e Cristiano Ronaldo (Real Madrid), exclusivamente na UEFA Champions League, desde a época 2010/2011 até à atual. Apenas foram consideradas as grandes penalidades assinaladas durante o tempo regulamentar dos jogos, ou seja, prolongamentos e desempates por grandes penalidades não foram incluídos.

A justificação para escolher estes jogadores é óbvia: nos últimos sete anos (2008-2014), o melhor jogador do mundo para a FIFA ou foi Messi (2009, 2010, 2011 e 2012) ou foi Ronaldo (2008, 2013 e 2014). Neste sentido, o objetivo deste texto não se prende com esgrimir argumentos sobre qual dos dois é melhor; antes, tem como propósito fazer uma análise comparativa entre dois jogadores que, acima de tudo, já marcaram uma era do futebol mundial. Para nós – adeptos da modalidade – é e será sempre um privilégio afirmar que vimos (in loco ou não) jogar estes 2 craques.

Comecemos por Messi (ver figura 1).

Figura 1. Resultado e eficácia das grandes penalidades concretizadas por Messi (n = 10) na UEFA Champions League (2010-2015), em função da zona de remate (Legenda: G = Golo; D = Defendido; F = Falhado). (Por favor, clique para ampliar).

O argentino marcou 7 golos em 10 grandes penalidades, portanto, com uma eficácia de 70%. A única bola que colocou na metade superior da baliza falhou o alvo. As 9 restantes foram colocadas na metade inferior da baliza, sendo duas delas defendidas pelos guarda-redes. A zona preferencial foi o canto inferior direito, embora não se tenha verificado uma propensão para rematar exclusivamente para o lado direito da baliza. Curiosamente, os remates direcionados para o lado esquerdo da baliza (i.e., canto inferior esquerdo e centro inferior esquerdo) – por alguns autores considerado o «lado não natural» para indivíduos esquerdinos (e.g., Chiappori et al., 2002; Noël et al., 2015) – obtiveram eficácia máxima (100%).

A figura 2 exibe os dados relativos ao português Cristiano Ronaldo.

Figura 2. Resultado e eficácia das grandes penalidades concretizadas por Ronaldo (n = 11) na UEFA Champions League (2010-2015), em função da zona de remate (Legenda: G = Golo; D = Defendido; F = Falhado). (Por favor, clique para ampliar).

Num total de 11 grandes penalidades, Ronaldo marcou 9 golos, sendo a eficácia de 81,8%. Comparativamente a Messi, constata-se uma maior dispersão dos remates pelas 8 zonas da baliza. A figura 2 sugere que Ronaldo, para além de ser mais eficaz do que Messi na marcação de grandes penalidades, é também mais imprevisível. Os três penaltis batidos para a metade superior da baliza deram golo. Os restantes 8 foram direcionados para a metade inferior da baliza; 2 foram defendidos pelos guarda-redes contrários e 6 resultaram em golo. A eficácia foi mais reduzida no lado esquerdo da baliza, aquele que é considerado pelos investigadores como o «lado natural» para indivíduos destros (Chiappori et al., 2002). Aliás, a tendência de Ronaldo foi mesmo para rematar para a metade esquerda da baliza adversária (9 em 11), ainda que para zonas distintas.

Para concluir, na Champions League, Ronaldo tem sido mais eficaz que Messi na marcação de grandes penalidades. Se o valor obtido por Messi está dentro das taxas de sucesso reportadas na literatura científica (70-81%), a eficácia de Ronaldo encontra-se ligeiramente acima. A maior eficácia do português pode dever-se ao facto de ser mais imprevisível na zona em que procura colocar a bola. Atualmente, os estudos recomendam que os jogadores direcionem o remate para as zonas altas da baliza, pois a probabilidade da bola ser defendida pelos guarda-redes reduz drasticamente e a taxa de sucesso é por norma mais elevada (López-Botella & Palao, 2007; Bar-Eli & Azar, 2009). O facto de maior interesse prende-se com a eficácia dos 2 craques ser menor quando rematam para o seu «lado natural», tendo em conta a respetiva lateralidade. A amostra recolhida por cada jogador é muito pequena, pelo que este breve exercício não deve ser extrapolado para outras competições.

Referências
Bar-Eli, M. & Azar, O. H. (2009). Penalty kicks in soccer: An empirical analysis of shooting strategies and goalkeepers’ preferences. Soccer & Society, 10(9), 183-191.
Chiappori, P.-A., Levitt, S., & Groseclose, T. (2002). Testing mixed-strategy equilibria when players are heterogeneous: The case of penalty kicks in soccer. The American Economic Review, 92(4), 1138-1151.
López-Botella, M., & Palao, J. M. (2007). Relationship between laterality of foot strike and shot zone on penalty efficacy in specialist penalty takers. International Journal of Performance Analysis in Sport, 7(3), 26-36.
Noël, B., van der Kamp, J., & Memmert, D. (2015). Implicit goalkeeper influences on goal side selection in representative penalty kicking tasks. PLOS ONE, 10(8), e0135423. doi:10.1371/journal.pone.0135423.