26/06/2015

O tempo de posse de bola não é sinónimo de posse de qualidade

No futebol subsiste a noção de que o tempo que as equipas detêm a posse de bola, frequentemente expresso em percentagem do tempo total de jogo, está positivamente correlacionado com o sucesso em competição. Por exemplo, nas diversas ligas europeias (Premier League, La Liga, Bundesliga, Série A, Ligue 1), o investigador Collet (2013) observou que, invariavelmente, as equipas com médias mais elevadas de pontos por jogo tiveram médias mais elevadas de posse de bola.

De facto, manter a posse de bola permite controlar os ritmos de jogo e fazer uma gestão mais efetiva da condição física dos jogadores. Contudo, também é verdade que nem sempre a equipa com maior percentagem de posse de bola vence o jogo. Num artigo publicado no Journal of Sports Sciences, Collet (2013) demonstrou que a manutenção da posse de bola apenas se correlaciona com o sucesso competitivo em equipas de elite mundial (e.g., Barcelona, Real Madrid, Chelsea, Manchester United, Bayern Munchen, PSG) e que, por isso, a qualidade da posse de bola deve ser diferenciada da mera posse de bola.

A questão da eficiência é central; valores mais elevados do rácio de passes por remate à baliza (i.e., passes supérfluos ou não produtivos) foram preditivos do desempenho das piores equipas nas cinco ligas europeias que foram objeto de estudo. Para além disso, quando as equipas de elite se confrontaram entre si, o efeito do tempo da posse de bola tornou-se marginal ou mesmo contraproducente (Collet, 2013). Neste particular, as equipas de elite tendem a adaptar-se às circunstâncias do jogo (nomeadamente ao resultado corrente) de forma distinta, o que contraria a ideia de que há respostas/comportamentos coletivos padronizados; antes, cada equipa tem a sua própria assinatura de jogo (Paixão et al., 2015).

Figura 1. Dados estatísticos da final da UEFA Champions League 2014/2015.
(fonte: www.uefa.com)

Na recente final da UEFA Champions League 2014/2015, em que a Juventus foi derrotada pelo Barcelona (1-3), os vencedores não tiveram somente mais tempo a posse de bola (61-39%), mas também quase o dobro de passes precisos (505-286) e um maior número de finalizações (18-14). À luz destes dados (figura 1), o Barcelona foi um justo vencedor, no entanto, ao contrário dos outros indicadores, o número de finalizações revelou um maior equilíbrio entre as duas equipas. A propósito do tema da eficiência ofensiva, a Juventus precisou de cerca de 20 passes para produzir uma finalização, enquanto os catalães efetuaram um remate por cada 28 passes.

Em suma, nos dias que hoje correm, as evidências apontam que a precisão dos passes e dos remates são variáveis preditivas de sucesso mais fortes que o mero tempo de posse de bola, que parece ser mais uma característica indicativa da qualidade geral de uma equipa do que propriamente um indicador de performance válido para cada jogo (Collet, 2013).

Referências
Collet, C. (2013). The possession game? A comparative study of ball retention and team success in European and international football, 2007-2010. Journal of Sports Sciences, 31(2), 123-136.
Paixão, P., Sampaio, J., Almeida, C. H., & Duarte, R. (2015). How does match status affects the passing sequences of top-level European soccer teams? International Journal of Performance Analysis in Sport, 15(1), 229-240.

17/06/2015

Um olhar sobre as grandes penalidades na Liga NOS 2014/2015

As grandes penalidades são situações muito peculiares no jogo de futebol. A comum interação entre os 22 jogadores é momentaneamente reduzida ao confronto direto entre o jogador responsável pela marcação da grande penalidade e o guarda-redes adversário. Por se tratar de um lance iminente de golo, com níveis de incerteza e ansiedade bastante elevados, a grande penalidade é um dos eventos que mais interesse suscita durante uma partida.

Na recente edição da Liga Portuguesa – Liga NOS 2014/2015 – foram marcados 83 golos de grande penalidade, o que corresponde a 10,9% da totalidade dos golos concretizados pelas 18 equipas ao longo das 34 jornadas (763 golos). A figura 1 estabelece um termo comparativo entre a distribuição do resultado das grandes penalidades relativamente à época anterior (2013/2014).

Figura 1. Valores relativos (%) do resultado das grandes penalidades (golo, defendida pelo GR ou falhada), em função da época desportiva (2013/2014 e 2014/2015).

A distribuição do resultado das grandes penalidades foi idêntica, embora a percentagem de concretização tivesse decrescido cerca de 2,5 pontos percentuais. Na tabela 1 podemos encontrar, de forma sucinta, o rendimento de cada equipa na marcação de grandes penalidades, no decurso da época que agora finda (2014/2015).

Tabela 1. Grandes penalidades a favor e contra: o rendimento das equipas na liga portuguesa 2014/2015.
(por favor, clique para ampliar)

O destacado Vitória de Guimarães (14), o Porto, o Paços de Ferreira e o Penafiel (8) foram os clubes que maior número de grandes penalidades tiveram a seu favor; pelo contrário, o Boavista foi o conjunto que dispôs de menos grandes penalidades a favor (2). Relativamente aos penáltis assinalados contra, o Estoril (10), o Rio Ave, o Boavista e o Setúbal (8) foram as equipas dominantes, enquanto que o Porto (2), o Benfica, o Sporting e o Guimarães (3) foram os clubes que concederam menos grandes penalidades aos seus adversários.

No topo das equipas mais concretizadoras da marca dos 11 metros estão o Guimarães (11 golos) e, curiosamente, o lanterna vermelha Penafiel, com 8 golos. Em contexto inverso, surgem o Boavista (1 golo), o Moreirense e o Arouca (2 golos) como as equipas que menos grandes penalidades concretizaram em golo. Em termos de eficácia, o Penafiel (8 golos em 8 penáltis), o Braga (5 golos em 5 penáltis), o Marítimo e o relegado Gil Vicente (4 golos em 4 penáltis) foram as equipas mais eficazes nestas situações de bola parada, todas com 100% de aproveitamento. Nas grandes penalidades contra, o Braga e o Nacional somente sofreram golo em metade das finalizações dos oponentes (2 golos em 4 penalidades contra).

Passemos agora à análise do desempenho individual dos jogadores que marcaram as grandes penalidades (tabela 2).

Tabela 2. Grandes penalidades marcadas: o rendimento dos jogadores na liga portuguesa 2014/2015.

Para evitar publicar uma tabela demasiado extensa, decidi retirar todos os jogadores que apenas cobraram uma grande penalidade. Nesta lista, 59,1% dos jogadores são médios e 40,9% são avançados (incluindo extremos). O médio vimaranense André André (entretanto transferido para o Porto), foi o jogador que mais golos marcou de grande penalidade nesta edição da liga portuguesa (8 golos). Recordo que na edição anterior (2013/2014) havia sido o médio Adrien Silva, com 7 golos. Contudo, o jogador mais eficaz foi o avançado Guedes do Penafiel, com 5 tentos marcados em outros tantos penáltis (100% de eficácia). Entre os jogadores menos eficazes da marca dos 11 metros surgem nomes como David Simão (Arouca), André Simões (Moreirense), Bernard (Guimarães), Hassan (Rio Aves) e Manuel José (Paços de Ferreira), todos com 50% de aproveitamento.

No que se refere à performance dos guarda-redes, os resultados constam na tabela 3.

Tabela 3. Grandes penalidades contra: o rendimento dos guarda-redes na liga portuguesa 2014/2015.

Na época 2013/2014, o título “rei dos penáltis” foi atribuído ao guarda-redes Eduardo (Braga), uma vez que foi o que defendeu mais grandes penalidades (2) e, conjuntamente, obteve a melhor eficácia (40%) de entre os seus concorrentes diretos Ricardo Nunes (Académica) e Vagner (Estoril). E na temporada 2014/2015, qual foi o “rei dos penáltis” da Liga NOS?

O jovem brasileiro Matheus Magalhães (Braga) e o uruguaio Mauro Goicoechea (Arouca) foram os guarda-redes que mais penáltis defenderam (2), no entanto, o primeiro fê-lo em 4 grandes penalidades (50% de eficácia) e o segundo em 6 grandes penalidades (33,3%). Assim, o “rei dos penáltis” da principal liga portuguesa foi o guarda-redes do Braga Matheus. Finalmente, destaco o guardião Artur Moraes do Benfica; foi o único que obteve 100% de eficácia na temporada em questão (defendeu a grande penalidade em que foi chamado a intervir, logo na primeira jornada, diante do Paços de Ferreira).

Em síntese, nesta época, a taxa de conversão de grandes penalidades decresceu ligeiramente (cerca de 2,5%) relativamente à anterior. O melhor marcador foi o médio André André (Guimarães) e o mais eficaz o avançado Guedes (Penafiel). O “rei dos penáltis” foi o jovem guarda-redes bracarense Matheus, sucedendo no trono ao seu antecessor Eduardo.

05/06/2015

Índice Médio de Felicidade (2013)

David Machado é o autor deste romance e com ele venceu recentemente o Prémio da União Europeia para a Literatura. Hoje fará sentido lê-lo, talvez no futuro ainda o faça mais. Uma vez que não me quero derreter em elogios à obra, deixo-vos dois breves trechos da mesma:

«Pensa: há quarenta anos, este país não era nada, a ditadura sufocou-nos tanto que quase parámos de respirar e o mundo deixou de dar conta de que ali estávamos, moribundos. Depois salvámo-nos, a vida tornou a fazer sentido, voltámos a fazer parte do mapa. Deram-nos a mão, puxaram por nós, apostaram em nós, disseram-nos que erámos capazes e nós acreditámos. Porque não haveríamos de acreditar? (…) o País encheu-se de uma riqueza inédita em vários séculos, é possível que não estivéssemos preparados para gerir essa riqueza, mas fez-nos sentir tão bem, tão confiantes. E eles disseram-nos que o futuro seria uma extensão daquele momento da nossa história, no futuro seríamos melhores. Não sabiam o que estavam a dizer, mas nós não sabíamos que eles não sabiam.» (p. 163)

«Três minutos depois, recebi um e-mail com a tabela. Passei o dedo pelos números no ecrã até encontrar o meu. Almodôvar, havia cinco países nos quais o valor médio de satisfação com a vida era igual a 5,7: Djibouti, Egipto, Mongólia, Nigéria, Portugal e Roménia. Percebes a ironia da situação? Portugal estava naquele grupo de países. A minha satisfação com a vida naquele momento era idêntica à média da satisfação com a vida do nosso país.» (p. 180)

Imagem: Capa do livro Índice Médio de Felicidade de David Machado.

Nota final: De acordo com dados do Eurostat (junho de 2015), a média de satisfação com a vida em Portugal é 6,2; a média europeia é 7,1. De entre os parâmetros analisados, a média de satisfação com a situação financeira em Portugal é 4,5; a média europeia é 6.

18/05/2015

9º Aniversário do «Linha de Passe»

Há 9 anos atrás, quando comecei a escrever neste blogue, quase que por brincadeira, não imaginava que, passado este tempo, ainda aqui escreveria. Pelo meio, ficam 350 textos, 281 comentários e mais de 54 000 visitas. Sim, são estatísticas longe de tornarem o blogue famoso ou virtualmente aclamado, mas essa nunca foi a minha pretensão.

Escrevo porque gosto, quando quero ou quando posso e sobre o que quero. Não quero compromissos despropositados, nem tão pouco que me colem rótulos. Se ultimamente tenho escrito mais sobre futebol e ciências do desporto, é porque é nessas temáticas que atualmente encontro mais motivos para escrever. Este blogue não é sobre nada em particular; é sobre tudo o que cativa o meu interesse. Infelizmente, o tempo não me permite refletir sobre todos os meus interesses.

Quando hoje assinalo o 9º aniversário do blogue, torço para que no futuro haja tempo para mais mensagens e comentários porque, aconteça o que acontecer, o espaço em si já tem o seu historial. Por esta e por outras razões, o dia 18 de maio será sempre um dia muito especial.


Parabéns, Linha de Passe!

06/05/2015

Será o tempo de reação à perda da posse de bola um indicador de sucesso no futebol de alto rendimento?

Um dos aspetos que os treinadores tentam operacionalizar no treino para melhorar a qualidade do desempenho defensivo é a «mudança de atitude face à perda da posse de bola». Por exigir um esforço coordenado dos jogadores em processo defensivo, perante referenciais que muitas vezes, devido ao caráter dinâmico do jogo, não são fáceis de identificar em tempo útil, o transfer para a situação competitiva nem sempre é evidente.

Como é conhecido na literatura científica do futebol, o tempo que uma equipa passa em posse de bola está positivamente correlacionado com o sucesso obtido em competição (Lago, 2009; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Daí, decorre que os treinadores procurem que as suas equipas reconquistem rapidamente a posse de bola após a sua perda. Contudo, numa perspetiva de otimização do momento de transição ataque-defesa, será que o tempo que medeia a perda da posse de bola e a sua subsequente reconquista (i.e., o tempo de reação defensiva, segundo Barreira, Garganta, Guimarães, Machado, & Anguera, 2013) pode ser considerado como um indicador de sucesso da performance defensiva no futebol de alto rendimento?

Foi precisamente esta questão que um estudo de Vogelbein, Nopp e Hökelmann, publicado recentemente no Journal of Sports Sciences (2014), propôs esclarecer. Para o efeito, os autores analisaram os tempos de reação defensiva em todos os jogos da Bundesliga 2010/2011, em função de duas variáveis independentes: (i) o grupo classificativo a que cada equipa pertenceu, apurado a partir da divisão da classificação final em três grupos (topo da tabela – do 1º ao 6º classificado; meio da tabela – do 7º ao 12º; fundo da tabela – do 13º ao 18º); (ii) o resultado corrente do jogo (match status) aquando do registo de cada ocorrência (i.e., equipa em vantagem no marcador, empatada ou em desvantagem). Os principais resultados constam na Tabela 1.

Tabela 1. Média dos tempos de reação defensiva (em segundos) observados para os grupos de equipas da Bundesliga 2010/2011, de acordo com o resultado corrente do jogo (n = número de jogos que uma equipa disputou com um determinado resultado corrente do jogo).
* Diferenças significativas entre equipas do topo e do meio da tabela (P < 0.005).
** Diferenças significativas entre equipas do topo e do fundo da tabela (P < 0.001).

De facto, independentemente do resultado corrente do jogo, as equipas do topo da tabela necessitaram de menos tempo que as equipas dos outros grupos (meio e fundo da tabela) para recuperar a posse de bola. Aliás, a inferência estatística comprovou mesmo a existência de diferenças significativas entre as equipas do topo da tabela e as restantes. Por sua vez, as diferenças registadas entre os grupos do meio e do fundo da tabela não obtiveram expressão estatística. Estes dados suportam claramente a noção de que as melhores equipas procuram dominar os jogos, não apenas através da manutenção da posse de bola, mas também pelo propósito de recuperar a posse o mais rapidamente possível. O resultado corrente do jogo foi um fator que também influenciou os tempos de reação defensiva. Quando em vantagem no marcador, as equipas demoraram mais tempo para recuperar a posse de bola, enquanto que, em situação de desvantagem, recuperaram a bola mais rápido.

Portanto, o tempo de reação defensiva deve ser considerado como um indicador de sucesso no futebol de alto rendimento e, por inerência, a sua operacionalização no treino não deve ser descurada. Com base nos resultados da investigação de Vogelbein et al. (2014), o valor de corte de 10 segundos parece ser uma boa referência para otimizar a mudança de atitude face à perda da posse de bola no processo de treino. Uma tarefa de treino que podemos extrair dos resultados supramencionados será, por exemplo, a apresentada na Figura 1.

Figura 1. Proposta de tarefa de treino Gr+5v5(+2)+Gr.

· Situação: Jogo reduzido/condicionado de Gr+5v5(+2)+Gr (2 jogadores neutros), num campo de 40x60m (comprimento x largura) e área de jogo individual de 171.4 m2;
· Condicionante: equipa que recupera a posse de bola em menos de 10 segundos passa a jogar em superioridade numérica (com os 2 neutros);
· Objetivo principal: potenciar a rápida mudança de atitude coletiva face à perda da posse de bola;
· Critério de êxito: recuperar a posse de bola em menos de 10 segundos;
· Variante de dificuldade (para a equipa em processo defensivo): aumentar o espaço de jogo/área de jogo individual;
· Variantes de facilidade: retirar um jogador neutro ou reduzir o espaço de jogo/área de jogo individual

Referências
Barreira, D., Garganta, J., Guimarães, P., Machado, J. C., & Anguera, M. T. (2013). Ball recovery patterns as a performance indicator in elite soccer. Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology. doi:10.1177/1754337113493083
Lago, C. (2009). The influence of match location, quality of opposition, and match status on possession strategies in professional association football. Journal of Sports Sciences, 27, 1463-1469.
Lago-Peñas, C., & Dellal, A. (2010). Ball possession strategies in elite soccer according to the evolution of the match-score: The influence of situational variables. Journal of Human Kinetics, 25, 93-100.
Vogelbein, M., Nopp, S., & Hökelmann, A. (2014). Defensive transition in soccer - are prompt possession regains a measure of success? A quantitative analysis of German Fußball-Bundesliga 2010/2011. Journal of Sports Sciences, 32(11), 1076-1083.