30/07/2024

Artigo do mês #55 – julho 2024 | Impacto da direcionalidade da posse de bola no desempenho de jovens futebolistas em jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B.

País: Portugal

Data de publicação: 26-maio-2024

Título: Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games

Referência: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B. (2024). Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games. International Journal of Sports Science & Coaching, 1–11. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241257016

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 55 – julho de 2024.

 

Apresentação do problema

No futebol, as equipas tendem a adotar uma estrutura defensiva compacta quando não têm posse de bola, aplicando pressão coletiva para limitar as oportunidades de golo do adversário (Low et al., 2018). Em contraste, quando têm a posse, a intenção é criar espaço e avançar no campo para gerar oportunidades de golo. O contra-ataque e o ataque rápido têm sido utilizados por muitas equipas há décadas. Estes métodos ofensivos aproveitam o desequilíbrio defensivo da equipa adversária para criar uma progressão rápida no campo, envolvendo poucos jogadores e passes antes da finalização (González-Rodenas et al., 2020; Pollard & Reep, 2002). O sucesso recente de estilos baseados na posse de bola, como os do Barcelona e da seleção espanhola, mudou o paradigma ofensivo do jogo, levando a um aumento da investigação sobre estratégias de posse de bola (Collet, 2013; Lago & Martín, 2007; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Por exemplo, as equipas mais bem classificadas conseguem manter a posse por mais tempo na metade ofensiva do adversário, sendo a posse progressiva associada ao sucesso da equipa (Casal et al., 2017; Kempe et al., 2014). Portanto, é essencial investigar tarefas de treino que melhorem a capacidade de manter a posse de bola em competição. 

Do ponto de vista prático, os treinadores devem conceber tarefas de treino que desenvolvam o comportamento tático da equipa com base em princípios coletivos, enquanto fomentam a capacidade dos jogadores de ajustar o seu posicionamento em função de informações locais. Esta perspetiva é essencial para os treinadores, não só de jogadores de elite, mas também de jovens jogadores, de modo a assegurar um desenvolvimento adequado (Newell & Rovegno, 2021; Silva et al., 2020) e aumentar as suas hipóteses de alcançar uma carreira de sucesso. 

A utilização de jogos reduzidos tem sido proposta como uma abordagem eficaz para melhorar o desempenho e a afinação percetiva de jovens futebolistas (Davids et al., 2013). Recentemente, Coutinho et al. (2023) revelaram que uma tarefa de posse de bola (vs. tarefa de passe analítica e tarefa de posse de bola sem oposição) resultou num maior “transfer” para o jogo subsequente, especialmente na capacidade dos jogadores de identificar companheiros em posições mais avançadas. Além disso, os jogos reduzidos permitem que os treinadores desenvolvam simultaneamente múltiplos fatores de treino, com uma ênfase que pode variar dependendo das condições da tarefa (Coutinho et al., 2021, 2022). Como a tomada de decisão dos jogadores é frequentemente guiada por informações locais, diferentes regras podem exacerbar informações distintas e direcionar os jogadores para padrões de movimento adaptativos (Gonçalves et al., 2017; Nunes et al., 2020). Assim, é essencial que os treinadores compreendam a forma como diferentes regras influenciam o desempenho dos jovens jogadores durante tarefas destinadas a melhorar a sua capacidade de conservar a posse de bola. 

Por norma, os treinadores usam exercícios de posse de bola para melhorar o controlo da bola dos jogadores, em vez de se focarem apenas na marcação de golos. A literatura mostra que o tamanho do campo e o número de jogadores são cruciais (Nunes et al., 2020), mas a direcionalidade do jogo não deve ser negligenciada. Os jogos de posse de bola aumentam o estímulo físico e promovem mais ações técnicas (Halouani et al., 2014; Rebelo et al., 2011), mas a falta de direcionalidade pode limitar o desenvolvimento tático (figura 2). Sánchez et al. (2019) estudaram o impacto da direcionalidade em jogadores Sub-13, comparando diferentes formatos de jogo (sem direção, unidirecional, multidirecional com guarda-redes e unidirecional para cada equipa com guarda-redes – bidirecional). Os autores concluíram que a ausência de direção aumenta o estímulo fisiológico, mas é essencial entender como a direcionalidade afeta as ações técnicas e o posicionamento dos jogadores.

 

Figura 2. Representação esquemática de uma tarefa de posse de bola sem direccionalidade definida (imagem não publicada pelos autores).

 

Em suma, durante tarefas de posse de bola sem direção ou multidirecionais, perder a bola pode ter apenas o efeito de mudança da fase do jogo (i.e., de ataque para defesa), sem qualquer outro impacto. Este aspeto pode não ajudar os jogadores a entender o risco e a recompensa de cada passe de acordo com a localização no campo (e.g., decidir se devem manter a posse em zonas mais afastadas da baliza, nas quais, ao perder a bola, têm espaço e tempo para ajustar; ou tentar manter a posse em zonas defensivas para atrair a equipa adversária e depois avançar, o que pode aumentar as chances de progressão, mas também o risco de perder a bola). Como resultado, este estudo teve como objetivo investigar os efeitos da manipulação da direcionalidade da posse de bola (sem direção, multidirecional ou unidirecional) no desempenho físico, tático e técnico de jovens futebolistas durante a prática de jogos reduzidos.

 

Métodos

Participantes: 18 jovens futebolistas (idade: 13,6 ± 0,4 anos; estatura: 168,1 ± 9,6 cm; peso corporal: 52,3 ± 8,3 kg; experiência federada: 6,7 ± 1,8 anos) de uma seleção regional Sub-14, provenientes de 7 clubes distintos da região. Todos treinavam 3 vezes por semana nos seus clubes (90 min/sessão) e jogavam um jogo oficial 11v11 ao fim de semana. Seis jogadores adicionais participaram como neutros numa das condições experimentais, mas os seus dados foram excluídos da análise por não participarem em todas as condições de jogo. 

Desenho do estudo: em cada sessão experimental, o treinador principal formou duas equipas equilibradas de 4 jogadores atendendo às respetivas competências táticas, técnicas, físicas e percetivas (Casamichana & Castellano, 2010). Para explorar os efeitos da variação da direcionalidade nos jogos de posse de bola, os jogadores foram expostos a 3 condições (figura 3): (i) Sem direção (NO) – jogo de posse 4v4, com um ponto ao completar 10 passes (Berdejo-del-Fresno et al., 2015; Daryanoosh et al., 2013); (ii) Multidirecional (MULTI) – 2 jogadores neutros fora do campo na direção longitudinal, permitindo jogar com o mesmo neutro apenas após a bola ser passada para o outro neutro, com a mesma regra dos 10 passes; (iii) Unidirecional (ONE) – jogo 4v4 visando marcar em duas mini balizas em linhas longitudinalmente opostas, ganhando um ponto por 10 passes ou por golo.

  

Figura 3. Representação esquemática das 3 condições experimentais propostas por Coutinho et al. (2014).

 

Procedimentos: foram realizadas 4 sessões de teste em semanas não consecutivas durante o período competitivo (janeiro-março da época 2022/23), sem necessidade de familiarização prévia. Em cada dia de teste, as equipas (modificadas entre sessões) foram expostas às 3 condições (NO, MULTI, ONE) numa ordem aleatória. Cada sessão começou com um aquecimento padronizado de 15 minutos, seguido dos jogos de posse (4v4) durante 5 minutos, em campo de relva sintética (25x20m), intercalados por 3 minutos de pausa. Foram dispostas várias bolas ao redor do campo para reduzir o tempo com a bola fora, e não foi permitido feedback dos treinadores. Os jogos foram disputados com algumas regras adaptadas (e.g., recomeço de jogo com passe a partir nas linhas de fundo). 

Dados da performance física e tática: os dados de posicionamento e desempenho físico dos jogadores foram recolhidos com unidades GPS de 10 Hz (FieldWiz, Paudex, Suíça). As distâncias entre cada jogador e o colega mais próximo e o adversário mais próximo foram calculadas em valores absolutos (m), considerando-se ainda a respetiva variabilidade (CV – coeficiente de variação) e regularidade (ApEn – entropia aproximada) (Coutinho et al., 2022; Gonçalves et al., 2016). O índice de exploração espacial (SEI – spatial exploration index) foi medido para avaliar o espaço explorado por cada jogador (Gonçalves et al., 2017). A distância total percorrida e a distância percorrida em diferentes zonas de velocidade foram analisadas: caminhar (0.0–3.5 km/h), a trote (3.6–14.3 km/h), correr (14.4–19.8 km/h) e sprintar (>19.9 km/h) (Coutinho et al., 2021; Pettersen & Brenn, 2019). A velocidade média dos jogadores também foi considerada para entender o ritmo do jogo. 

Dados da tomada de decisão e execução do controlo da bola e passe: as situações de jogo foram gravadas com uma câmara de vídeo digital (Panasonic NV-GS230) posicionada a 2m de altura. O software Play (Metrica Sports, versão 2.20.2) foi usado para codificar as ações de controlo de bola e passe dos jogadores. A ferramenta GPET avaliou as habilidades de execução e tomada de decisão dos jogadores (García-López et al., 2013). As ações foram codificadas como 0 (decisão/execução inadequada) ou 1 (decisão/execução adequada). Critérios técnicos adicionais para controlo de bola incluíram: bola no espaço motor, orientação do corpo e adequação; para passe: livre de oposição, ritmo e tempo. As variáveis do GPET foram expressas como percentagem de decisões bem-sucedidas (Mitchell et al., 2013). Foram registadas 1334 ações (476 de controlo de bola e 858 de passe) e a análise foi feita por um analista com mais de 10 anos de experiência. 

Análise estatística: a estatística descritiva foi apresentada em médias e desvios padrão para distribuições normais, e medianas e intervalos interquartis para distribuições não normais. O teste de Shapiro-Wilk serviu para testar a normalidade e, conforme a distribuição dos dados, foram adotados testes paramétricos (ANOVA de medidas repetidas) e não paramétricos (ANOVA de Friedman). As diferenças entre condições experimentais (NO vs. MULTI; NO vs. ONE; MULTI vs. ONE) foram avaliadas com os testes post hoc de Bonferroni para dados normais e Durbin-Conover para dados não normais. A significância foi definida em p < 0,05, e todos cálculos executados no software Jamovi Project (versão 1.2, 2020). Para as comparações de pares, foram utilizadas as diferenças entre médias com intervalos de confiança de 95%, e o d de Cohen como tamanho do efeito, tendo por base os seguintes intervalos: 0,0–0,19 (trivial); 0,20–0,49 (pequeno); 0,6–1,19 (moderado); 1,2–1,9 (grande); ≥2,0 (muito grande) (Hopkins et al., 2009).

 

Principais resultados

 

·     Variação da performance física e tática em função das condições práticas

Para as variáveis posicionais, os valores do índice de exploração espacial foram significativamente e moderadamente superiores na condição NO (sem direção) em comparação com as condições MULTI (multidirecional) e ONE (uma direção por equipa). Na distância para o companheiro de equipa mais próximo, também houve diferenças significativas. A condição NO apresentou valores absolutos ligeira a moderadamente inferiores em comparação com as condições MULTI e ONE, enquanto a variabilidade dessa distância foi moderadamente inferior na condição NO em comparação com a ONE. A condição NO também revelou valores ligeira a moderadamente inferiores na distância para o adversário mais próximo em comparação com as condições MULTI e ONE. Além disso, a condição MULTI apresentou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição ONE, enquanto a condição NO revelou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição MULTI. 

Em termos de variáveis físicas, foram identificados efeitos estatisticamente significativos em todas as variáveis, exceto nas distâncias de corrida e de sprint. Na condição MULTI, os jogadores apresentaram uma velocidade média ligeira a moderadamente superior relativamente às condições NO e ONE. Por outro lado, a condição ONE apresentou valores moderadamente superiores na variabilidade da velocidade média, em comparação com a condição MULTI. Tanto a condição NO, como a condição MULTI, exibiram valores moderadamente superiores na distância total percorrida e na distância percorrida a trote em relação à condição ONE. A condição MULTI proporcionou valores moderadamente inferiores na distância percorrida a andar comparando com as condições NO e ONE.

 

·     Diferenças na tomada de decisão e na execução do controlo de bola e do passe entre as condições práticas

A tomada de decisão na ação de passe foi significativamente melhor na condição ONE em comparação com as condições NO e MULTI. Não havendo significância estatística, foram ainda detetadas algumas tendências com significado prático: (i) a condição ONE teve valores ligeira a moderadamente superiores no passe para posições livres e na adequação do controlo de bola, em comparação com as condições NO e MULTI; (ii) a condição NO apresentou valores ligeiramente superiores no passe para posições livres, em relação à condição MULTI; (iii) a condição MULTI mostrou valores ligeiramente superiores de adequação e receção da bola no espaço motor, comparativamente à condição NO.

 

Aplicações práticas

Neste estudo sobre a direcionalidade ofensiva e a sua influência em jogos de posse de bola, emergiram duas grandes aplicações práticas que poderão ser relevantes para os treinadores e profissionais do futebol: 

1. Não subestimar a importância da direcionalidade nas tarefas práticas em forma de jogo: é fundamental equacionar a direcionalidade ofensiva, que se refere à orientação específica das ações dos jogadores. Esta variável, tantas vezes negligenciada, pode afetar profundamente o desempenho técnico, tático, físico e psicossocial dos jogadores. 

2. Diferentes direcionalidades geram impactos distintos em diversas variáveis do foro físico e técnico-tático:

 

2.1. Condição sem direcionalidade (NO)

Destaca-se por enfatizar a exploração individual do espaço, resultando em maior variabilidade nas distâncias entre jogadores e os seus companheiros ou adversários mais próximos. Este tipo de tarefa incentiva os jogadores a movimentarem-se livremente para criar oportunidades de pontuar, sem a preocupação de perder a posse da bola. Os jogadores focam-se em seguir a bola em vez de proteger áreas específicas, o que pode ser útil em sessões que visem a exploração do espaço com cargas externas moderadas.

 

2.2. Condição com múltiplas direções (MULTI)

Prioriza o ritmo de jogo e aumenta a carga externa dos jogadores. Esta condição reduz a distância entre companheiros de equipa, mantendo-os mais próximos e aumentando a carga física em termos de velocidade média, distância total percorrida e distância percorrida a trote. Este tipo de tarefa pode ser utilizado para desenvolver a capacidade dos jogadores de mudar o ponto de ataque enquanto estimulam a resistência específica.

 

2.3. Condição com uma direção (ONE)

Promove, em primeira instância, o controlo da bola, a tomada de decisão nos passes e a execução técnica. Os jogadores demonstram maior proficiência em receber a bola, tomar decisões de passe e encontrar companheiros desmarcados. A inclusão de balizas no jogo facilita a organização das equipas. Ao atribuir direcionalidade, os jogadores assumem posições e missões táticas específicas, reduzindo a exploração espacial e a carga externa. Este tipo de exercício é particularmente útil para refinar as habilidades técnicas dos jogadores num contexto de maior organização tática, e a compreensão da ocupação espacial nas fases ofensiva e defensiva do jogo.

 

Conclusão

Este estudo forneceu informações práticas valiosas sobre os efeitos da direcionalidade em jogos de posse de bola. Jogar sem direção promoveu menor rigor posicional e maior variabilidade no uso do espaço. Jogar com múltiplas direções enfatizou a posse de bola, aumentando as ações de corrida, enquanto a inclusão de jogadores neutros encorajou a proximidade entre companheiros de equipa. A condição com uma direção possibilitou a definição de papéis posicionais, reduziu a carga externa e aumentou a frequência de ações técnicas básicas. Os resultados sugerem que, ao conceber tarefas de treino, os treinadores devem considerar cuidadosamente o tipo de direcionalidade conforme os objetivos específicos estipulados para a sessão de treino.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

30/06/2024

Artigo do mês #54 – junho 2024 | “Estacionar o autocarro” ou pressionar alto? Perspetivas táticas defensivas do Mundial de 2022, no Catar

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Praça, G. M., Oliveira, P. H. A., Brandão, L. H. A., Abreu, C. O., Andrade, A. G. P., & Nobari, H.

País: Brasil

Data de publicação: 21-maio-2024

Título: Parking the bus or high pressing? Defensive tactical insights from the 2022 FIFA Men’s World Cup

Referência: Praça, G. M., Oliveira, P. H. A., Brandão, L. H. A., Abreu, C. O., Andrade, A. G. P., & Nobari, H. (2024). Parking the bus or high pressing? Defensive tactical insights from the 2022 FIFA Men’s World Cup. Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology, 1–8. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17543371241254600

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 54 – junho de 2024.

 

Apresentação do problema

A análise de jogo aumenta a probabilidade de sucesso no futebol (Carling et al., 2005; Forcher et al., 2023) e foca-se, essencialmente, na recolha, interpretação e elaboração de informações sobre ambas as equipas durante os jogos (Clemente et al., 2020; Sarmento et al., 2022). Embora a maioria dos indicadores-chave de desempenho esteja relacionada com ações ofensivas com a bola (Herold et al., 2021; Goes et al., 2021), as ações defensivas também são cruciais, uma vez que o futebol é um desporto de baixa pontuação. 

Nos meandros do treino desportivo, defender próximo da própria baliza é conhecido como “estacionar o autocarro” (figura 2), uma analogia para uma barreira física que impede a marcação de golos por parte da equipa adversária. Esta abordagem contrasta com a pressão alta, que almeja recuperar rapidamente a posse da bola no meio-campo ofensivo. Apesar da importância das estratégias defensivas para o sucesso, poucos estudos identificaram indicadores-chave de desempenho defensivo, incidindo principalmente em ações defensivas sobre a bola (e.g., desarmes e interceções).

 

Figura 2. Ilustração sobre a estratégia “estacionar o autocarro” (fonte: https://www.americansocceranalysis.com/) (imagem não publicada pelos autores).

 

Tradicionalmente, o desempenho defensivo no futebol é analisado através de eventos discretos associados ao impedir a progressão adversária e à recuperação da posse de bola. Por exemplo, tempos de reação à perda da bola distinguem as equipas de topo das restantes (Vogelbein et al., 2014). As frequências de ações de pressão próxima ao portador da bola e de recuperação da bola têm sido relacionadas com o êxito (Praça et al., 2023). No entanto, uma análise multidimensional que integra eventos discretos e dados posicionais é ideal para melhor compreender as estratégias defensivas no futebol de elite (Forcher et al., 2022). Neste âmbito, uma revisão recente destacou que recuperar a bola em zonas avançadas, mantendo um posicionamento equilibrado e uma abordagem “intensa”, está ligado ao sucesso defensivo (Freitas et al., 2023). Por outras palavras, analisar simultaneamente indicadores-chave defensivos com e sem bola permite explicar com mais credibilidade o desempenho nos jogos, mas a investigação mais recente pouco explorou esta possibilidade. 

Estudos prévios de análise de jogo utilizaram dados dos Campeonatos do Mundo da FIFA para analisar tendências ao mais alto nível (Clemente et al., 2014; Pulling et al., 2018). No que diz respeito às ações defensivas, verificou-se que as equipas que chegaram às meias-finais do Mundial de 2014 tiveram maior probabilidade de recuperar a bola em zonas defensivas, possivelmente indicando uma estratégia mais defensiva para manter o resultado (Panice et al., 2020). Esta evidência é consistente com um estudo recente que mostrou um posicionamento tático mais compacto na fase defensiva em comparação com a fase ofensiva (Praça et al., 2022). Com base nestes factos, espera-se que a capacidade de neutralizar oportunidades de golo, recuperar a bola rapidamente e posicionar-se mais recuado na fase defensiva conduza ao sucesso de uma equipa na competição. Contudo, esta hipótese ainda não foi testada. 

O Campeonato do Mundo da FIFA é amplamente considerado a competição internacional de futebol mais importante, constituindo-se, assim, como um evento ideal para analisar estatísticas relacionadas com o jogo. Pela primeira vez, a FIFA providenciou estatísticas através da plataforma “Inteligência de Futebol Avançada”, que inclui dados discretos tradicionais com bola e dados sem bola obtidos através de um sistema de rastreamento automático. Dada esta oportunidade e o racional apresentado anteriormente, este estudo teve como objetivo analisar os indicadores de desempenho defensivo que melhor explicaram a obtenção de vitórias nos jogos disputados no mais recente Mundial de 2022, organizado pelo Catar.

 

Métodos

Amostra: a amostra inicial deste estudo incluiu os 64 jogos do Campeonato do Mundo de 2022. Excluídos os empates (n = 15), a amostra final consistiu em 49 jogos, totalizando 98 observações (duas por jogo). Os dados foram fornecidos pela FIFA e estão disponíveis gratuitamente em https://www.fifatrainingcentre.com/en/fwc2022/post-match-summaries/post-match-summary-reports.php. 

Procedimentos: os relatórios dos jogos foram descarregados em PDF do site da FIFA e analisados individualmente, gerando um par de dados por jogo (um por equipa). As estatísticas foram transferidas manualmente para uma folha de cálculo Excel. A variável dependente – o resultado do jogo – foi adicionada numa coluna extra, considerando os 3 resultados possíveis (vitória, empate, derrota). Apenas o resultado no tempo regulamentar foi considerado para os jogos a eliminar. 

Variáveis: o estudo incluiu variáveis táticas com dados posicionais (tabela 1) e eventos de jogo (tabela 2), recolhidas através de um sistema de rastreamento ótico automatizado da FIFA, cuja fiabilidade foi previamente testada e validada. A variável dependente foi a diferença de golos, calculada subtraindo os golos da equipa adversária dos golos da equipa analisada. Por exemplo, se a equipa A ganhou por 4-2 à equipa B, o valor para a equipa A é 2 e para a equipa B é -2.

 

Tabela 1. Variáveis posicionais analisadas no estudo (adaptado de Praça et al., 2024).


Tabela 2. Ações defensivas analisadas no estudo (adaptado de Praça et al., 2024).


Análise estatística: inicialmente, os dados foram explorados para identificar outliers. As diferenças entre equipas vencedoras e perdedoras foram investigadas utilizando a MANOVA, para reduzir o erro tipo I (Noble, 2009). Algumas variáveis desviaram-se da normalidade, mas a MANOVA foi mantida por ser robusta (O’Donogue, 2012). O eta quadrado parcial classificou os efeitos como pequenos (0.02 < ƞp2 < 0.13), médios (0.13 < ƞp2 < 0.26) ou grandes (ƞp2 ≥ 0.26) (Pierce et al., 2004). Uma regressão linear múltipla foi corrida com a diferença de golos como variável dependente. Foram testados R2, distância de Cook, distância de Mahalanobis, multicolinearidade (VIF) e independência dos erros (Teste de Durbin-Watson) (Field, 2009). As análises foram realizadas com o software IBM SPSS Statistics, versão 19.

 

Principais resultados

 

·   Indicadores de performance defensivos que discriminaram equipas vencedoras e vencidas no Campeonato do Mundo de 2022

Observou-se diferenças significativas no número de perdas de bola – “turnovers” – forçados para as equipas adversárias (efeito pequeno), sendo o valor de “turnovers” forçados mais elevado para as equipas vencedoras. As equipas mais bem-sucedidas também executaram menos recuperações sem posse e menos transições defensivas (efeitos pequenos). Por outras palavras, as equipas vencedoras forçaram mais perdas de posse e passaram menos tempo em transição defensiva e recuperação sem posse. Não houve diferenças significativas nas outras variáveis investigadas.

 

·  Modelo de regressão para explicar a diferença de golos nos jogos do Campeonato do Mundo de 2022, com base em variáveis defensivas

As variáveis que entraram no modelo foram a ação em posse/ação defensiva, os “turnovers” forçados e a recuperação sem posse. Aumentar os valores de ação em posse/ação defensiva e os “turnovers” forçados tende a aumentar a diferença de golos (aumentando a probabilidade de vitória). Por sua vez, aumentar o tempo em recuperação sem posse tende a reduzir a diferença de golos (diminuindo a probabilidade de vitória). As restantes variáveis não apresentaram contribuições significativas para o modelo. Estes resultados sustentam a hipótese de que recuperar rapidamente a posse da bola está intimamente associado à obtenção de sucesso no futebol de elite.

 

Aplicações práticas

Em seguida sugerimos 3 aplicações práticas para serem consideradas pelos profissionais a trabalhar no terreno. Contudo, o modo como poderão ser operacionalizadas dependerá sempre de especificidades associadas às características dos jogadores, aos objetivos competitivos ou formativos do clube e/ou ao estilo de jogo que o treinador ou equipa técnica pretende implementar.

 

1. Considerar, de modo equilibrado, as duas fases do jogo (organização ofensiva e organização defensiva): o sucesso no futebol é influenciado por múltiplos fatores e uma visão “macro” dos acontecimentos nem sempre permite captar os detalhes através dos quais os jogos são decididos. Embora as variáveis ofensivas tenham demonstrado um valor preditivo maior para a diferença de golos, as estratégias defensivas são igualmente cruciais. Os treinadores devem procurar um equilíbrio entre a capacidade ofensiva e a resiliência defensiva, compreendendo que as estratégias defensivas eficazes podem variar bastante entre as equipas. 

2. Aumentar a eficácia dos comportamentos defensivos, no intuito de originar mais perdas de bola forçadas na equipa adversária: o estudo destaca a importância das perdas de bola forçadas na diferenciação entre as equipas mais vitoriosas e as que mais perdem. Os designados “turnovers” forçados não só se relacionam com a diferença de golos final, como também reduzem o número de ações defensivas necessárias, aumentando assim a probabilidade de vitória. Os treinadores devem desenvolver e aprimorar estratégias de pressão para forçar perdas de bola nos oponentes, em vez de simplesmente “estacionarem o autocarro”. Para o efeito, é crucial definir (1) princípios táticos que assegurem a coordenação dos comportamentos dos jogadores e (2) “gatilhos de pressão”, ou seja, circunstâncias que permitam desencadear ações coletivas de pressão eficazes e que não gerem fadiga em vão: pressionar quando, onde e como? Em última instância, o objetivo passa por dotar a equipa de capacidade para recuperar rapidamente a bola e transitar de forma célere para a fase de organização ofensiva. 

3. Reduzir o tempo em ações de recuperação sem posse (recuperação defensiva): passar muito tempo em ações de recuperação defensiva impacta negativamente a diferença de golos, aumentando a probabilidade de derrota. Para mitigar isto, as equipas devem focar-se em recuperar rapidamente a posse e iniciar a organização defensiva o mais cedo possível. Os treinadores devem trabalhar os jogadores nas mais diversas escalas de intervenção – individual, grupal e coletiva – para controlar melhor a posse, evitar perder a bola em zonas críticas do campo e adotar posicionamentos que garantam um bom equilíbrio (ainda em organização ofensiva) em permanência. Só assim se consegue minimizar o recurso a ações de alta intensidade associadas à reorganização defensiva.

 

Conclusão

As equipas de sucesso tendem a adotar um estilo de jogo defensivo focado em forçar perdas de bola e reduzir o tempo gasto em cenários imprevisíveis, como transições e recuperações defensivas. Aumentar o número de perdas de bola forçadas e a proporção entre ações em posse por ações defensivas pode aumentar a probabilidade de vitória, enquanto gastar mais tempo em ações de recuperação defensiva tende a reduzi-la. Ao invés de simplesmente “estacionar o autocarro”, os treinadores devem proporcionar comportamentos coletivos que limitem o movimento do adversário com a bola e permitam recuperar rapidamente a posse. Em vez de se procurar uma abordagem única para o planeamento estratégico, os profissionais do treino devem desenvolver estilos de jogo que se adequem às características dos jogadores, à cultura da equipa, ao nível dos adversários e a outros fatores, com o objetivo de melhorar a qualidade do jogo e aumentar a possibilidade de triunfar.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Proceedings of the Institution of Mechanical Engineers, Part P: Journal of Sports Engineering and Technology.

29/05/2024

Artigo do mês #53 – maio 2024 | Análise do efeito da idade relativa na história da Bola de Ouro (1956–2023)

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Saavedra-García, M. A., Santiago-Alonso, M., Vila-Suárez, H., Montero-Seoane, A., & Fernández-Romero, J. J.

País: Espanha

Data de publicação: 22-abril-2024

Título: Relative age effect analysis in the history of the Ballon d’Or (1956–2023)

Referência: Saavedra-García, M. A., Santiago-Alonso, M., Vila-Suárez, H., Montero-Seoane, A., & Fernández-Romero, J. J. (2024). Relative age effect analysis in the history of the Ballon d’Or (1956–2023). Sports, 12, 115. https://doi.org/10.3390/sports12040115

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 53 – maio de 2024.

 

Apresentação do problema

O efeito da idade relativa refere-se ao fenómeno em que indivíduos nascidos mais próximos de uma data de corte, inerente a um processo de seleção por idade cronológica, possuem um conjunto de vantagens sobre os seus pares nascidos mais tarde nesse período de seleção (Musch & Grondin, 2011; Wattie et al., 2014). No desporto, as datas de corte são comumente definidas entre os dias 1 de janeiro e 31 de dezembro do mesmo ano, conferindo aos jogadores nascidos nos primeiros meses uma vantagem desportiva, derivada a aspetos físicos, psicossociais, cognitivos e emocionais. De facto, a maioria dos países utiliza estas datas de seleção (Figueiredo et al., 2021), o mesmo ocorrendo nos torneios juvenis tutelados pela Fédération Internationale de Football Association (FIFA), desde 1997 (Romann & Fuchslocher, 2013; Simon et al., 2022). Porém, no futebol profissional, a data de corte pode variar entre países. Por exemplo, em Inglaterra utiliza-se o dia 1 de agosto (Pedersen et al., 2022). Apesar destas divergências, os eventos da FIFA apresentam características propícias para estudos sobre o tema no futebol (Ribeiro et al., 2023). 

O efeito da idade relativa é particularmente pronunciado no futebol, no qual a idade influencia significativamente a elegibilidade e a participação (Mujika et al., 2009; Sarmento et al., 2018). A explicação primária para o efeito da idade relativa no futebol gira em torno de atributos físicos, que têm mais influência no jogo do que as habilidades técnicas durante as fases iniciais de desenvolvimento. Além disso, as pressões de seleção enfrentadas pelos futebolistas em idades mais jovens persistem na idade adulta, ao nível da elite (Saavedra-García et al., 2019; Wattie et al., 2014). Embora haja um número considerável de estudos sobre este efeito no futebol, é raro encontrar publicações que o examinem ao longo de um período prolongado (Pedersen et al., 2022; Saavedra-García et al., 2019). 

Os estudos longitudinais identificados incluíram jogadores de seleções nacionais (Saavedra-García et al., 2019) que participam em torneios da FIFA e que experienciaram a extrema dificuldade de seleção numa era marcada por uma enorme pressão competitiva. De facto, a competitividade levada ao extremo está a aumentar o efeito da idade relativa no futebol. No entanto, não foram encontrados estudos associando o efeito da idade relativa à nomeação ou atribuição de prémios individuais, como a Bola de Ouro (Ballon d’Or), promovida pela revista France Football (figura 2). A Bola de Ouro é um dos mais prestigiados prémios anuais de futebol, elegendo o melhor jogador de futebol masculino desde 1956 e a melhor jogadora de futebol feminino desde 2018. Introduzida em 1956 pelo editor-chefe da France Football, a Bola de Ouro era inicialmente exclusiva para jogadores europeus a atuar na Europa. Em 1995, uma parceria entre a FIFA e a France Football fundiu o prémio “FIFA World Player of the Year” com a Bola de Ouro. Em 2016, a FIFA e a France Football separaram os prémios. A FIFA introduziu o “The Best FIFA Men’s Player”, enquanto a France Football continuou a apresentar a Bola de Ouro, prémios que refletem de forma significativa a excelência individual na modalidade.

 

Figura 2. As 5 bolas de ouro ganhas por Cristiano Ronaldo (fonte: https://www.marca.com) (imagem não publicada pelos autores).

 

Na realidade, existem poucos estudos sobre a Bola de Ouro: uns caracterizaram os jogadores nomeados (Shibata & Inuiguchi, 2014), outros examinaram o processo de votação (Coupe et al., 2017; Kopkin & Roberts, 2022) e outros investigaram as celebridades que ganharam o troféu mais vezes (Anderson et al., 2019). Contudo, nenhum destes estudos examinou o efeito da idade relativa neste contexto. Assim, o propósito deste trabalho foi analisar o efeito da idade relativa na história da Bola de Ouro, averiguando a existência e a evolução do fenómeno desde a edição inaugural em 1956 até à atualidade (2023).

 

Métodos

Amostra: todos os futebolistas do sexo masculino nomeados para a Bola de Ouro, de 1956 a 2023. Os dados foram extraídos do website oficial da Bola de Ouro (https://www.francefootball.fr/ballon-d-or/palmares/). No total, foram incluídos 1899 jogadores, com uma idade média de 27.09 ± 3.72 anos. 

Procedimentos: foram analisadas variáveis relacionadas com o ano do prémio, classificação, pontos (valores absolutos e relativos) e data de nascimento. Após a obtenção dos dados, os trimestres de nascimento foram definidos a partir da data de nascimento dos futebolistas. Considerando o número de dias, foi executada uma pequena correção na distribuição de probabilidade uniforme: 0.247, 0.249, 0.252 e 0.252, respetivamente (Doblhammer & Vaupel, 2001; Edgar & O‘Donoghue, 2005). Os jogadores selecionados foram categorizados em trimestres com base no seu mês de nascimento (Q1: janeiro, fevereiro e março; Q2: abril, maio e junho; Q3: julho, agosto e setembro; Q4: outubro, novembro e dezembro). O ano também foi dividido em semestres (S1: janeiro a junho; S2: julho a dezembro). 

Análise estatística: a presença do efeito da idade relativa entre os melhores jogadores de futebol nomeados para a Bola de Ouro de 1956 a 2022, foi investigada através de testes qui-quadrado (χ²) para avaliar as diferenças entre as distribuições observadas e esperadas em cada trimestre de nascimento. Os tamanhos do efeito foram calculados usando o V de Cramer, com os seguintes limites: pequeno entre 0.06–0.17, médio entre 0.18–0.29, e grande para valores superiores a 0.29 (Cohen, 1992). Foram calculados os resíduos estandardizados (testes post-hoc) para identificar os trimestres que se desviavam significativamente dos valores esperados (Garson, 2010; Hancock et al., 2011), com valores absolutos superiores a 1.96 sendo significativos. Valores positivos indicam uma sobrerrepresentação de nascimentos num trimestre, enquanto valores negativos indicam uma sub-representação. Foram, ainda, usados rácios de probabilidades (odds ratios – OR) e intervalos de confiança de 95% para comparar as discrepâncias entre trimestres (Q1 vs. Q2, Q1 vs. Q3, Q1 vs. Q4) e semestres (S1 vs. S2), com dimensões de efeito de 1.22, 1.86 e 3.00 indicando tamanhos de efeito pequenos, médios e grandes, respetivamente (Olivier & Bell, 2013). Todas as análises estatísticas foram realizadas no SPSS, v. 29, com o nível de significância definido em p < 0.05.

 

Principais resultados

 

·     Efeito da idade relativa nos nomeados e nos mais votados (Top 10, Top 3 e vencedor) para a Bola de Ouro

Embora o efeito da idade relativa influencie globalmente os nomeados para a Bola de Ouro, o mesmo não foi observado entre os jogadores que receberam mais votos (tabela 1). Apesar de haver uma clara sobrerrepresentação de jogadores nascidos nos primeiros meses do ano (Q1: jan–mar), o viés não se verifica entre os que ganharam ou se aproximaram de ganhar o troféu. Na amostra global, a dimensão do efeito foi pequena, com uma sobrerrepresentação significativa de futebolistas nascidos no primeiro trimestre e uma sub-representação de jogadores nascidos no terceiro trimestre (Q3: jul–set).

 

Tabela 1. O efeito da idade relativa na história da Bola de Ouro, no total e por década (Saavedra-García et al., 2024).

Notas: * teste estatístico significativo; V = dimensão de efeito Cramer’s V (s: pequeno; m: médio); Q1 até Q4 = trimestre 1 até trimestre 4; ** residuais estandardizados significativos.

 

·     Evolução do efeito da idade relativa ao longo da história da Bola de Ouro

A evolução do efeito da idade relativa ao longo da história da Bola de Ouro mostra que, nas primeiras décadas (1950 e 1960), houve um efeito invertido, ou seja, com uma sobrerrepresentação de jogadores nascidos no final do ano. Na década de 1950 foi identificado um efeito médio, com uma sub-representação significativa de atletas nascidos no segundo trimestre (Q2: abr–jun) e uma sobrerrepresentação de indivíduos do quarto trimestre (Q4: out–dez), que se manteve ao longo da década de 1960. 

A tendência inversa observada nas décadas de 1950 e 1960 desapareceu nas seguintes, não sendo notado um efeito da idade relativa significativo. Nas décadas de 2000 e 2010, o fenómeno reapareceu, caracterizando-se por uma clara sobrerrepresentação de jogadores nascidos nos primeiros meses do ano. De 2010 a 2020, identificou-se um efeito médio, com uma sobrerrepresentação significativa de futebolistas nascidos no primeiro trimestre e uma sub-representação de nascidos na segunda metade do ano (figura 3).

  

Figura 3. Evolução do dia de nascimento no ano de seleção, por ano e por década. Os intervalos mostram a média ± desvio-padrão. Os pontos e as linhas exibem as médias (Saavedra-García et al., 2024).

 

·     Comparação dos rácios de probabilidade (OR) por semestre e trimestre

S1 vs. S2: comparando os semestres de nascimento, observou-se uma dimensão de efeito grande na década de 2010 (OR = 3.37), média em 2000 (OR = 1.98) e efeitos pequenos nas décadas de 1980 (OR = 1.34), 1990 (OR = 1.44) e no total (OR = 1.25), com uma sobrerrepresentação de indivíduos nascidos no primeiro semestre do ano. 

Q1 vs. Q2: a análise comparativa do primeiro com o segundo trimestre revelou uma dimensão de efeito média na década de 1950 (OR = 2.19) e efeitos pequenos nas décadas de 1960 (OR = 1.27), 1970 (OR = 1.52), 1980 (OR = 1.59), 2010 (OR = 1.22) e no total (OR = 1.22), a favor dos nascidos no primeiro trimestre do ano. 

Q1 vs. Q3: os efeitos atingiram uma dimensão média na década de 2010 (OR = 2.79) e dimensões pequenas nas décadas de 1980 (OR = 1.42), 1990 (OR = 1.33) e no total (OR = 1.34), mais uma vez privilegiando os nascidos nos primeiros meses do ano. 

Q1 vs. Q4: os resultados da comparação demonstraram uma dimensão de efeito média na década de 2010 (OR = 2.19) e dimensões pequenas nas décadas de 1970 (OR = 1.25), 1980 (OR = 1.62), 1990 (OR = 1.35), 2000 (OR = 1.62), 2020 (OR = 1.39) e no total (OR = 1.22), sempre a favor dos futebolistas nascidos mais cedo no respetivo ano.

 

Aplicações práticas

A partir dos resultados anteriores, sugerimos 5 aplicações práticas que devem ser, no mínimo, ponderadas pelos treinadores ou outros profissionais (e.g., olheiros), no âmbito dos processos de recrutamento/seleção e de treino no futebol infantojuvenil:

 

1. Promover ajustes nos escalões etários, consoante o contexto de cada clube: o staff técnico e os dirigentes devem ser sensíveis ao enquadramento dos jovens praticantes nos escalões etários, utilizando, por exemplo, um agrupamento relativo dentro de cada categoria. Esta medida visa garantir uma competição mais justa e oportunidades de desenvolvimento para todos os jogadores, o que ajuda a mitigar as vantagens que os jogadores relativamente mais velhos possam ter devido ao seu mês de nascimento. 

2. Desenvolver programas de treino individualizados: o treino físico complementar já é uma prática instaurada nos programas formativos de clubes de elite. Neste sentido, é imperioso que os programas de treino individualizados considerem a maturidade física e psicológica em vez da idade cronológica. Esta abordagem pode atenuar as desvantagens associadas ao efeito da idade relativa, auxiliando o desenvolvimento de jogadores mais novos ou nascidos mais tarde. 

3. Sensibilizar e educar: um dos mecanismos mais promissores para lidar com o efeito da idade relativa é, precisamente, sensibilizar e educar treinadores, pais e dirigentes desportivos. Ações deste género conduzem a decisões mais informadas sobre a seleção e o desenvolvimento dos jogadores, reduzindo a possibilidade de vieses na identificação e na potenciação do talento. 

4. Monitorizar e avaliar o impacto do efeito da idade relativa nas performances individuais e coletivas: controlar e acompanhar a importância das datas de nascimento no desempenho dos jogadores e das equipas, de modo a perceber claramente se tal influi (ou não) na seleção e na retenção de talentos nos clubes e/ou nas seleções. 

5. Criar uma estrutura de apoio aos jovens relativamente mais jovens: proporcionar apoio adicional e orientação para os jogadores mais jovens ou nascidos mais tarde que possam apresentar desvantagens devido ao efeito da idade relativa. Esta intenção pode passar por propor sessões de treino extra, alternância de escalões etários na instituição, apoio psicológico e mentoria de jogadores mais velhos ou mais experientes.

 

Conclusão

A análise da história da Bola de Ouro permitiu identificar alguns padrões-chave relativos ao efeito da idade relativa: (1) o fenómeno é evidente e estatisticamente significativo entre os futebolistas nomeados para o troféu, especialmente no século XXI; (2) o efeito foi constatado entre os jogadores que ocuparam as posições de topo nas classificações da Bola de Ouro; (3) a evolução do efeito da idade relativa mostrou variabilidade ao longo do tempo, com um efeito inverso nas primeiras duas décadas do troféu, um período de inexistência (1970, 1980 e 1990) e um ressurgimento nas décadas mais recentes com maior incidências de futebolistas nascidos nos primeiros meses do ano. 

Os resultados destacam a complexidade do efeito da idade relativa no contexto do futebol e de prémios individuais prestigiados como a Bola de Ouro. A natureza dinâmica do fenómeno sugere que o seu impacto pode ser influenciado por fatores que evoluem ao longo do tempo. A inexistência do efeito da idade relativa nos futebolistas mais bem classificados na Bola de Ouro é um resultado intrigante, que requer uma análise mais aprofundada das circunstâncias únicas que podem contribuir para este efeito nos níveis de rendimento mais altos do desporto.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Sports.