10/09/2020

International Journal of Sports Science & Coaching (Vol. 15/2020) | Associações de variáveis situacionais e de performance com o resultado de transições defensivas no Campeonato do Mundo de 2018

Os momentos de transição têm um papel fundamental no resultado do jogo e constituem parte importante do processo de treino no futebol. Não fomos nós que o afirmámos. Esta é, de resto, uma opinião de treinadores de alto nível, como, por exemplo, José Mourinho: “Everybody says that set plays win most games, but I think it is more about transitions” (citado por Wright et al., 2014, p. 716). 

Entre outros motivos de cariz pessoal, penso que um dos principais argumentos que levou o Rui Freitas a selecionar o tema das transições defensivas para o seu projeto de doutoramento é que, de facto, há uma carência generalizada de evidência científica em matéria de transições, sobretudo no que se relaciona com o momento da perda da posse de bola. Não tendo qualquer tipo de intromissão nessa decisão, nem na elaboração do dito projeto, julgo que foi um tiro certeiro. Por isso, quando fui convidado para colaborar com o Rui e com a professora Anna Volossovitch (orientadora da tese de doutoramento), já a investigação seguia num ponto avançado, inclusive com resultados. A minha contribuição cingiu-se ao limar de pequenas arestas. E o que importa mesmo é o produto final, ora publicado na revista britânica International Journal of Sports Science & Coaching (figura 1).



Figura 1. Título, autores e outras informações editoriais do artigo. 1- CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal; 2- CIDEF, ISMAT - Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, Portimão, Portugal.

 

Abstract

Transition moments play a major role in match outcome and constitute an important part of the soccer coaching process. Nevertheless, the body of literature on match analysis reveals a lack of knowledge regarding transition moments, particularly the defensive ones. This study aimed to analyse how several situational and performance variables were associated with different defensive transition outcomes. A sample of 977 defensive transitions from 15 matches of FIFA World Cup 2018 was coded using a bespoke observational system. Data were analysed through log-linear modelling and Pearson’s chi-square. Regarding performance variables, final position (p≤0.001; ES=0.390[≥0.290]; large effect size), duration (p≤0.001; ES=0.206[0.07; 0.21]), defensive approach (p≤0.001; ES=0.419[0.30; 0.50]), defensive pressure (p≤0.001; ES=0.147[0.05; 0.15]; medium effect sizes), numerical relations (p≤0.05; ES=0.113[0.07; 0.21]), initial position (p≤0.05; ES=0.092[0.06; 0.17]), initial number of zones (p≤0.05; ES=0.083[0.05; 0.15]), final number of zones (p≤0.001; ES=0.112[0.05; 0.15]) and defensive coverage (p≤0.001; ES=0.130[0.05; 0.15]; small effect sizes) were significantly associated with the defensive transitions outcomes. A small-sized and non-significant association (p=0.126; ES=0.080[0.07; 0.21]) was found for type of ball loss. Concerning the situational variables, a small-sized and significant association between match outcome and defensive transitions outcome was identified (p≤0.05; ES=0.092[0.07; 0.21]). Our findings provide new knowledge on factors that influence team success in defensive transitions. The coaching staff should be aware that the exploitation of areas behind the most retreated player of the midfield sector ought to be avoided. Furthermore, a reduction in the space available to ball carriers and an increased effort to quickly recover possession should be encouraged. 

Key words: Association football, performance analysis, soccer, sport analytics. 

Reference

Freitas, R., Volossovitch, A., & Almeida, C. H. (2020). Associations of situational and performance variables with defensive transitions outcomes in FIFA World Cup 2018. International Journal of Sports Science & Coaching, 15. https://doi.org/10.1177/1747954120953666

 

Um conjunto de treze variáveis distintas (três situacionais e dez de performance) foi analisado em relação à variável dependente “resultado da transição defensiva”. Sem pretender esmiuçar os resultados obtidos, bem como a discussão que deles adveio, apurámos alguns factos de interesse prático para o treinador, que de seguida sintetizo:

 

·  As equipa vencedoras foram capazes de impedir mais frequentemente a progressão espacial da equipa adversária. As melhores equipas não são somente competentes em processo ofensivo, mas também demonstram mais eficácia nos momentos de perda da bola. Nos instantes subsequentes à perda da posse, recomenda-se a promoção de situações de superioridade numérica no centro de jogo e a adoção de comportamentos, individuais e/ou coletivos, que fechem espaços a ser explorados pelos opositores, via drible ou passes progressivos.

 

· Episódios curtos de transição defensiva estiveram associados a ações defensivas bem-sucedidas. Procurar recuperar rapidamente a bola após a perda, embora seja individual e coletivamente exigente, deve ser incentivado em treino e competição.

 

·  Parece ser crucial evitar que a transição defensiva termine no espaço atrás do médio mais recuado (aM; figura 2), pois nessas circunstâncias observámos um aumento de ações de finalização dos oponentes. 


Figura 2. Identificação do espaço atrás do médio mais recuado (aM) (Freitas et al., 2020; adaptado de Seabra & Dantas, 2006).

 

·  Logo após a perda da bola, o 1.º defensor deve encurtar espaço e pressionar o portador da bola adversário, condicionado o tempo e o espaço disponível para ler o jogo e agir. Se for assegurada a existência de cobertura(s) defensiva(s), a probabilidade de recuperação da posse de bola aumenta.

 

· As equipas de elite geralmente expõem-se em demasia durante a fase ofensiva, exacerbando o princípio “espaço”. Contudo, acautelar a possível perda da bola, garantindo um posicionamento mais equilibrado no decurso do ataque, reduz as perturbações causadas pela equipa contrária nos momentos de transição.

 

Sou suspeito para adjetivar o trabalho que foi realizado, mas posso-vos confidenciar que me deu um prazer imenso reler o artigo. Não só recomendo vivamente a leitura integral daquela que é a primeira publicação científica do Rui Freitas – a quem, em particular, congratulo –, como ainda sugiro que acompanhem os conteúdos que vai escrevendo no seu blogue Diário do Mister.

09/09/2020

Como seria o futebol de rua, no final do século XIX, em Lisboa?

“Era então que descia três ou quatro ruas e chegava ao terreno baldio, entre duas hortas, onde os rapazes se juntavam para jogar à bola. Nesse terreno, não cresciam ervas porque, todos os dias, havia dúzias de rapazes que se juntavam para correrem pelo campo atrás de uma bola de trapos. Eram rapazes livres, que não iam à escola ou que não tinham nem pai nem mãe. Nesse terreno de pó no verão e de lama no inverno, cresciam pedras. As balizas eram medidas com passos de pés descalços e feitas com pequenos montes de pedras. Quase no centro do campo havia uma oliveira que sobrevivia ano após ano, maltratada pelos rapazes que lhe arrancavam pernadas e que, correndo atrás da bola, faziam fintas à sua volta e que, ocasionalmente, esbarravam no seu tronco e caíam direitos para trás.” 

In Cemitério de Pianos (José Luís Peixoto, 2006, p. 120-121)

   

Figura 1. O futebol de rua (e de pé descalço) (fonte: escolinhabenficadeabrantes.blogspot.com).

  

Apesar de não passar de um episódio de ficção, pode muito bem ter reconstituído a brincadeira de milhares crianças e jovens portugueses, não apenas no final do século XIX, como também durante boa parte do século XX. Acrescento ainda que, para além de livres, os rapazes seriam decerto muito felizes a correr descalços atrás de uma bola de trapos, num baldio de terra e pedras, e com balizas improvisadas. Este, sim, era o futebol de rua na verdadeira aceção da expressão.

22/08/2020

Desgraça (1999), de J. M. Coetzee

John Maxwell Coetzee é um escritor sul-africano que recebeu o prémio nobel da literatura em 2003. Foi o segundo escritor sul-africano e o quarto africano a receber a distinção. “Desgraça”, cuja primeira data de publicação remonta a 1999 (figura 1), foi a primeira obra que li do autor.

 

Figura 1. Capa do livro “Desgraça” (7.ª Edição, 2010, Publicações D. Quixote).

 

Para uma boa compreensão do romance é essencial estar minimamente familiarizado com o conceito de apartheid (em africâner: separação), um regime de segregação racial, liderado por uma minoria branca no poder, desde 1948 até meados da década de 90, cessando com a eleição de Nelson Mandela para presidente da África do Sul, em 1994. Embora o autor aborde o assunto de forma subtil e com mestria, uma leitura atenta é capaz de estabelecer um paralelismo entre a desgraça do professor David Lurie e a tensão sociorracial que se vivia naquele país à época. A expressão máxima dessa tensão é alcançada com o assalto e as agressões brutais a David e à sua filha Lucy, na propriedade rural de Lucy, consumados por três indivíduos de raça negra. Lucy, inclusivamente, caracteriza a violação de que foi vítima com base no ódio: “uma submissão de alguém que está em território alheio”. Mais tarde, compreende-se que o prestável vizinho Petrus tinha, de facto, a pretensão de apropriar-se de todos os bens de Lucy, somente garantindo a sua proteção caso ela se tornasse uma deles. 

Quanto à personagem principal – David Lurie –, é um indivíduo complexo. Gosta de mulheres mais novas, belas e desinibidas, tendo fracassado nos relacionamentos sérios que teve (dois divórcios). É professor de Línguas Modernas na Universidade Técnica da Cidade do Cabo e, apesar de ser uma pessoa culta e amante de literatura europeia, sabe que os alunos não gostam das suas aulas: “Uma vez que não respeita a matéria que ensina, não tem qualquer impacto nos seus alunos” (p. 8). Entende na perfeição aqueles que são os limites da decência, mas não deixa de os ultrapassar em prol dos seus impulsos (por exemplo, a chamada para casa da “acompanhante” Soraya e o assédio à aluna Melanie Isaacs). 

É precisamente a relação com a aluna Melanie que determina a espiral negativa em que entra – a sua desgraça. Resignado, admite que errou e assume a culpa perante a comissão de inquérito da universidade, teimando em não contestar as declarações de Melanie sem tomar conhecimentos das mesmas. “Primeiro a sentença, depois o julgamento” (p. 47). É no avolumar constante de problemas que Lurie dá passos para a remição dos pecados, embora ele afirme não querer tornar-se numa pessoa melhor. “Não deixa de ser curioso que um homem egoísta como ele se tenha oferecido para tratar de cães mortos” (p. 157), diz-nos o narrador. Aliás, a propósito de ser uma boa pessoa, o narrador, quase no papel de superego do protagonista, comenta que: “Não é uma má resolução a tomar numa época negra” (p. 231), quiçá aludindo à tensão racial vigente, fruto da inversão da opressão exercida pela minoria branca, nos tempos de apartheid, face aos indivíduos de raça negra. 

As especialidades do professor Lurie – mulheres e literatura – são, perto do final do livro, alvo de crítica irónica e vincada do narrador: “Grande parte da literatura trata disso: raparigas jovens tentando fugir à opressão de homens velhos, para o bem da espécie” (p. 202). Qual consequência cármica, o infortúnio é extensível às mulheres, de Melanie, bela e perfeita, a Bev Shaw, com tendência a piorar, e à sua obra artística: “Ele não possui os recursos musicais nem as reservas de energia para conseguir tirar Byron em Itália da monotonia em que caiu desde o início” (p. 228). 

A minha interpretação do final, em que David vai buscar o cão que o venera para ser abatido, com todo o carinho que o animal merece, remete-nos para uma metáfora da relação superior, e intempestiva, que manteve com a filha Lucy após o incidente na fazenda. Para o bem de ambos, importava deixar partir a proteção excessiva que evidenciou nos tempos de desgraça comum. 

Pessoalmente, julgo que o livro prometia muito nos primeiros seis capítulos – um thriller repleto de emoções, todavia, a desgraça de David levou a trama para algo menos exuberante e mais real, ficando algumas pontas soltas por esclarecer. Os livros não têm de corresponder às expectativas de cada leitor, isso seria impossível, cabe-nos a tarefa de retirar uma ou mais lições da história que o autor nos conta. Desta, eu retiro o seguinte: nunca é tarde para controlarmos os nossos impulsos, ou para corrigirmos o que de mal deles resulta.

16/08/2020

Artigo do mês #8 – agosto 2020 | Performance física no futebol juvenil: Exercícios técnicos de alta intensidade vs. jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 8 -

Autor: Karahan, M.

País: Turquia

Data de publicação: 26-junho-2020

Título: Effect of skill-based training vs. small-sided games on physical performance improvement in young soccer players

Revista: Biology of Sport

Referência: Karahan, M. (2020). Effect of skill-based training vs. small-sided games on physical performance improvement in young soccer players. Biology of Sport, 37(4), 305–312. https://doi.org/10.5114/biolsport.2020.96319 (link) 

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 8 – agosto de 2020.

 

Apresentação do problema

Os jogos desportivos coletivos (JDC), como o futebol, são, por natureza, intermitentes no que respeita ao esforço realizado. Neste sentido, os jogadores devem possuir qualidades físicas bem desenvolvidas, tal como a capacidade de mudança de direção, a velocidade e as potências aeróbia e anaeróbia. 

Diversos modelos de treino têm sido utilizados para melhorar o desempenho físico no futebol, contudo, estes serão tanto mais eficazes se forem compatíveis com a execução de ações técnicas e táticas específicas da modalidade. Quando bem conceptualizados, tanto os jogos reduzidos e/ou condicionados, como os exercícios técnicos em alta intensidade, podem promover incrementos qualitativos, em simultâneo, nas componentes técnica, tática e física dos praticantes. Recentemente, estes dois tipos de atividades têm sido amplamente propostos pelos treinadores. Por um lado, os jogos reduzidos constituem uma estratégia efetiva de treino integrado, induzindo também efeitos positivos em subcomponentes da condição física (Hammami et al., 2018); por outro lado, os exercícios técnicos (figura 2) são considerados especialmente efetivos para a aquisição de ações motoras específicas em jovens jogadores não especializados, ou para refinar e maximizar habilidades técnicas noutros praticantes mais experientes e/ou de nível mais elevado. Inclusive, estudos noutros JDC (andebol, basquetebol, futsal e voleibol) têm vindo a demonstrar que os exercícios técnicos em alta intensidade promovem melhorias significativas no sprint de 20 metros, na agilidade e em indicadores de potência aeróbia e anaeróbia (Karahan, 2012; Süel, 2015). 

 

Figura 2. Jovem praticante empenhado num exercício técnico – “skill-based training” (imagem não publicada pelo autor; fonte: dtsnewjersey.com)

 

No quadro de uma abordagem de desenvolvimento individual, os exercícios técnicos podem ter um efeito significativo nas componentes técnica e física, quando uma determinada dose de intensidade é alcançada (Dellal et al., 2012) e, fundamentalmente, se a conceptualização for direcionada a jovens praticantes, ainda não especializados numa dada modalidade desportiva. Até à data, embora se saiba que os jogos reduzidos e os exercícios técnicos em alta intensidade produzem efeitos positivos na performance física dos praticantes, nenhum estudo avaliou qual dos dois tipos de atividade pode ser mais eficaz. O objetivo do estudo foi determinar os efeitos de dois regimes de treino (small-sided games vs. skill-based) em diversas subcomponentes da condição física (sprint de 20 metros, altura do salto vertical, capacidade de mudança de direção, força explosiva, VO2máx e potência anaeróbia) e compará-los quanto à sua eficácia.

 

Materiais e Métodos

Participantes: 24 jovens praticantes de futebol, pertencentes à mesma equipa e competindo a nível amador, foram aleatoriamente distribuídos por dois grupos de intervenção: jogos reduzidos (small-sided games – SSG: n = 12, idade: 15.4 ± 0.6 anos) e exercícios técnicos em alta intensidade (skill-based training – SBT: n = 12; idade: 15.3 ± 0.3 anos). 

Procedimentos: o estudo de design longitudinal, randomizado e controlado, decorreu em paralelo para os 2 grupos de intervenção (SSG e SBT), durante 8 semanas no período preparatório (pré-época). Os testes de avaliação da performance física foram realizados 5 dias antes e após os programas de intervenção, durante o mesmo período do dia (15:00–17:00), num ginásio indoor com piso sintético. A bateria de testes consistiu num sprint de 20 metros, teste de agilidade “T” e salto vertical com contramovimento (segunda-feira), vaivém de 20 metros (quarta-feira) e RAST (running anaerobic sprint test) para avaliar a potência anaeróbia (sexta-feira). Posteriormente, os protocolos de intervenção (SSG e SBT) envolveram duas sessões por semana (terças e quintas-feiras), intercaladas com os treinos regulares da equipa (segundas e quartas-feiras), decorrendo num campo de relva natural à mesma hora do dia (15:00–16:00). O protocolo SSG envolveu jogos 3v3 entre 4 equipas fixas, havendo rotação de adversários nas sessões práticas. Em cada sessão foram realizados 4 jogos de 6 minutos, num campo 20x25 metros, com 2 minutos de recuperação passiva. O protocolo SBT envolveu 3 estações distintas realizadas com intensidade máxima: 1) corrida vaivém de 15 metros com remates para uma baliza de 2x2m, situada a 10 metros do local da bola, em cada uma das extremidades; 2) corrida transversal com mudança de direção num cone a anteceder a ação de remate, estando várias bolas sucessivamente colocadas num arco de 18 metros a 8 metros da linha de golo; 3) 5 segundos de cabeceamentos numa bola pendurada 5 cm abaixo da altura máxima de salto de cada participante, seguido de sprint de 5 metros e remate de uma bola colocada a 10 metros da baliza. As habilidades foram realizadas continuamente até perfazer o tempo de cada repetição. As componentes da carga do programa SBT encontram-se especificadas na tabela 1.

 

Tabela 1. Componentes da carga das tarefas do protocolo de intervenção SBT em cada sessão (Karahan, 2020). 

Os exercícios foram ministrados por treinadores de futebol credenciados, que intervieram nos programas de treino por forma a manter os jogadores motivados e focados ao máximo nas tarefas práticas. Foram ainda prescritas atividades de aquecimento e de retorno à calma padronizadas, tanto para os testes físicos, como para ambos os programas de intervenção. 

Análise estatística: os resultados foram apresentados como médias ± desvios-padrão. Os pressupostos de normalidade e de homogeneidade de variâncias foram avaliados, sendo aplicado um teste t para amostra independentes para determinar se as diferenças pré intervenção foram significativas entre os 2 grupos. Uma ANOVA de duas vias com medidas repetidas [2 grupos (SSG e SBT) x 2 períodos (Pré e Pós)] foi utilizada para estimar os efeitos principais e de interação das variáveis independentes na performance física. Testes post hoc de Bonferroni também foram usados caso fossem detetadas interações significativas. O tamanho dos efeitos foi apresentado através de valores de partial eta squared2) ou Cohen’s d. O nível de significância adotado foi de 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados

O estudo demonstrou que 8 semanas de treino com o programa de intervenção SBT (exercícios técnicos com intensidade máxima) melhorou significativamente todos os indicadores da performance física analisados, enquanto o programa SSG (jogos reduzidos) foi apenas efetivo (p < 0.05) no desenvolvimento do salto vertical com contramovimento, VO2máx e potência anaeróbia média. A comparação de ambos os protocolos de intervenção mostrou que o programa SBT foi significativamente mais efetivo do que o programa SSG em todos os testes físicos (sprint de 20 metros: 3.99 vs. 1.72%; salto vertical com contramovimento: 5.35 vs. 2.99%; teste de agilidade “T”: 3.7 vs. 2%; força explosiva: 8.4 vs. 5.6%; potência anaeróbia: 10.98 vs. 6.26%), à exceção da prova afeta à estimação do VO2máx (vaivém de 20 metros: 6.7 vs. 6.5%). 

No respeita à potência aeróbia, ambos os protocolos parecem induzir intensidades suficientes para o aumento de enzimas inerentes ao metabolismo aeróbio e à melhoria da performance em zonas de intensidade submáximas. O facto de o programa SSG não determinar melhorias significativas no sprint de 20 metros e na capacidade de mudança de direção pode estar relacionado com as dimensões do espaço (20x25m) e com o tempo de prática (4x6’) propostos na tarefa 3v3. 

As diferenças verificadas entre os grupos experimentais, ao nível do salto vertical com contramovimento e na força explosiva estimada, podem ser explicadas pela configuração das tarefas prescritas. O grupo SBT teve mais oportunidades para saltar (estação 3) e mais ações explosivas de curta duração nas sessões de treino que o grupo SSG. O perfil de atividade do grupo SBT, com intensidade máxima, também ocasionou ganhos mais evidentes na potência anaeróbia.

 

Conclusão

A investigação revelou que um período de intervenção de 8 semanas, incluindo exercícios técnicos em alta intensidade ou jogos reduzidos, pode melhorar a performance física de jovens jogadores de futebol durante o período preparatório da época (pré-época). Ambos os protocolos melhoraram substancialmente a potência anaeróbia, a força explosiva, o VO2máx e a altura do salto vertical dos praticantes. Contudo, no que se relaciona ao sprint de 20 metros e à capacidade de mudança de direção, apenas houve ganhos significativos no programa SBT. Desta forma, os resultados esclarecem que exercícios técnicos em alta intensidade podem ser mais apropriados que os jogos reduzidos para melhorar o desempenho físico de jovens jogadores, do género masculino, no período preparatório da época.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelo autor do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelo autor do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Biology of Sport.

31/07/2020

O último cabalista de Lisboa (1996), de Richard Zimler

A obra selecionada para o encontro do mês de julho de 2020 do Clube de Leitura de Monchique foi “O último cabalista de Lisboa”, cuja primeira edição data de 1996. Desconhecendo por completo Richard Zimler, este foi o primeiro livro que li do autor. Trata-se de um romance histórico baseado em factos reais, em que Berequias Zarco, o narrador e protagonista, discursa quase em regime autobiográfico (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “O último cabalista de Lisboa”, do autor Richard Zimler.

 

A trama gira em torno do assassinato do líder e mestre espiritual Abraão Zarco e da incompatibilidade entre duas religiões distintas – a judaica, sendo que muitos judeus foram convertidos em cristãos-novos, e a cristã, cujos crentes eram os cristãos-velhos. O clima de crispação vigente determinou o massacre de judeus no Rossio na Páscoa de 1506, a designada matança da Páscoa de 1506. Para os cristãos-velhos, incitados por frades dominicanos, os judeus eram os culpados da seca, da fome e da peste negra, devido ao seu pacto, alegadamente secreto, com o diabo. Não deixa de ser um tema forte na atualidade, na medida em que os deuses de uns são o diabo para os outros e, por isso, se têm matado milhões de pessoas ao longo da história da humanidade, pela intolerância à diferença associada ao fanatismo religioso.

Além da busca incessante de Berequias Zarco, acompanhado pelo seu fiel amigo e primo Farid, pelo assassino do tio Abraão, há inúmeras passagens desta época de ouro dos descobrimentos portugueses que me impressionaram:

 

· Os tumultos ocorreram na ausência do rei que, devido à peste negra, se havia retirado para Abrantes (muito embora fosse uma prática comum na altura, não se coaduna com a máxima que postula que os bons exemplos devem vir de cima);

 

· Os escravos africanos que morriam, muitos deles a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos, eram atirados para montes de esterco nos arredores de Lisboa (a dignidade da vida humana rebaixada à condição de esterco);

 

· Berequias assistiu à execução de judeus no Rossio, contudo, quando estava a ser perseguido por cristãos-velhos, foi salvo por uma família muçulmana (a intolerância não depende estritamente das diferenças entre religiões, mas na maldade das pessoas que se servem da religião para atingir determinados fins);

 

· A cinco séculos de distância, confesso que a citação seguinte foi extremamente dolorosa de ler:

(…) Sentado numa pá, via-se um recém-nascido desconhecido a quem tinham arrancado a cabeça.

Face ao impensável, que assim tomara forma, nenhum de nós ousara falar.

Alguém pode imaginar o que significa ver uma criança decapitada sentada numa pá? É como se todas as línguas do mundo ficassem esquecidas, como se todos os livros escritos se tivessem reduzido a pó. E como se alguém pudesse ficar feliz com tal coisa; por pessoas como nós não terem direito a falar ou escrever ou deixar qualquer traço na História (p.103).

 

· Depois há uma observação muito interessante sobre o povo português e que julgo que perdurou ao longo de todo este tempo até aos dias de hoje:

Enquanto caminhamos, observamos a atitude respeitosa do povo da cidade, o mesmo povo que um dia ou dois antes era capaz de exigir a cabeça do rei. «Esta passividade está profundamente entranhada nas almas dos cristãos portugueses», penso. «Nunca nenhuma revolta há de aqui ter sucesso» (p. 272). A passividade é um traço característico do povo português ainda visível nos tempos correntes, mas houve algumas revoltas nos últimos 500 anos e, talvez por isso, ainda possamos dizer que somos portugueses e usufruir de direitos como a liberdade de expressão.

 

· A definição cabalística do mal é, na minha opinião, um eufemismo, mas que, de certo modo, nos indica que o ser humano quando nasce é bom: “o bem que se afastou do seu justo lugar” (p. 350).

 

· Para concluir, o aviso premonitório de Berequias Zarco – o Mardoqueu na iluminura do mestre Abraão Zarco –, o herói do povo judeu: “A matança mal começou. (…) Mais tarde ou mais cedo, neste século ou daqui a cinco séculos, hão de vir procurar-vos ou aos vossos descendentes” (p. 351). Teriam os seus ensinamentos cabalísticos permitido que vislumbrasse o que viria ser o holocausto?

 

Um livro muito bem escrito, com um enredo exemplarmente estruturado pelo autor, baseado nos três manuscritos originais de Berequias Zarco e que nos relata acontecimentos que não constam propriamente nos manuais da História de Portugal.