28/03/2022

Artigo do mês #27 – março 2022 | A monitorização da carga de treino em jogadores de futebol de elite, numa época desportiva: Variações da perceção subjetiva de esforço e da creatina quinase entre microciclos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Mendes, B., Clemente, F. M., Calvete, F., Carriço, S., & Owen, A.

País: Portugal

Data de publicação: 10-fevereiro-2022

Título: Seasonal training load monitoring among elite level soccer players: Perceived exertion and creatine kinase variations between microcycles

Referência: Mendes, B., Clemente, F. M., Calvete, F., Carriço, S., & Owen, A. (2022). Seasonal training load monitoring among elite level soccer players: Perceived exertion and creatine kinase variations between microcycles. Journal of Human Kinetics, 81, 85–95. https://doi.org/10.2478/hukin-2022-0008

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 27 – março de 2022.

 

Apresentação do problema

O stress fisiológico pode acumular-se ao longo de uma época competitiva, predispondo os jogadores de futebol a situações de incapacidade para lidar com as exigências do treino e da competição, o que pode comprometer os seus desempenhos (Silva et al., 2014). A exposição continuada ao stress fisiológico pode gerar danos musculares e alterações hormonais e imunológicas difíceis de reverter (Ascensão et al., 2008; Hammouda et al., 2012; Silva et al., 2008). Deste modo, a monitorização do treino e a extensa monitorização de múltiplas amostras sanguíneas podem contribuir para controlar estados funcionais e não funcionais de overreaching (fadiga crónica) (Drust et al., 2007; Heisterberg et al., 2013). 

A perceção subjetiva de esforço é um método de controlo da carga popular, barato, efetivo e fácil de aplicar em contexto desportivo (Borg, 1982; Foster et al., 2001). O método de Foster tem sido amplamente utilizado para controlar a carga interna na sessão de treino, consistindo na multiplicação do nível reportado, numa escala de 1 a 10, pela duração da sessão de treino em minutos (Foster et al., 1996, 1998). Estes métodos subjetivos têm sido testados através de tecnologia GPS e com monitorização da frequência cardíaca e os resultados indicam que constituem um indicador global da resposta individual ao treino no futebol e podem ser considerados como fiáveis para controlar a carga interna em contexto prático (Casamichana et al., 2013). Por outro lado, parece que a perceção subjetiva de esforço não parece ser suficientemente fiável em sessões de treino muito exigentes, com colisões e esforços intermitentes de alta intensidade passíveis de originar dano muscular (Lambert & Borresen, 2010; Takarada, 2003). 

Um outro método de autoavaliação, que no caso mede a perceção de fadiga, o nível de stress, o aparecimento da dor muscular retardada e a qualidade do sono, é o índice de Hooper (Hooper & Mackinnon, 1995). É um método para avaliar o bem-estar do atleta e parece ser fiável para evitar situações de sobretreino, porém, raros foram os estudos que procuraram comparar o índice de Hooper com marcadores bioquímicos em jogadores profissionais de futebol de elite. Neste particular, controlar a creatina quinase sérica é um procedimento comum para aferir a extensão do dano muscular em futebolistas profissionais (Andersson et al., 2008; Fatouros et al., 2008; Lazarim et al., 2009), ainda que devam ser ponderados a sua alta variabilidade e a fraca relação com a recuperação muscular (Twist & Highton, 2013). 

Como vimos, o controlo da carga de treino é uma tarefa fundamental para otimizar a performance desportiva. Pode, também, ser útil para controlar a variação da carga nas sessões de treino que compõem o microciclo semanal (Coutinho et al., 2015; Impellizzeri et al., 2004). Apesar disso, são escassos os estudos que analisaram a variação semanal da carga de treino em atletas de elite e, em especial, nenhuma investigação analisou as associações entre a perceção subjetiva de esforço, o índice de Hooper (perceção de bem-estar) e a atividade da creatina quinase. As perceções das diferenças de carga no decurso da semana devem ser consideradas para identificar a sensibilidade dos jogadores às alterações da carga e ao modo como esta afeta a perceção de bem-estar e as respostas orgânicas ao dano muscular. Posto isto, o presente estudo teve o duplo propósito de determinar: 1) a variação da carga de treino diária entre microciclos; 2) as relações entre a perceção subjetiva de esforço, o índice de Hooper e os níveis de cretina quinase de futebolistas profissionais, ao longo dos microciclos semanais que compuseram a totalidade de uma época desportiva.

 

Métodos

Participantes: 35 jogadores profissionais de futebol, do género masculino; 3 guarda-redes, 6 defesas laterais, 4 defesas centrais, 9 médios centro, 8 médios-ala e 4 avançados (idade: 25.7 ± 5.0 anos; estatura: 182.3 ± 6.4 cm; massa corporal: 79.1 ± 7.0 kg). Todos os jogadores pertenciam ao mesmo clube de futebol, jogando na primeira liga portuguesa e na UEFA Champions League e foram monitorizados durante 41 microciclos semanais (figura 2).

 

Figura 2. Jogadores profissionais de futebol de elite num treino de um microciclo semanal (fonte: sapodesporto.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

Design do estudo e recolha de dados: o estudo foi tipicamente longitudinal, com dados recolhidos para cada sessão de treino ao longo de uma época desportiva completa. O índice de Hooper foi monitorizado 30 minutos antes de cada treino, enquanto a perceção subjetiva de esforço foi solicitada 30 minutos após a sessão. A duração das sessões foi registada para quantificar a carga de treino diária: perceção subjetiva de esforço x minutos da sessão de treino. Somente foram recolhidos dados dos jogadores que realizaram todo o volume da sessão de treino. A familiarização com as escalas de perceção subjetiva decorreu na pré-época, também com o intuito de identificar o perfil de resposta de cada elemento do plantel. Durante uma das primeiras semanas da época também foram recolhidas amostras sanguíneas de base para cada jogador, por forma a verificar padrões de recuperação individuais. Além disso, foram recolhidas amostras sanguíneas 48h antes e após cada jogo competitivo, mas apenas para os jogadores que disputaram mais de 60 minutos. 

Variáveis: as variáveis inclusas no estudo estão caracterizadas na tabela 1 quanto à classificação, medidas e procedimentos específicos de recolha. Em relação às respostas subjetivas, os jogadores registaram as suas respostas no seu tablet portátil, contendo uma aplicação configurada para o efeito; para avaliar os fatores do índice de Hooper e a perceção subjetiva de esforço, bastava tocar num valor da escala e salvar a resposta no respetivo perfil de utilizador.

 

Tabela 1. Caracterização das variáveis (independentes e dependentes) do estudo.


Análise estatística: foram corridas análises multivariadas da variância de duas vias (MANOVA) para averiguar diferenças entre os fatores “carga interna”, “índice de Hooper” (total), “minutos de treino” (minT) e “atividade da creatina quinase”. Quando houve interações entre fatores, foi aplicada a análise da variância de dupla via (ANOVA), seguida de ANOVA de uma via e testes post-hoc Tukey HSD para averiguar a variância dentro do fator. As dimensões de efeito (effect sizes; ES) apuradas foram interpretadas de acordo com os seguintes valores de corte: sem efeito (ES < 0.04), efeito mínimo (0.04 < ES < 0.25), efeito moderado (0.25 < ES < 0.64) e efeito forte (ES > 0.64). Os procedimentos estatísticos foram executados no software SPSS v. 23.0, com a significância definida para 5%.

 

Principais resultados

 

·      Variação das variáveis de carga de treino ao longo dos meses

A análise post-hoc revelou dois clusters no fator “meses” (primeiro cluster: agosto – dezembro; segundo cluster: janeiro – maio), com valores do índice de Hooper mais elevados no primeiro cluster (figura 1). Na variável “carga interna” foram identificados três clusters significativamente distintos (primeiro cluster: agosto; segundo cluster: setembro, outubro e fevereiro; terceiro cluster: novembro, dezembro, janeiro, março, abril e maio), sendo os valores mais elevados no primeiro cluster e mais baixos no terceiro. Finalmente, houve diferenças significativas na atividade da creatina quinase (CK) entre agosto e janeiro, e agosto e maio.

 

Figura 1. Variações do Índice de Hooper, da carga interna (internal load) e da atividade da creatina quinase (CK) ao longo dos diversos meses da época (Mendes et al., 2022).

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função do tipo de microciclo

Foram encontrados valores mais elevados no índice de Hooper nos microciclos com 1 jogo, comparativamente aos microciclos com 2 jogos, nos quais a duração dos treinos também foi significativamente mais reduzida. No que à carga de treino diz respeito, os treinos mais exigentes ocorreram nos microciclos sem jogos competitivos, seguindo-se os microciclos com 1 jogo. O tipo de microciclo não afetou a atividade da creatina quinase. A figura 2 exibe diferenças significativas na carga interna entre os dias do microciclo com 1 e 2 jogos, o que não aconteceu nos microciclos sem jogos.

 

Figura 2. Variações da carga interna nos dias de três tipos distintos de microciclo semanal (sem jogo, com 1 jogo e com 2 jogos) (Mendes et al., 2022). Legenda: na semana com 1 jogo – diferença significativa para aMD+1, bMD+2, cMD-4, dMD-3, eMD-2 ou fMD-1; na semana com 2 jogos – diferença significativa para aMD+1, bMD+2, cMD-2 ou dMD-1 (p < 0.05).

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função do dia do treino

O índice de Hooper teve valores significativamente mais elevados nos dias MD+1 e MD+2 e os valores mais baixos nos dias que antecederam os jogos (MD-2 e MD-1). Em relação aos minutos de treino, as sessões mais curtas tiveram lugar no primeiro e segundo dias logo após o jogo competitivo. As sessões mais longas ocorreram nos terceiro e quarto dias antes do jogo competitivo. Os menores valores de carga interna foram registados nos primeiro e sexto dias após o jogo competitivo, enquanto as sessões mais exigentes ocorreram nos terceiro e quarto dias após o jogo.

 

·      Variação das variáveis da carga de treino em função da posição de jogo

Em relação à posição de jogo (figura 3), foram obtidos dois clusters significativamente distintos para o índice de Hooper (primeiro cluster: laterais, médios-ala e centrais; segundo cluster: médios centro, guarda-redes e avançados), com valores mais elevados no primeiro. Os médios mostraram valores mais elevados de carga interna relativamente aos jogadores das outras posições, à exceção dos guarda-redes. Pelo contrário, os defesas centrais apresentaram os menos valores de carga interna, com diferenças significativas para os guarda-redes, médios centro e médios-ala. Houve, também, diferenças significativas entre defesas laterais e médios centro na atividade da creatina quinase.

 

Figura 3. Variações da carga interna entre as diversas posições de jogo (Mendes et al., 2022). Legenda: diferença significativa para aGK (guarda-redes), bWD (defesa lateral), cCD (defesa central), dMF (médio centro), eWMF (médio-ala) ou fFW (avançado).

 

Aplicações práticas

Os treinadores e preparadores físicos devem estar cientes de que a utilização de escalas percetivas (de esforço e bem-estar) constitui uma abordagem útil e apropriada para monitorizar as cargas de treino no futebol. Por se tratar de um método barato e eficiente, pode ser aplicado em qualquer nível competitivo (amador, semiprofissional e profissional). 

A atividade da creatina quinase também é sensível à variação da carga de treino, podendo ser uma variável interessante para monitorizar os efeitos mecânicos induzidos pelas sessões de treino e controlar estados não funcionais de fadiga crónica (overreaching). Contudo, é uma abordagem que não está ao alcance de clubes com menos recursos financeiros. 

A variação da carga interna reflete o trabalho dos jogadores nas sessões de treino, tendo por base os objetivos da equipa técnica para determinado período da época. Por exemplo, o trabalho tende a ser mais exigente na pré-época do que no período competitivo e o ajustamento da carga de treino deve ser ponderado para promover adaptações específicas e desejáveis no plantel. 

O tipo de microciclo em causa condiciona a expressão da perceção de bem-estar (índice de Hooper) e de esforço dos jogadores. Microciclos sem jogos tendem a ser fisicamente mais extenuantes e microciclos com 2 jogos, por pressuporem mais sessões visando a recuperação física e mental, tendem a ser mais aprazíveis. A dinâmica aquisitiva inerente a microciclos com 1 jogo leva a variações mais evidentes da carga interna nos jogadores. 

É imperioso desenvolver um programa de treino contínuo para a condição física dos jogadores, não só para recuperá-los mais rapidamente dos jogos competitivos, mas também para minimizar o risco de lesão e aumentar a disponibilidade para competir. Para o efeito, é absolutamente fundamental compreender as particularidades táticas, técnicas, físicas e mentais associadas ao desempenho das diversas posições de jogo, tendo ainda em consideração as características específicas de cada indivíduo.

 

Conclusão

Este estudo procurou determinar a variação da carga de treino diária em jogadores de futebol de elite, tal como a sua relação com as perceções subjetivas de esforço e bem-estar, e com os níveis de creatina quinase no decurso de uma época completa. As evidências demonstraram a existência de variações significativas no conjunto de variáveis derivadas do treino, em função dos meses, do tipo de microciclo, do dia do microciclo semanal e da posição de jogo. No cômputo geral, a carga interna tem uma relação de proporcionalidade direta com a perceção de bem-estar, sendo a pré-época e os dias a meio da semana normalmente mais exigentes. Estudos futuros podem equacionar a utilização destas técnicas de monitorização para estimar as cargas de treino individuais, eventualmente associando-as a situações nas quais o risco de lesão é real.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Human Kinetics.

28/02/2022

Artigo do mês #26 – fevereiro 2022 | O efeito do “bio-banding” em indicadores técnicos e táticos na identificação de jovens talentos no futebol

 Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Towlson, C., MacMaster, C., Gonçalves, B., Sampaio, J., Toner, J., MacFarlane, N., Barrett, S., Hamilton, A., Jack, R., Hunter, F., Stringer, A., Myers, T., & Abt, G.

País: Inglaterra

Data de publicação: 19-dezembro-2021

Título: The effect of bio-banding on technical and tactical indicators of talent identification in academy soccer players

Referência: Towlson, C., MacMaster, C., Gonçalves, B., Sampaio, J., Toner, J., MacFarlane, N., Barrett, S., Hamilton, A., Jack, R., Hunter, F., Stringer, A., Myers, T., & Abt, G. (2021). The effect of bio-banding on technical and tactical indicators of talent identification in academy soccer players. Science and Medicine in Football. https://doi.org/10.1080/24733938.2021.2013522

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 26 – fevereiro de 2022.

 

Apresentação do problema

A relação assíncrona da taxa de crescimento de uma criança e o desenvolvimento da sua condição física com a idade cronológica pode confundir a identificação de talentos no futebol infantojuvenil (Philippaerts et al., 2006; Towlson et al., 2018). Esta situação pode resultar num viés de seleção de jogadores com maturação precoce para programas de desenvolvimento de futebol. Normalmente, estes jogadores apresentam vantagens antropométricas e físicas temporárias derivadas da maturação (Deprez & Boone et al., 2014; Lovell et al., 2015; Emmonds et al., 2016), mesmo sendo a técnica um fator-chave a ter em atenção por quem recruta (Towlson et al., 2019) e que o desenvolvimento técnico de jovens pertencentes a academias de futebol é influenciado pela maturação biológica (Moreira et al., 2017). 

Há, por isso, uma necessidade premente das academias de futebol em explorar abordagens de identificação e desenvolvimento do talento que neguem a influência (in)consciente que vantagens maturacionais podem ter na avaliação de características técnicas e táticas dos jogadores por parte dos treinadores (Cumming et al., 2017b; Helsen et al., 2021). Uma solução que tem sido avançada para contornar este viés passa por agrupar os jogadores de acordo com o seu desenvolvimento biológico, ou estatuto maturacional, em vez de pela tradicional idade cronológica, processo designado por “bio-banding” (Abbott et al. 2019; Towlson et al. 2020a; Moran et al. 2021). 

Estudos sobre este processo têm utilizado dois tipos de métodos para emparelhar jovens jogadores: (1) determinando o tempo de/para a maturação completa, que representa o número estimado de anos (para menos ou para mais) a que os jogadores estão do Pico de Velocidade em Altura; (2) estimando a percentagem atingida da estatura adulta predita (método Khamis & Roche, 1994; figura 2). Embora investigações no âmbito do “bio-banding” sugiram que jogos entre pares com maturação similar controlem as exigências físicas e exponham os jogadores a contextos técnicos mais desafiantes (Abbott et al., 2019), foram constatadas evidências idênticas em jogos disputados por jovens de diversos estatutos maturacionais (Towlson et al., 2020a), o limita as inferências que podem ser feitas sobre a eficácia do “bio-banding” na manipulação de resultados de cariz físico.

 

Figura 2. “Bio-banding” por via da estimação do estatuto maturacional com base na percentagem atingida da estatura adulta predita (fonte: ussoccer.com; imagem não publicada pelos autores).

 

Do corpo de evidências existente, ainda permanece por revelar o modo como o “bio-banding” pode afetar a emergência de comportamentos táticos nos jogadores, em particular os deslocamentos e a tomada de decisão (e.g., exploração espacial, centroides das equipas), nos diversos contextos situacionais do jogo (Gonçalves et al., 2017). Isto é de extrema importância para os técnicos responsáveis pela identificação de jovens talentos, uma vez que, sob determinados constrangimentos, como áreas relativas por jogador mais amplas, os jogadores com maturação precoce podem usufruir de superioridade tática devido a diferenças antropométricas, físicas e decisionais passageiras (Lovell et al., 2015; Towlson et al., 2017; Gonçalves et al., 2020). 

Dada a crescente utilização do “bio-banding” por várias entidades que tutelam o futebol além-fronteiras (Helsen et al., 2011), a realização de estudos que analisem a eficácia deste emparelhamento em contexto de jogo são fundamentais para que os profissionais do treino tenham uma noção da valia prática que esta estratégia pode ter na avaliação/seleção de jovens jogadores para academias de futebol. Assim, o principal objetivo do estudo foi examinar o efeito do emparelhamento maturacional (“bio-banding”) em ações técnicas e táticas basilares no decurso da prática de jogos reduzidos. Adicionalmente, os investigadores procuraram analisar o efeito da utilização de diferentes métodos de “bio-banding” (Khamis & Roche, 1994; Fransen et al., 2018) na análise da performance técnica dos jogadores em jogos com e sem emparelhamento maturacional, quer “in loco” por treinadores experientes, quer através de vídeo-análise.

 

Métodos

Desenho do estudo: o estudo decorreu em 3 semanas, com um design de medidas repetidas: semana 1 – jogos reduzidos com emparelhamento maturacional através da percentagem atingida da estatura adulta predita (Khamis & Roche, 1994); semana 2 – jogos reduzidos com emparelhamento maturacional através da determinação do tempo de/para a maturação completa (Fransen et al., 2018); semana 3 – formato sem emparelhamento maturacional. Em função da semana, os jogadores foram distribuídos por uma de 6 equipas consoante o método suprarreferido. Foram propostos 5 jogos reduzidos 4v4 (18,3 x 23 metros), com uma duração de 5 minutos (25 minutos de jogo no total) e que tiveram lugar um campo sintético 3G. Em cada extremidade do campo havia uma baliza central (2 m x 1 m), sem guarda-redes e apenas foram permitidas ações de finalização no meio-campo ofensivo. Não foi dada qualquer instrução/feedback sobre a performance durante os jogos reduzidos. O protocolo de atividade foi simular nas 3 semanas. 

Participantes: 92 jogadores pertencentes a 3 academias de futebol, duas inglesas e uma escocesa (Sub-13: n = 31; Sub-14: n = 32; Sub-15: n = 26; Sub-16: n = 3). Do grupo inicial, 72 foram participantes efetivos e 20 foram reservas para prevenir lesões e/ou ausências. 

Medidas antropométricas e de maturação: para o método Khamis-Roche (1994) foi recolhido a estatura, a massa corporal, a idade decimal e a estatura média ajustada dos pais biológicos (medida de erro estimada de 2,1%), por cada participante. Os grupos definidos foram: pós-Pico de Velocidade em Altura (PVA) (92.0–95.0%); cerca-PVA (87.0–92.0%); pré-PVA (85.0–87-0%). Para a determinação do tempo de/para a maturação completa foi utilizada a equação de predição de Fransen et al. (2018), sendo necessário recolher a estatura, a massa corporal e a idade cronológica de cada participante. As categorias definidas foram as seguintes: pré-PVA (< -1.0 anos para o PVA); cerca-PVA (-1.0 a 0.0 anos para o PVA); pós-PVA (> 0.0 anos do PVA). 

Medidas técnicas de avaliação pelos treinadores: 4 técnicos (qualificação de nível 2 a 3 pela Football Association) avaliaram independentemente os jogadores nas seguintes ações técnicas: “cobertura/apoio”, “comunicação”, “tomada de decisão”, “passe”, “primeiro toque”, “controlo”, “um-contra-um” (1v1), “remate”, “assistência” e “marcação”, de acordo com o definido por Fenner et al. (2016). Por via de uma tabela de pontuação técnica, os profissionais efetuaram a avaliação individual dos jogadores mediante uma escala de Likert de 5 pontos: 1- pobre, 2- abaixo da média, 3- média, 4- muito bom e 5- excelente. 

Medidas técnicas de avaliação por vídeo-análise: todos os jogos foram gravados com uma camara digital 4K. A análise de vídeo foi executada no software Sportscode, considerando os seguintes indicadores: “passes” (bem-sucedidos/malsucedidos), “mudanças de direção com bola”, “golos”, “remates” (no alvo/fora), “duelos com bola no solo”, “interceções” e “dribles”. Foram cumpridos procedimentos intra e interobservador para testar a fiabilidade da análise. 

Comportamentos táticos: cada jogador utilizou um colete pediátrico contendo um GPS a 10 Hz (Catapult). As coordenadas posicionais foram transformadas para metros e processadas no software Matlab R2014b para calcular as variáveis “índice de exploração espacial”, “distância média para o colega/opositor mais próximo”, “distância para os centroides da própria equipa e da equipa adversária” (centroide: distância média de todos os jogadores de campo da equipa/equipa oponente) (Gonçalves et al., 2017). 

Análise estatística: as diferenças entre as categorias maturacionais (pré, cerca e pós-PVA) foram determinadas através de uma série de modelos hierárquicos Bayesianos ajustados com diferentes distribuições de resposta e com diferentes estruturas de efeitos aleatórios e fixos, em função do tipo de variável dependente (ratings, contagens ou medidas métricas). Os ratings dos treinadores foram modelados com um modelo ordinal Bayesiano, com as diferenças reportadas como desvios-padrão (dimensão de efeito similar a Cohen’s d). Quando as variáveis dependentes foram frequências ou contagens de certas ações técnicas, foram utilizados modelos de regressão Poisson inflacionado de zeros. Para variáveis genuinamente métricas, os modelos Bayesianos foram ajustados recorrendo a uma distribuição Gaussiana. Neste caso, as dimensões de efeito foram calculadas através de Delta total (delta t > 0.4). Foram, ainda, usadas duas técnicas para averiguar que equação de emparelhamento maturacional (Khamis & Roche, 1994; Fransen et al., 2018) melhor explicaria os dados no que se refere ao poder preditivo fora da amostra: R2 Bayesiano (Gelman et al., 2019) e validação cruzada “Leave-One-Out” (Vehtari et al., 2017). Todas as análises foram executadas no programa R (R Core Team, 2020).

 

Principais resultados

 

·      Variáveis técnicas

Vídeo-análise: excetuando os “duelos com bola no solo”, as maiores diferenças nas restantes ações técnicas foram registadas nos jogos com emparelhamento maturacional. Contudo, apenas foram observadas dimensões de efeito acima de 1 para a “mudança de direção com bola” nos jogos cerca-PVA vs. cerca-PVA (método Khamis-Roche) e para os “passes bem-sucedidos” em todos os emparelhamentos maturacionais, com ambos os métodos (diferença de probabilidade, dp = 93.77% to 100%). Nos grupos sem emparelhamento maturacional, apenas os golos marcados produziram uma diferença superior a 1 (dp = 99.50% to 99.58%). Para o tempo despendido a driblar, a única diferença estandardizada acima do limite de 0.4 ocorreu quando equipas cerca-PVA jogaram entre si. O método Khamis-Roche originou a maior diferença individual para a variável “passes bem-sucedidos”, quando equipas pré-PVA jogaram entre si (dimensão de efeito = 1.87). 

Ratings dos treinadores: com exceção das classificações para o “passe” e para o “remate”, as maiores diferenças apuradas para as outras variáveis foram verificadas nos jogos com emparelhamento maturacional. A única variável que não obteve uma dimensão de efeito acima de 0.4 foi o “passe”. Embora o método Khamis-Roche tenha determinado a maior diferença individual para as variáveis técnicas, quando equipas pós-PVA se defrontaram entre si (“comunicação”: 0.85; dp = 99.24%), o método Fransen et al. (2018) produziu o maior número de diferenças nas classificações técnicas acima do valor de corte (0.4). No global, as diferenças nas classificações técnicas dissiparam-se nos grupos sem emparelhamento maturacional, com valores ≥ 0.4 nas seguintes variáveis: “cobertura/apoio” (pré-PVA vs. pós-PVA*), “controlo” (cerca-PVA vs. pós-PVA**), “remate” (pré-PVA vs. cerca-PVA*) e “passe” (cerca-PVA vs. pós-PVA*; pré-PVA vs. pós-PVA*).

* (Fransen et al., 2018); ** (Khamis & Roche, 1994)

 

·      Variáveis táticas

Excetuando o “índice de exploração espacial”, as únicas diferenças estandardizadas ≥ 0.4 para as variáveis táticas foram constatadas nos jogos entre equipas pós-PVA, para ambos os métodos. Independentemente do método, os valores mais elevados ocorreram na variável “índice de exploração espacial” em jogos entre equipas cerca-PVA (dp Khamis-Roche = 97.17%); dp Fransen et al. = 92.90%). A única diferença > 0.4 para os grupos sem emparelhamento maturacional foi vislumbrada para o “índice de exploração espacial” (dp = 96.15%). O método Fransen et al. (2018) produziu a maior diferença estandardizada para as variáveis táticas, designadamente para a “distância para o colega mais próximo” em jogos entre equipas pós-PVA (dp = 99.52%).

 

·      Variância explicada pelas duas equações

A equação de Fransen et al. (2018) alcançou a percentagem mais elevada de variância explicada pelo modelo no âmbito das classificações dos profissionais do treino (67%). Contudo, ao nível das variáveis técnicas e táticas, ambas as equações explicaram valores idênticos da variância observada (R2). Os valores inerentes à predição “fora da amostra” mostraram que a equação de Fransen et al. (2018) obteve os melhores resultados em 19 das 25 variáveis investigadas.

 

Discussão

Este estudo logrou alcançar 3 grandes evidências que se encontram discutidas a seguir.

 

1) Apesar das diferenças observadas para o grupo emparelhado pós-PVA, poucas diferenças táticas se manifestaram para os restantes grupos emparelhados (pré e cerca-PVA) e não emparelhados, independentemente do método de “bio-banding”.

Os indivíduos com maturação precoce possuem, geralmente, mais força e potência nos membros inferiores (Lloyd et al., 2015; Peña-González et al., 2019), o que lhe concede a possibilidade de efetuar passes longos mais frequentemente. Esta é uma explicação plausível para o aumento das distâncias entre companheiros e adversários. Contudo, como o protocolo experimental envolveu jogos reduzidos (52.6 m2/jogador), os autores abstiveram-se de estabelecer uma relação causa-efeito para os resultados apurados.

 

2) Não houve diferenças consistentes entre os métodos de “bio-banding” na avaliação técnica dos jogadores pelos treinadores ou por vídeo-análise, durante jogos reduzidos com e sem emparelhamento maturacional.

Esta evidência contraria resultados anteriores acerca da eficácia do “bio-banding” na manipulação de comportamentos técnicos em jogos reduzidos (Abbott et al., 2019). Trata-se, portanto, de um dado de óbvia importância, visto que a habilidade técnica dos jogadores é para os técnicos um fator crucial tanto na seleção de jogadores, como na respetiva alocação a diferentes posições de jogo em função do timing do PVA (Larkin & O’Connor, 2017; Towlson et al., 2019).

 

3) Os métodos Fransen et al. (2018) e Khamis e Roche (1994) explicaram níveis similares de variância nas diversas variáveis analisadas, mas o primeiro produziu o modelo mais ajustado quando foi utilizada a validação cruzada “Leave-One-Out”.

Apesar desta evidência, tal não significa que o método Fransen et al. (2018) seja melhor para determinar o estatuto maturacional noutras amostras. Embora ambos os métodos ofereçam estimativas da maturação biológica não-invasivas, baratas e rápidas (Towlson et al., 2020a, 2020b), as limitações associadas a cada um devem ser consideradas aquando do agrupamento de jovens futebolistas mediante “bio-banding”.

 

Aplicações práticas

Propor jogos com agrupamento maturacional (“bio-banding”) não parece influenciar substancialmente o desempenho técnico dos jovens jogadores, comparativamente a jogos sem emparelhamento maturacional. Deste modo, para uma identificação mais precisa de jogadores tecnicamente dotados, o recurso aos dois tipos de formato de jogo (com e sem “bio-banding”) pode constituir uma estratégia mais profícua. 

A curta duração dos jogos (5 minutos) e a pequena área relativa por jogador (52.6 m2/jogador) podem ter mascarado as vantagens táticas previstas para os jogadores pós-PVA nos jogos sem emparelhamento maturacional. Inadvertidamente, este estudo sugere que a restrição espacial do jogo podem ser uma estratégia interessante para atenuar as diferenças maturacionais entre os jovens jogadores. 

Os profissionais das academias/escolas de futebol devem ponderar cuidadosamente o método de “bio-banding” (Fransen et al., 2018; Khamis & Roche, 1994) e o formato de jogo (com ou sem emparelhamento maturacional) a implementar, no sentido de proporcionar aos jovens praticantes o melhor ambiente contextual possível. No caso, o contexto deve pressupor que os avaliados tenham a oportunidade de mostrar os atributos definidos como mais relevantes pelos profissionais da academia/escola de futebol responsáveis pela seleção e pelo recrutamento de jovens talentos.

 

Conclusão

Este estudo sugere que o agrupamento maturacional de jovens jogadores (“bio-banding”) teve um impacto limitado nas performances técnicas e táticas em jogos reduzidos de futebol. A mesma tendência foi verificada em jogos sem emparelhamento maturacional, o que condiciona as conclusões que podem ser formadas a propósito da eficácia do “bio-banding”. Por outro lado, a redução do espaço de jogo pode fomentar ambientes práticos que limitem a manifestação de comportamentos técnicos e táticos associados a diferenças de maturação. O grau de incerteza das medidas técnicas e táticas constatado neste trabalho implica que os resultados sejam interpretados com a devida cautela. Este facto suscita um ponto pertinente de discussão acerca da necessidade de treinadores e outros profissionais do treino, investigadores e entidades responsáveis empreenderem uma abordagem coordenada no desenho de estudos, para efetivamente reunirem recursos, conhecimento e amostras mais amplas passíveis de providenciar inferências e conclusões mais concretas.

 

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

17/02/2022

International Journal of Sports Science & Coaching (Vol. 17/2022) | Análise multifatorial de grandes penalidades na I Liga Portuguesa

Cada publicação tem a sua história. Uma história que não consta nas palavras e nas páginas que compõem o documento, independentemente do tipo que for (livro, artigo científico, artigo de opinião, capítulo, etc.). Ontem foi publicado (online) um artigo que demorou anos a elaborar e, apesar de estar feliz com o produto final, não atravessámos propriamente um “mar de rosas”. 

Recuemos ao dia 3 de janeiro de 2020. Com a primeira versão do estudo concluída, submetemos a uma revista científica internacional. Volvidos 6 meses, uma vez que o status do artigo não alterava na plataforma digital (“submitted”), decidimos escrever ao editor-chefe. Não recebendo qualquer resposta, aos 9 meses de espera voltámos a questionar o porquê de o paper não estar em revisão, porém, sem sucesso; finalmente, o e-mail dos 12 meses motivou, no dia 15 de fevereiro de 2021, a réplica seguinte:

 

First of all, we would like to apologize for this prolonged period of preliminary review procedure. It was caused by the delay in section editor response. Since our journal recently went through many changes, we are having same troubles at the moment, but we will solve them as soon as possible.

 

An initial review of “Multifactorial analysis of football penalty kicks in the Portuguese first league: a replication study" had undergone a preliminary review process. Unfortunately, the manuscript in its present form does not reach the required level to be included in the peer review process. The authors must understand that the journal [X] has very high submission rate and must be very strict in assessing top 25 to 30% of manuscripts which can be included in the peer review process. As this process is very demanding these days, unfortunately, we are unable to provide each manuscript with the international peer-review evaluation. Therefore, we regretfully must decline your manuscript at this point.

 

Murro no estômago! Treze meses (!) para que o corpo editorial tomasse a decisão de “não remeter o trabalho para revisão de pares”. Contrariando a inércia de não fazer mais nada, cerrámos fileiras: aumentámos a amostra com a análise de mais duas épocas de grandes penalidades, acrescentámos e redefinimos variáveis, revimos a literatura mais recente e melhorámos o racional do estudo e a discussão dos resultados. Voltámos a submeter a outra revista, com fator de impacto mais elevado, no dia 24 de outubro de 2021. Um ano e um dia depois do murro no estômago, tivemos a consagração da persistência e da resiliência (figura 1).

 

 

Figura 1. Título, autores e outras informações editoriais do artigo (afiliações: 1. CIDEF, ISMAT – Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, Portimão, Portugal; 2. CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal). 

Reference

Almeida, C. H., & Volossovitch, A. (2022). Multifactorial analysis of football penalty kicks in the Portuguese First League: a replication study. International Journal of Sports Science & Coaching, 17. https://doi.org/10.1177/17479541221075722

 

Não é um tema novo, visto que se tratou de uma replicação de um estudo prévio. No Linha de Passe foram publicados três textos com base nos dados recolhidos na I Liga Portuguesa, atual Liga Bwin, e que constituíram parte da amostra desta investigação: “Análise das grandes penalidades na Liga Portuguesa 2013/2014: Parte 1”, “Análise das grandes penalidades na Liga Portuguesa 2013/2014: Parte 2” e “Evolução do resultado das grandes penalidades na I Liga Portuguesa, nas últimas 6 épocas desportivas (2013/2014 – 2018/2019)”. 

Em síntese, exponho alguns factos apurados que, contudo, não traduzem todo o conteúdo do artigo:

 

·   Das 833 grandes penalidades analisadas em 8 épocas consecutivas da I Liga (de 2013/2014 a 2020/2021), 658 (79%) foram convertidas, 119 (14,3%) foram defendidas pelos guarda-redes e 56 (6,7%) falharam o alvo;

·    De todos os golos marcados nestas edições da I Liga, 10,9% foram obtidos através de penálti;

·   Nenhuma variável contextual (localização do jogo, resultado corrente do jogo, período do jogo e qualidade da equipa) influenciou o produto das grandes penalidades (i.e., marcado, defendido ou falhado);

·    Das variáveis individuais, a lateralidade do marcador (destro vs. canhoto) foi a que mais se aproximou da significância, já que destros marcaram 80,3% das grandes penalidades e os canhotos apenas 73,4%. As variáveis “status” do jogador (titular vs. suplente utilizado), posição de jogo (defesa vs. médio vs. avançado) e diferença de idade do marcador do penálti para o guarda-redes não produziram qualquer efeito significativo no resultado do penálti;

·  As direções horizontal e vertical do remate foram absolutamente fulcrais para o resultado da grande penalidade. Rematar a bola para o lado esquerdo, na perspetiva de quem bate o penálti, foi mais frutífero do que os remates direcionados para as zonas centro-esquerda, centro-direita e direita da baliza. Colocar a bola nas zonas altas da baliza é mais recomendado que rematar rasteiro, pois as probabilidades de falhar a baliza nas zonas altas são mais reduzidas relativamente às probabilidades de defesa do guarda-redes quando a bola segue baixa (figura 2);

·  Os guarda-redes têm um papel importante no resultado do penálti. Embora só se tenham estirado na direção da bola em 45,5% dos remates, essa circunstância aumenta extraordinariamente a possibilidade de interceção da bola. 

 

Figura 2. Resultado dos penáltis (frequências absolutas) e taxas de sucesso, de acordo com a direção do remate (n = 833). Legenda: (−) Resíduos ajustados (AR) < −2.0 (frequências observadas foram inferiores às frequências esperadas); (+) AR > 2.0 (frequências observadas foram superiores às frequências esperadas).


Não poderia concluir sem endereçar sinceros agradecimentos (1) à professora Anna Volossovitch (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal), pela sempre preciosa colaboração, (2) ao Tiago Salvador, pela disponibilidade e assertividade nos procedimentos inerentes à fiabilidade interobservador e (3) aos dois revisores (Bill Gerard e Tim Swartz), pelas sugestões e recomendações que nos permitiram aumentar a qualidade do artigo ora publicado. 

Por fim, num período em que a valorização do futebol português é um assunto na ordem do dia, considerar os dados que advêm das nossas ligas profissionais, e não só, como amostras para estudos científicos também pode contribuir para esse intento.

04/02/2022

Dinâmicas de corredor no futebol: Intenção, posição e interação

O futebol moderno está cheio de lugares-comuns. Uns requintados, outros obtusos e outros, ainda, absurdos. Da posição à ação, passando pela interação dos intervenientes em campo, há quem afirme que o léxico é insignificante desde que se obtenham resultados. Discordo, na medida em que é possível comunicar com qualidade (e precisão) e obter resultados, mas respeito.

O tema deste texto não aborda exclusivamente a comunicação, muito menos a comunicação dita verbal já que, em jogo, a comunicação não-verbal é tão ou mais importante que a comunicação por meio da palavra. Comunicar bem implica criar relações profícuas, com ou sem a bola, em múltiplas escalas de intervenção: diádica, triádica, setorial, intersetorial ou coletiva. São exatamente estas relações interpessoais que estão na génese do que é designado por dinâmica: o “conjunto de ações inerentes a um dado processo ou situação, que determinam o seu desenvolvimento e evolução” (infopedia.pt). 

As dinâmicas podem ser contextualizadas espacialmente, pelo que a presente redação foca-se somente nas dinâmicas ofensivas que ocorrem nos corredores (longitudinais) do terreno de jogo. Embora as dinâmicas da fase de organização defensiva também pudessem ter sido alvo de análise, destacaremos algumas dinâmicas da equipa em posse de bola, por esta dispor temporariamente do elemento indispensável para marcar golo. Além disso, a coordenação interpessoal subjacente ao processo defensivo já foi previamente tratada no Linha de Passe (ver aqui). 

Na lógica de organização coletiva, quando uma equipa tem a bola, a distribuição racional dos jogadores pelo espaço é um ponto de partida para a criação de dinâmicas e influencia o modo como o jogo se desenrola a partir desta noção mais estrutural ou estática. Numa perspetiva tradicional, o campo é segmentado em três corredores (esquerdo, central e direito), porém, na atualidade, alguns treinadores de referência preferem subdividi-lo em cinco corredores (esquerdo, meia-esquerda, central, meia-direita e direito), a fim de melhor operacionalizar as ligações preconizadas no seu modelo de jogo, através de linhas de passe diagonais que proporcionam a constituição de triângulos ou losangos funcionais (figura 1). Para simplificar a análise, considerarei a divisão do campo em três corredores.

 

Figura 1. Manchester City FC, de Pep Guardiola, disposto num 2-3-5 em posse de bola, com a ocupação dos cinco corredores de jogo claramente definida (fonte: https://twitter.com/GuardiolaTweets).

 

As dinâmicas de corredor podem ser bastante diversificadas em termos de complexidade, relações numéricas, localização, situação de jogo e tipo de ações motoras executadas, visando, geralmente, alcançar um ou mais dos seguintes objetivos: (1) garantir o equilíbrio defensivo, (2) manter a posse de bola sem progressão no terreno, (3) progredir em direção à baliza adversária, (4) criar situações de finalização e (5) finalizar a sequência ofensiva. Por sua vez, as dinâmicas geradas podem ser positivas, pois permitem cumprir as intenções estratégico-táticas previstas ou negativas, se o produto da jogada é pernicioso para a equipa atacante. Por isso, por detrás de uma dinâmica coletiva, há sempre uma intenção estratégico-tática, um posicionamento na estrutura tática de base e interações do portador da bola com os companheiros de equipa e, concomitantemente, com os adversários. 

Aproveitando alguns lances da 20.ª jornada da presente edição da I Liga Portuguesa (Bwin), irei expor diferentes dinâmicas de corredor executadas pelos três primeiros classificados da competição: FC Porto, Sporting CP e SL Benfica.

 

1)  FC Porto 1 x 0 CS Marítimo (golo de Evanilson, 18’)

 


O FC Porto é uma equipa que, regra geral, apresenta uma ocupação equilibrada dos três corredores. É incisiva na criação de espaços e na progressão em direção à baliza, não fazendo parte do seu estilo “mastigar” o processo ofensivo com posses de bola prolongadas e inócuas. Neste golo de Ivanilson, houve inicialmente uma atração da equipa do Marítimo ao corredor lateral direito para, através da mobilidade e da simulação – genial, diga-se a propósito – do Otávio, criar espaço para Evanilson receber e enquadrar no corredor central. A combinação tática indireta foi concluída, com a bola a regressar ao corredor direito para Otávio assistir para uma finalização de classe de Evanilson. A dinâmica do corredor lateral implicou atração, mobilidade e procura do espaço em profundidade (figura 2).

 

Figura 2. Atração, mobilidade e procura da profundidade, numa combinação tática indireta do FC Porto contra o CS Marítimo (30-jan-2022).

 

2)  B-SAD 1 x 3 Sporting CP (golo de Pablo Sarabia, 45’+2)

 


A equipa do Sporting CP alterna entre o ataque rápido, com a busca da profundidade no corredor central, mediante passes longos de jogadores mais recuados e um ataque mais posicional, recorrendo a desequilíbrios individuais ou combinações táticas nos corredores laterais. Nesta situação de jogo, houve um passe vertical do setor defensivo a encontrar Pedro Gonçalves entrelinhas, que permitiu ultrapassar os setores avançado e intermédio da B-SAD. Enquadrado no corredor lateral, Pedro Gonçalves endossa a bola para Nuno Santos que, em largura máxima, usufrui da oportunidade de explorar o duelo 1v1 ou devolver a Pedro Gonçalves, que, por duas vezes, procurou romper em profundidade. Após um drible rápido na direção da linha de baliza, Nuno Santos cruzou rasteiro, tenso, entre a linha defensiva e o guarda-redes, para Pablo Sarabia finalizar em golo ao segundo poste. Uma dinâmica típica do Sporting de Rúben Amorim, pressupondo a receção de bola entrelinhas, o enquadramento ofensivo e a criação de condições favoráveis no corredor lateral para perturbar a organização defensiva adversária através de 1v1 (figura 3).  

 

Figura 3. Enquadramento entrelinhas no corredor lateral e criação de condições favoráveis para o 1v1 de Nuno Santos, no 3.º golo do Sporting CP frente à B-SAD (2-fev-2022).

 

3)  SL Benfica 0 x 1 Gil Vicente FC (jogada de Gonçalo Ramos, 23’)

 


Independentemente de jogar em 3-4-3, 4-4-2 ou 4-3-3, o SL Benfica privilegia um posicionamento interior dos extremos ou médios-ala. Este facto faz com que, na maioria das vezes, as despesas dos desequilíbrios ofensivos exteriores sejam assumidas pelos laterais. Se na esquerda há Grimaldo capaz de desequilibrar em combinações táticas, na direita os encarnados não têm, de momento, quem seja capaz de ser um verdadeiro “quebra-cabeças” para as defensivas adversárias. Na minha opinião, este lance constituiu uma exceção nas dinâmicas ofensivas que o Benfica tem gerado recentemente. À semelhança da dinâmica de corredor do Sporting, o passe vertical de Vertonghen no corredor lateral “queimou” duas linhas defensivas adversárias e encontrou Everton Cebolinha entrelinhas. Com dois toques na bola, Everton recebeu orientado para dentro e assistiu Gonçalo Ramos em profundidade que, à saída do guarda-redes contrário, ficou a centímetros de marcar um belíssimo golo. Uma dinâmica simples no corredor lateral, de progressão rápida e vertical na procura do espaço atrás da última linha defensiva, que quase resultou em golo (figura 4).

 

Figura 4. Passe vertical no corredor lateral, receção orientada entrelinhas e passe em profundidade para a finalização de Gonçalo Ramos diante do Gil Vicente FC (2-fev-2022).

 

4)  SL Benfica 0 x 1 Gil Vicente FC (perda de bola e ataque rápido do Gil Vicente, 63’)

 


Há algum tempo que argumento que o SL Benfica é uma equipa desequilibrada em processo ofensivo. Aliás, esta ideia foi aqui desenvolvida há um ano. Adotar um posicionamento desequilibrado no espaço de jogo não promete apenas o sucesso da intenção estratégico-tática ofensiva e das interações subsequentes, como produz circunstâncias vantajosas para que a equipa oponente crie perigo em contra-ataque ou ataque rápido. Este é, portanto, um exemplo de uma dinâmica de corredor negativa, no qual a intenção de retirar rapidamente a bola de uma zona de pressão ficou comprometida por um posicionamento errático dos jogadores do Benfica, em particular no corredor central e que originaram uma perda de bola extemporânea numa ligação (passe) que se previa simples. A dinâmica no corredor lateral pedia uma linha de passe diagonal no corredor central para aproveitar o (enorme) espaço disponível para dar sequência ao ataque (figura 5). Um erro capital...

 

Figura 5. Dinâmica de corredor negativa devido a uma má ocupação do espaço de jogo pela equipa do SL Benfica e que quase resultava em golo do Gil Vicente FC (2-fev-2022).

 

O futebol é um jogo de erros e acertos e o treino serve precisamente para aumentar a taxa de acertos e reduzir a taxa de desacertos nos diversos contextos situacionais que o jogo pode suscitar. Aquando do trabalho de dinâmicas de corredor, é recomendável que se preserve a noção de oposição e se proponha uma sequência de exercícios que (1) enfatize as intenções estratégico-táticas pretendidas, (2) fomente um posicionamento lógico dos jogadores, tirando proveito das suas características e (3) desencadeie interações positivas (i.e., microssociedades) em circunstâncias de complexidade e dificuldade crescentes. 

Na prática, só assim poderemos respeitar a premissa que assevera que uma equipa, em competição, pode ser muito mais do que a mera soma das suas individualidades.